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O poder hipnótico do slogan (página 2)

Raymundo de Lima

Senha para o paraíso

Para José Sérgio Carvalho, da FEUSP, especialmente os discursos educacionais possivelmente são os mais atravessados "pela presença de jargões que se disseminam entre professores e se transformam em slogans". É quando um dito do momento parece dizer "tudo". As pessoas parecem entregues a um ‘transe hipnótico (Wood, 1985) quando um professor investido de saber toma a palavra. Em transferência massiva com o referido professor, qualquer "nada" diz "tudo". Exagerando, nos faz lembrar o cantor Tim Maia, nos shows dizendo em tom irônico: "Vou filosofar: tudo é tudo e nada é nada". Houve quem acreditasse estar diante de uma máxima filosófica e de um cantor filósofo.

O campo educativo é marcado por altos e baixos de idéias, de palavras mágicas e nomes que viraram referência de ‘científica’. Assim, convivemos com a idéia oriunda da pedagogia: "a criança constrói seu próprio conhecimento". Depois veio a "educação para a cidadania". No âmbito da educação familiar alguém cunhou a palavra "limite", geralmente usada de forma queixosa para apontar indisciplina ou carência de valores fundamentais ao convício social. Ainda é lugar comum dizer: "As crianças de hoje não têm limites", "os pais precisam impor limites". Atualmente, nas escolas, nas faculdades de formação de professores, e órgãos afins, a ‘inclusão’ tomou conta do consenso educacional. A inclusão é mais um consenso retórico do que aceitação prática pra valer. Breve será mais um slogan a ser desgastado com o tempo e pela desresponsabilização dos governos.

As cansativas reuniões cumprem o ritual burocrático escolar ou acadêmico. Os discursos ‘autorizados’ nelas são pronunciados na contramão do estilo socrático, isto é, não conseguem ascender ao diálogo e à troca autêntica e profunda de idéias. Wood (1985), analisa que: "reuniões longas, cansativas, altamente emotivas e outras condições que induzem ao transe [grupal] tornam os participantes suscetíveis a slogans e as idéias repetitivas; um desafio constante à relevância das palavras e das crenças pode, entretanto, reduzir a sua efetividade. O jargão pode ser exagerado e ridicularizado. Os participantes podem rir de si próprios e de suas mais prezadas invenções quando essas invenções tornam-se opressivas e sem significado". Alguém estrategicamente posicionado "fora" do grupo, poderá facilmente observar como as pessoas "jogam", bem como detectar indícios de: falta de escuta, bloqueios, filtragens, paixões atropelando a razão, ressentimentos travestidos de "objetividade" ou de justificativa técnica, dissonâncias entre indivíduos e o grupo, arrogância, impolidez, narcisismos patológicos, farpas irônicas, cinismo, etc.

As assembléias de alunos em vez de tenderem para análises dos temas de discussão e luta, em vez de serem momentos de trocas de idéias, os grupos se expressam em "sínteses" panfletárias, competindo para converter os desgarrados e independentes para as causas escolhidas como prioritárias de luta. Os encontros programados servem mais para o propósito do jogo político, a inflamação das paixões por essa ou aquela idéia, do que para promover o "discernimento" e análise filosófica ou científica. Os "sujeitos" terminam se rendendo a virarem "agentes" representantes de alguma facção; a "fala" é substituída pelo "discurso"- que na maioria das vezes já vem pronto pela ‘elite pensante’, grifados de idéias-síntese, frases de efeito, e palavras que exortam ação prática – as palavras de ordem. O clima das assembléias de mestres e doutores não é muito diferente do encontrado entre alunos. Com uma diferença: cada membro se posiciona no lugar da "verdade e da luz", de tal forma que não existe brecha para questionamento do tipo: "o que vocês pensam sobre o assunto?", ou "vamos investigar a fundo essa questão". É preciso ter muita coragem para expor um pensamento diferente do imperativo canônico, ou do "consenso" fabricado numa reunião ou da assembléia. As "estruturas de alienação do saber" estão ativadas e nada há o que fazer. Divergências sempre existem, mas é prudente primeiro ser parte de um grupo – e de uma aliança ideológica – para depois tomar a palavra. Do contrário, o desgarrado não suportará ouvir os inúmeros slogans para parar, e imediatamente se recolher ao ostracismo de sua desgraça como político.

Slogan e as dificuldades de tomada de consciência.

Evidentemente que slogans como "liberdade, igualdade e fraternidade" da revolução francesa, ou "terra e paz" do bolchevismo soviético, ou, ainda, a máxima da Justiça moderna que proclama "todos são iguais perante a lei" são positivos como primeiro passo de conscientização, de passagem do pensamento sintético ao analítico. Slogans e palavras de ordem precisam ser acessíveis, inquestionáveis e populares para proporcionar a decodificação, causar identificação e uniformizar a organização social daqueles mais entusiasmados por uma determinada causa social necessária e justa. Mas, sendo o slogan excessivamente simplificador, pode tornar-se perigoso para o pensamento, que invés de se abrir pode se dogmatizar, criando um estilo fanático.

