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O homicídio culposo e a lesão corporal culposa no trânsito envolvendo militares (página 2)

Benevides Fernandes Neto

    1. Os artigos 206 e 210 do CPM

    2. O homicídio culposo está previsto no CPM em seu artigo 206, sujeitando o agente a uma pena de detenção de 01 a 04 anos, elencando como causas de aumento de pena a inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar socorro à vítima.

      O artigo 210 do CPM traz a figura típica da lesão corporal culposa, assim entendida como a ação de ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem culposamente, aplicando ao agente a pena de 02 meses a 01 ano, agravada em virtude das mesmas circunstâncias anteriormente citadas.

      Os delitos de homicídio culposo e lesão corporal culposa são crimes impropriamente militares, uma vez que apresentam igual definição na lei penal comum, podendo ser cometidos por militares e, em situações excepcionais, por civis.

      Assim, apesar de expressamente previsto na legislação penal comum, ocorrendo a subsunção do fato a algum dos delitos citados e às situações previstas no artigo 9º do CPM, em razão do princípio da especialidade, referido delito será considerado como crime militar. Podemos citar como exemplo desta situação a conduta de um militar em serviço ativo que, durante o seu serviço, dispare acidentalmente a arma de fogo que porte e atinja outro militar ou um civil.

    3. Precedentes jurisprudenciais

    4. O Superior Tribunal de Justiça, no exercício da competência que lhe confere a alínea "d" do artigo 105 da Carta Magna, já teve a oportunidade de ofertar as seguintes súmulas:

      Súmula 06:

      "Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar o delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura da Polícia Militar, salvo se autor e vítima forem policiais militares em situação de atividade".

      Súmula 53:

      "Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra as instituições militares estaduais".

      Súmula 75:

      "Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar o policial militar por crime de promover ou facilitar a fuga de preso de Estabelecimento Penal".

      Súmula 78:

      "Compete à Justiça Militar processar e julgar policial de corporação estadual, ainda que o crime tenha sido praticado em outra unidade federativa".

      Súmula 90:

      "Compete à Justiça Militar processar e julgar o policial militar pela prática de crime militar, e à Comum pela prática do crime comum simultâneo àquele".

      O insígne mestre José da Silva Loureiro Neto, em sua obra Processo Penal Militar, elenca ainda as seguintes decisões:

      Acidente de trânsito entre veículo da Força Pública paulista, dirigido por Policial Militar e outro veículo de propriedade privada - Competência da Justiça Comum.

      - Entendeu a 1ª Turma do STF que é competente a Justiça Comum Estadual na seguinte hipótese: "Acidente de trânsito entre um automóvel da Força Pública paulista, dirigido por policial militar, e outro veículo de propriedade privada, no qual trafegavam duas pessoas que, em conseqüência, sofreram lesões corporais. Ausência na imputação de referência a que o acusado, no momento do fato, exercesse serviço de policiamento." (RHC 60.628-8-SP - Rel. Min. Soares Munõz j. 15-4-83 - DJU, 13 maio 1983, p. 6.499 - SIP 18/83.)

      Acidente de trânsito com vítimas - Viatura militar - Não caracterização de crime militar - Competência da Justiça Comum.

      - "O envolvimento do policial militar em acidente de trânsito, com vítimas, quando dirigia viatura militar, não constituindo crime militar, não implica na competência da Justiça Castrense, mas da Justiça Comum." (Ccomp. 6.007-SP - TFR - DJU, 21 mar. 1985, p. 3.477 - SIP 3/86.)

      Acidente de trânsito com vítimas militares entre viatura militar e veículo de propriedade privada - Crimes atribuídos a um civil - Competência da Justiça Comum.

      - "Crimes de lesões corporais culposas contra militares e dano culposo em viatura militar dirigida por um deles, tudo imputado a um civil, em abalroamento de veículos. Crimes comuns e não militares. Interpretação do art. 129, § 1º, Const. Federal, e art. 9º, inc. III, d, do Código Penal Militar." (RECrim, 1.464-2 - v.u. - STF - 1ª T. 3-2-87 - DJU, 20 fev. 1987, p. 2.179 - SIP 3/87.)

