O fanatismo religioso entre outros -Breve Ensaio

Enviado por Raymundo de Lima


  1. Psicopatologia do fanatismo
  2. Os primeiros sintomas de fanatismo e suas estratégias de sedução
  3. Todo fanático é intolerante
  4. Fanáticos e suicidas carecem de humor
  5. Para prevenção do fanatismo
  6. Referências bibliográficas

"O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma única verdade" (Emil Cioran)

"...todos os crentes parecem escandalosos e indiscretos: procura evitá-los" (Nietzsche)

Em nossa época, supostamente dominada pela ciência e pela tecnologia, o fanatismo parece ser uma reação made in recalcado do inconsciente da humanidade. Fanatismo, vem do latim fanaticus, quer dizer "o que pertence a um templo", fanum. O indivíduo fanático  ocupa o lugar de escravo diante do senhor absoluto, que, pode ser uma divindade, um líder mundano, uma causa suprema ou uma fé cega. O fanatismo é alimentado por um sistema de crenças absolutas e irracionais  que visa  servir [1] à um ser  poderoso empenhado na luta contra o Mal. Ou seja, o fanático acha que pode exorcizar pessoas e coisas supostamente possuídas pelo demônio" [2] , "combater as forças do Mal" ou "salvar a humanidade" do caos.

Tendo origem no dogma religioso, o fanatismo não se restringe a esse campo único; existe fanatismo por uma raça, um time de futebol, por um partido político, sobretudo por ideologias revolucionárias quando extrapolam a dimensão racional, sentindo-se guiada pela "fantasia da escolha divina".  Foi fanatismo religioso que fez muitos seguirem Jin Jones (Templo do Povo), Asahara (Verdade suprema), David Koresh (Ramo davidiano), Jo Dimambro (Templo Solar) e tantos outros místicos ou charlatães que terminaram causando tragédias coletivas, noticiadas no mundo todo. A história conheceu também os histerismos coletivos da "caça as bruxas", a perseguição aos negros, índios, comunistas, homossexuais, prostitutas.  O movimento da Jihad islâmica contra os "infiéis do ocidente" e a "guerra aos terroristas" do ocidente cristão, demonstram que o fanatismo está vivo e atuante em nossa época supostamente "científica" e "tecnológica". Precisamos admitir que, a história da humanidade é também a história dos vários fanatismos dominando grupos humanos, sempre com conseqüências trágicas. Esse pedaço da história renegado nos causa vergonha, medo e sinalizam alertas para possíveis efeitos negativos no rumo da civilização.

Como dissemos, o fanatismo atua para além do efeito religioso, mas não extrapola ao campo ideológico como um todo. Há fanatismo entre crentes de todo o tipo, do menos ao mais irracional. Mas, não existe fanatismo racional, em que pese o fato de um certo tipo de razão (instrumental, cínica, etc) também ter cometidos os seus desatinos e crimes [3] . Assim, para o fanático religioso, não basta adorar um Deus visto como Senhor absoluto, é necessário ser soldado dele na terra, lutar pela causa superior, pregar, exorcizar, forçar os "infiéis" ou "divergentes" à conversão absoluta, à qualquer preço. O fanático está sempre disposto a dar provas do quanto sua causa suprema vale mais do que as próprias vidas: dele, de sua família ou mesmo de toda a humanidade. Ele mata por uma idéia e igualmente morre por ela.

Os sintomas do fanatismo

Os sintomas do fanatismo, em grupo, são: orações, privações, peregrinações, jejum, discursos monológicos e martírios que podem terminar com o sacrifício da própria vida visando salvar o mundo das "trevas" ou do que ele entende ser "o mal" [4] .

O fanático não fala, faz discursos; é portador de discursos [5] prontos cujo efeito é a pregação de fundo religioso ou a inculcação política de idéias que poderá vir a se tornar ato agressivo ou violento, tomado sempre como revelação da "ira de Deus" ou "a inevitável marcha da história" ou, ainda, a suposta "superioridade de uns sobre os demais". Faz discursos e não fala, porque enquanto a fala é assumida pelo sujeito disposto ao exercício do diálogo, da dialética, do discernimento da verdade, os discursos - especialmente o discurso fanático - fazem sumir os sujeitos para que todos virem meros objetos de um desejo divinizado; servir ao desejo divino e à produção da repetição de algo já pronto, onde o retorno do recalcado do sujeito faz do Eu (ego) um porta-voz de um sistema de crenças moralistas carregado de ódio em relação ao suposto inimigo ou adversário que precisa ser destruído para reinar o Bem.