No registro de fanatismo bastará algum membro usar um slogan como senha, que os convertidos e seus próximos entram em sintonia num corpo místico uno, um estado de transe hipnótico pronto para "tudo": desde um ato moral ao crime, em nome da "causa". Se a ideologia do grupo for totalitária, haverá ruptura dos limites do outro e da lei, ou seja, é rompido assim o principal dispositivo que sustenta a civilização e a democracia. Quando isso ocorre, o "sujeito" dá lugar ao que Voltaire chama de "espírito do sagrado", considerado superior às leis, e também ao exercício da dúvida e da pesquisa. (Assim, ao ouvir a sentença, responsabilizando-o pelo ato terrorista em Bali, em 2002, que matou 202 pessoas, Amrozi se virou para os australianos, sorriu, fez o sinal da vitória e gritou: "Deus é o maior", duas vezes). Não era uma reverência ao divino, mas sim uma senha para os outros continuarem lutando pela "causa".

Sustentando essas idéias transformadas em jargões e depois em slogans, é que se constituem os grupos narcísicos. Digo "narcísicos" porque a regra destes é aceitarem a inclusão à apenas aqueles que pensam igual ou que perseguem a uniformidade. O narcisismo grupal funciona para que cada membro do grupo seja espelho do outro, que deve ser seu igual no modo de pensar, agir, sentir, falar, parecer. Quem ousar pensar, criticar ou agir diferentemente da maioria narcisista, corre o risco de cair em ‘desgraça’, tal como era dito na China comunista de Mao. (Existem inúmeros livros que analisam esse fenômeno, bem como há filmes e documentários. Ver "Fascismo sem máscara", "A Onda", "Olhos Azuis", Zoológico Humano").

Que fazer?

Apesar de difícil, não é impossível sustentar uma posição independente de "sujeito" na contramão do narcisismo grupal, potencialmente gerador de jargão, slogans e palavras de ordem, nem sempre orientadas pela atitude democrática.

A primeira coisa a ser feita é o "sujeito" sustentar uma atitude crítica, reflexiva, autônoma, e corajosa, em relação à onda emocional da maioria; assim, o sujeito pode se manter a certa distância do poder narcísico de grupo, do líder carismático e de sua comunicação instrumental. Escolhendo fazer parte dessa onda, a responsabilidade cabe mais aos sujeitos do que ao grupo. A segunda atitude consiste em resgatar seus próprios pressupostos estocados, bem como também resistir a entregar sua identidade pessoal ao poder ideológico do grupo ou de seu líder, ou ainda, da força das palavras. Hoje em dia, a força das palavras é sentida nas igrejas que viraram verdadeiras fábricas de slogans para a mídia, como por exemplo: "Jesus Cristo é o Senhor", "Deus é amor", Só Cristo Salva", "Deus é fiel", "Sangue de Jesus tem poder", "Allah é grande", "Guerra santa aos infiéis", etc. O terceiro dispositivo preventivo é o humor. Diz o escritor e pacifista israelense Amós Oz, que somente o humor é capaz de quebrar o fanatismo de um grupo.

Todavia, a conscientização psicológica pode não ser suficiente, visto que tais consensos sociais são fabricados segundo vários determinantes históricos e contingentes do momento. Ou seja, as estruturas psíquicas, as estruturas sociais e o desenvolvimento histórico são complementares, tal nos sinaliza Norbert Elias. Essas três dimensões demandam esforços no sentido de elaboração de um pensamento e uma atitude que impliquem "complexidade" em vez de "especialidade".

Referências bibliográficas:

WOOD, J.K. Efeito de grupo. rev. Estudos de Psicologia. Campinas: PUC, n. 2 e 3/ ago e dez/ 85.

CARVALHO, J. S. Educação e cidadania. rev. Nova escola. jun/jul-2003 : 12

ECO, U. ECO, U. A nebulosa fascista. Folha de S. Paulo – Mais!, 14/05/95.

DOMENACH, J.M. Propaganda política. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1955..

LACAN, J. O avesso da psicanálise. Seminário 17. Rio: Jorge Zahar, 1992.

JURANVILLE, A. Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

MRECH, L. Psicanálise e educação. São Paulo: Pioneira, 1999.

 

Raymundo de Lima

Psicanalista, mestre em Psicologia Escolar (UGF) e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). professor do Depto. Fundamentos da Educação (DFE) da Universidade Estadual de Maringá (Pr), e voluntário do CVV-Samaritanos de Maringá (PR).

ray_lima[arroba]uol.com.br

Revista Espaço Acadêmico http://www.espacoacademico.com.br


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