    5. Conflito aparente de normas

    6. Ocorrerá, in tese, o conflito aparente de normas quando, em um determinado fato concreto, surja a possibilidade de aplicação de duas normas jurídicas. Segundo o eminente jurista  Bruno José Ricci Boaventura "os critérios solucionadores das antinomias jurídicas são pressupostos implícitos colocados na legislação pelo legislador para a manutenção da coerência tendencial do sistema, da necessidade social de uniformidade das decisões e também como uma via de saída para o aplicador e interprete das normas. Os critérios ou também chamados de regras fundamentais para solução de antinomia são de três tipos: o cronológico, o hierárquico e o da especialidade.

          (...)

        O cronológico tem a sua idéia expressa no brocardo jurídico: "lex posterior derogat legi priori". Assim sendo a lei posterior derrogará a lei anterior dando ao sistema jurídico a sua característica dinâmica. O preceito do presente critério é, justamente, a possibilidade da transmudação das normas componentes do sistema, passando de velhas e não eficazes, para novas e realmente reguladoras, no sentido da visão social atual ou pelo menos mais contemporânea, quando o processo legislativo não obstaculiza por tempo demais.

      (...)

      O segundo dos critérios é o hierárquico, o seu comando é "lex superiori derogat legi inferiori". O uso deste critério para solução de antinomia remeterá o aplicador ou intérprete ao uso da norma hierarquicamente superior, quando se tratar de normas de diferentes níveis.

      (...)

      "Lex specialis derogat legi generali" descreve o critério da especialidade. A norma é considerada especial, em seu sentido de especificidade, quando possuir todos os elementos típicos da norma geral e ainda acrescentar outros, tanto de natureza objetiva ou subjetiva. Estes elementos acrescidos pela norma especial são denominados, pela doutrina, de especializantes".

      A fim de alcançarmos, portanto, o objetivo do presente estudo, elencamos as seguintes situações hipotéticas:

      1. Militar da ativa que, conduzindo viatura policial/militar ou veículo bélico em uma via pública, vem a colidir contra um veículo particular, causando ferimentos em seus ocupantes, ou seja, uma lesão corporal culposa ou homicídio culposo praticado contra civil.

      2. Militar da ativa que, conduzindo viatura policial/militar ou veículo bélico em uma via pública, vem a colidir contra um poste ou outro obstáculo qualquer, causando ferimentos em seus ocupantes, ou seja, uma lesão corporal culposa ou homicídio culposo praticado contra outro militar da ativa.

      Vislumbra-se, prima facie, no primeiro exemplo, em relação à lesão corporal culposa, a possibilidade de aplicação do artigo 129, §º 6º, do CP (pena de detenção de 02 meses a 01 ano), e do artigo 303 do CTB (pena de detenção de 06 meses a 02 anos), sendo que, pelo princípio da especialidade, tratando-se de crime automobilístico, aplica-se os preceitos do CTB.

      Se a hipótese recair sobre o homicídio culposo, igualmente, surge a possibilidade de subsunção do fato ao tipo previsto no artigo 121, §º 3º, do CP (pena de detenção de 01 a 03 anos), e no artigo 302 do CTB (pena de detenção de 02 a 04 anos), sendo que in casu deve ser aplicada a lei especial, conforme anteriormente citado.

      Em relação ao segundo exemplo, porém, amplia-se a antinomia, uma vez que poderão ser aplicados ao caso concreto as normas do CP, do CPM e do CTB, sendo estas duas últimas leis especiais em relação à regra geral da lei penal comum, devendo-se prevalecer as hipóteses normativas previstas no CTB.

