O processo administrativo de trânsito em perspectiva: a autuação*



  1. Resumo
  2. Das infrações
  3. Da autuação
  4. Considerações finais

RESUMO

A Constituição Federal de 1988 trouxe importante avanço no tocante à defesa da dignidade da pessoa humana ao assegurar a garantia do contraditório e ampla defesa aos litigantes em sede de processo administrativo, com os meios e recursos a ela inerente. Essa disposição constitucional contribuiu significativamente para a redução da desigualdade existente na relação administrado x Administração Pública, permitindo ao cidadão o direito de ser ouvido, produzir provas e de contrapor-se a sanha arrecadatória do Poder Público.

Note-se, entretanto, que essa garantia constitucional foi negligenciada durante muito tempo no âmbito do Direito de Trânsito, sendo esta assegurada em sua plenitude somente após a edição da Resolução nº 149/2003 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN). Insta pontuar, nesse intróito, o desconhecimento da imensa maioria de nossos condutores acerca de seus direitos e das garantias que lhe são ofertadas para tal desiderato, o que lança por terra todo o arcabouço jurídico erigido para a limitação da atuação estatal. Assim, buscando sedimentar a doutrina acerca de tema tão contagiante, traremos à lume conhecimentos úteis à educação e conscientização de nossos condutores.

Palavras-chaves: Direito de trânsito. Poder de Polícia. Sanção de Polícia. Autuação. Processo Administrativo para imposição de penalidade.

I - DAS INFRAÇÕES

O processo administrativo de trânsito foi considerado tão importante para o legislador que fez por merecer capítulo próprio no Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Dividido em duas seções, ele descreve minuciosamente todos os procedimentos a serem observados pelas autoridades e agentes da autoridade de trânsito no caso de infração à legislação de trânsito, a fim de que o Estado, por meio dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Trânsito (SNT), na esfera de suas competências, exerça o jus puniendi e aplique a penalidade cabível ao infrator.

Prescreve o artigo 161 do CTB que a inobservância a qualquer preceito do Código, da legislação complementar ou das resoluções do CONTRAN constitui infração de trânsito, sendo o infrator sujeito às penalidades e medidas administrativas cabíveis indicadas em cada artigo, além das punições previstas como crimes automobilísticos.

Insta salientar, entretanto, que não é todo preceito contido no CTB que será tipificado como infração, mas tão somente aqueles indicados no Capítulo XV (Das Infrações). Explica-se: o Capítulo III trata das normas gerais de circulação e conduta e elenca uma série de mandamentos a serem observadas pelos usuários das vias públicas, porém um sem número delas não apresenta preceito sancionador em caso de desobediência. Neste passo deve se registrar que muitas infrações de trânsito são previstas em legislação complementar, como, por exemplo, aquelas dispostas no Regulamento para o Transporte Rodoviário de Produtos Perigosos (Decreto nº 96.044, de 18 de maio de 1988).

Questão polêmica surge quando o intérprete se debruça sobre o § único do artigo 161, o qual prescreve, ipsis literis, que "as infrações cometidas em relação às resoluções do CONTRAN terão suas penalidades e medidas administrativas definidas nas próprias resoluções". É consabido que àquele órgão, coordenador do SNT e instância máxima normativa e consultiva, o CTB concedeu atribuição para estabelecer as normas regulamentares referidas no Código, necessárias a sua melhor execução (inciso I do artigo 12 c.c artigo 314).

Para introdução da presente questão mister se faz relembrar o insígne Pontes de Miranda, em cujo escólio assevera que:

Regulamentar é editar editar regras que se limitem a adaptar a atividade humana ao texto e não o texto à atividade humana - cria meios que sirvam à atividade humana para melhor se entender o texto. Tanto assim que, se os casos apontados não esgotam o conteúdo da regra legal, os intérpretes, judiciários e administrativos, não ficam adstritos à taxatividade intrusa. Onde se estabelecem, alteram, ou extinguem direitos, não há regulamentos - há abuso de poder regulamentar, invasão da competência do Poder Legislativo. O regulamento não é mais do que auxiliar das leis, auxiliar que sói pretender, não raro, o lugar delas, mas sem que possa, com tal desenvoltura, justificar-se e lograr que o elevem à categoria de lei.

O nosso legislador foi imensamente infeliz e laborou em erro crasso ao admitir que uma simples resolução do CONTRAN possa criar uma nova infração, originalmente não prevista no CTB. O que se observa atualmente é um abuso desse poder regulamentar, com a elaboração de resoluções regulamentando assuntos já perfeitamente delineados no CTB e para o qual não se verifica remissão à necessidade de regulamentação por aquele órgão.

Interessante se frisar que o Chefe do Poder Executivo à época, por meio da Mensagem nº 1.056, de 23 de setembro de 1997, nos termos do § 1º do artigo 66 da Constituição Federal, vetou parcialmente, por inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, o Projeto de Lei n° 3.710, de 1993 (n° 73/94 no Senado Federal), que instituiu o CTB. A mensagem de veto do § 2° do art. 256 está assim descrita:

Art. 256.......................................................................................

§ 2° As infrações para as quais não haja penalidade específica serão punidas com a multa aplicada às infrações de natureza leve, enquanto não forem tipificadas pela legislação complementar ou resoluções do CONTRAN.

...................................................................

Razões do veto:

"A parte final do dispositivo contraria frontalmente o princípio da reserva legal (CF, art. 5°, II e XXXIX), devendo, por isso, ser vetado" (grifo meu).

O que não se pode olvidar, entretanto, é que igual orientação não se observou no tocante ao contido no artigo 161, o qual, de igual forma e pelos mesmos motivos, deveria ser vetado parcialmente. Nesse sentido alinho-me com o pensamento do inigualável Waldyr de Abreu, que em brilhante lição destaca:

Se os regulamentos estão infra legem, quanto mais as resoluções, açodadamente produzidas ao sabor das circunstâncias e interesses às vezes pouco claros. Quando chegam à veleidade de criar infrações, mesmo administrativas de trânsito, ferem, no mínimo, o item II do art. 5º da Constituição Federal: Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei". Até mesmo dentro dos limites legais de sua competência, a proliferação desordenada de resoluções, como já vem ocorrendo e ameaça agravar-se, aumentará as incertezas no trânsito, fora do alcance necessário do grande público e insuficientemente conhecidas do próprio CONTRAN e seus conselheiros. Ninguém é capaz de dizer hoje quantas estão em vigor e em que limites. É expressiva a disposição transitória ao art. 314 do novo Código.

Pela ampla argumentação alinhada, todas as infrações de trânsito pretensamente criadas por resoluções do CONTRAN, que não sejam meros desdobramentos não exorbitantes das impostas no código, por manifesta inconstitucionalidade não resistirão à apreciação judiciária. Fomentam a balbúrdia viária, a arbitrariedade e minam o prestígio da autoridade pública.

Com a sucinta finalidade de arrematar o assunto, a fim de exemplificar o acima exposto, trago à lembrança as infelizes iniciativas da Carteira Nacional de Habilitação com faixa dourada (Resolução nº 121/01) e, mais recentemente, a autuação do motorista que conduz veículo com a Permissão para dirigir vencida há mais de 30 dias como incurso nas sanções do inciso V do artigo 162 (Resolução nº 168/04).


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