      O que se pretende discutir neste estudo é a possibilidade de uma nova interpretação sobre a Súmula 06 do STJ, ou seja, a aplicação das regras contidas no CTB em relação a crimes automobilísticos quando autor e vítimas forem militares. Para tanto, enumeraremos as seguintes considerações:

      - o Decreto-Lei nº 1.001, de 21.10.1969, que institui o Código Penal Militar, é uma lei especial que estabelece os delitos castrenses, estando em posição de norma especial em relação à norma geral (Código Penal);

      - a Lei nº 9.503/97, de 23.09.1997, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, ao apresentar as figuras típicas autônomas dos crimes automobilísticos, tornou-se igualmente norma especial em relação à norma geral;

      - utilizando-se o critério cronológico e o princípio da especialidade se constata, inicialmente, que o CTB é posterior à edição do CPM, sendo que, ao versar sobre os delitos acima mencionados, o Código de Trânsito disciplinou o assunto de forma muito mais abrangente que o CPM, principalmente ao acrescentar o elemento especializante "na direção de veículo automotor";

      - o CTB, em seu artigo 291, determina a aplicação das normas gerais do CP e do CPP, no que não dispuser de modo diverso, bem como, no que couber, a Lei nº 9.099/95; neste sentido, temos que a lesão corporal culposa comporta a aplicação dos institutos da representação, composição civil, da transação penal e a suspensão condicional do processo, fato que não se verifica diante da aplicação do CPM ao referido delito, uma vez que no delito castrense a ação penal é pública incondicionada, exceção feita aos crimes capitulados nos artigos 136 a 141, e não se lhe aplica os institutos da Lei nº 9.099/95 por expressa vedação legal, o que configura uma situação extremamente prejudicial ao militar;

      - em relação ao homicídio culposo se constata, em princípio, que o quantum da pena poderia ser mais prejudicial ao militar, porém, existe a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direito, nos termos dos artigos 43 e 44 do CP, o que não se verifica em relação ao CPM, uma vez que as referidas penas não fazem parte do rol taxativo do seu artigo 55;

      - em termos de política criminal, a adoção do CTB consagrará a aplicação da lei mais benéfica ao réu e, sem dúvida nenhuma, assoberbará a supremacia dos direitos e garantias fundamentais, sem afrontar os princípios constitucionais da hierarquia e da disciplina.

    7. Considerações finais

Diante do acima exposto, face à constante evolução das normas jurídicas pátrias, temos que o conteúdo da Súmula 06 do STJ deve ser rapidamente revisto, com a finalidade de se estabelecer a competência da Justiça Comum para o julgamento dos delitos decorrentes de acidente de trânsito envolvendo viaturas policiais/militares ou veículos de uso bélico, uma vez que se deve buscar no Estado Democrático de Direito sempre a efetivação dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, aí incluídos a categoria dos militares estaduais e federais.

O conflito aparente de normas em relação aos crimes automobilísticos cometidos por militares da ativa, na direção de veículos automotores, tendo como vítimas outros militares, devem ser, hodiernamente, analisados sob a ótica do Código de Trânsito Brasileiro e não mais sob a égide do codex castrense.

A utilização do CTB permite uma interpretação mais benéfica aos sujeitos ativos dos referidos delitos, concedendo-lhes os mesmos direitos aplicáveis aos demais usuários das vias públicas, o que sem dúvida contemplará a mais lídima expressão da Justiça.

7. Notas

    1. JESUS, Damásio E. de. Crimes de Trânsito. Anotações à Parte Criminal do Código de Trânsito Brasileiro. 1ª ed. São Paulo:Saraiva, 1998, p. 70.

2. Loureiro Neto, José da Silva. Ob. cit. p. 110

3. Lei nº 9503/97, Anexo I

4. BOAVENTURA, Bruno José Ricci. O fenômeno da antinomia jurídica. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 678, 14 mai. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6707>. Acesso em: 14 set. 2005.

 

Benevides Fernandes Neto

Oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Bacharel em Direito, Pós-graduando em Direito Administrativo pelo Centro Universitário do Norte Paulista (UNORP).

benevidesjrp[arroba]ig.com.br

Direito Militar



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