Os textos sagrados, tomados literalmente, fornecem a sustentação "teórica" do discurso fundamentalista religioso; com ele, o indivíduo acredita, a priori, estar de posse de toda a verdade e por isso não se dá ao trabalho de levantar possíveis dúvidas, como confrontar com outro ponto de vista, ou desvelar outro sentido de interpretação, ou ainda, contextualizá-lo, etc. O fanático tem certeza e isso lhe basta. Creio porque é absurdo, já dizia Tertuliano. Certeza para ele é igual a verdade. (Segundo Popper, no campo científico, a certeza nada vale porque é "raramente objetiva: geralmente não passa de um forte sentimento de confiança, ou convicção, embora baseada em conhecimento insuficiente", já a verdade tem estatuto de objetividade, na medida em que "consiste na correspondência aos factos", na possibilidade da discussão racional com sentido de comprovação. (Popper, 1988, p. 48).

O problema da religião não é a paixão "fé", mas a inquestionalidade de seu método. O método de qualquer religião traz uma certeza divulgada em forma de monólogo, jamais de diálogo ou debate de idéias. O pastor, padre, rabino, ou qualquer pregador de rua, vivem o circuito repetitivo do monólogo da pregação; acreditam que "vale tudo" para difundir a "verdade única" que o tocou e o transformou para sempre! O estilo fanático usa e abusa do discurso monológico delirante, declarações, comunicados, que jamais se voltam para  escuta ou o diálogo, exercício esse que faria emergir a verdade - não a "certeza" [6] .

Psicopatologia do fanatismo

Do ponto de vista psicopatológico, todo fanatismo parece ter relação com a fuga da realidade.  A crença cega ou irracional parece loucura quando se manifesta em momentos ou situações específicas, porém se sua inteligência não está afetada, o fanático aparentemente é um sujeito normal. No entanto, torna-se um ser potencialmente explosivo, sobretudo se o fanatismo se combinar com uma inteligência  tecnologicamente preparada. Fanático inteligente é um perigo para a civilização. O terrorismo, por exemplo, que atua com a única meta de destruir inimigos [7) aleatórios é realizado por indivíduos fanáticos cuja inteligência é instrumentada apenas para essa finalidade. No terrorismo é uma das expressões do fanatismo combinado com uma inteligência tecnológico, mas totalmente incapaz de exercitá-la por meios mais racionais, políticos e legais. Para o terrorismo sustentado no fanatismo, os inocentes devem pagar pelos inimigos; a destruição deve ser a única linguagem possível e a construção de um novo projeto político-econômico, não está em questão, porque a realidade no seu todo é forcluída [8] .

O fanatismo parece surgir de uma estrutura psicótica. O fato do sujeito se ver como o único que está no lugar de certeza absoluta, de "ter sido escolhido por Deus para uma missão "x", já constitui sintoma suficiente para muitos psiquiatras diagnosticarem aí uma loucura ou psicose. Mas, seguindo o raciocínio de Freud, vemos que "aquilo que o psicótico paranóico vivencia na própria pele, o parafrênico experiência na pele do outro" [9] , ou seja, somos levados a supor que o fanatismo está mais para a parafrenia que para a paranóia. Hitler, antes considerado um paranóico, hoje é mais aceito enquanto parafrênico [10] , pois seus atos indicam sua idéia fixa pela supremacia da raça ariana e a eliminação dos "impuros"; mais ainda, o gozo psíquico do parafrênico não se limita "ser olhado" ou "ser perseguido", tal como acontece com paranóicos, mas sim se desenvolve "uma ação inteligente de perseguição e extermínio de milhares de seres humanos", donde extrai um quantum de gozo sádico. Portanto, deve existir membros de um grupo de fanáticos paranóicos, mas certamente o pior fanático é o determinado pela parafrenia, pois visa de fato destruir em atos calculados "os impuros", "os infiéis", enfim, todos os que não concordam com ele.

Hitler e seus comparsas usaram de inteligência para inventar e administrar a chamada "solução final" contra os judeus, porém, antes de ser este um fato criminoso era uma exigência interna de seu próprio psiquismo. Na parafrenia vigora a compulsão de observar e atuar o ser do Outro como alimentador de seu delírio interno. O parafrênico "faz acting out em nome de..." e jamais assume seu ato criminoso, pondo a responsabilidade em alguém que para ele encarna o "mal". Para sua "lógica", as vítimas são os únicos responsáveis. É curioso observar que ontem os judeus se agarravam ao sacrifício do holocausto [11] como modo de explicação da tragédia em que eram vítimas, mas hoje a ultra direita israelense, no poder, parece resgatar dos nazistas essa terrível idéia da "solução final" contra os palestinos. "Quem lutou muito contra dragão, também vira dragão", diz um antigo provérbio chinês.

Os fanáticos pela "solução final" dos judeus, no Julgamento de Nuremberg, não se consideravam culpados ou com remorsos pelo extermínio coletivo. Goering, considerado o segundo homem depois de Hitler, tentou se defender segundo o princípio de sua lealdade e fidelidade para com o Führer; "cumprira ordens" e "nenhuma vez ele se considerou um criminoso" [12] . Eis a "razão cínica": a culpa pelo genocídio era dos próprios judeus gananciosos por dinheiro, não de seus carrascos nazistas. Os israelenses da "era Sharon" também não se responsabilizam pelos atos criminosos de Israel contra os palestinos generalizados como terroristas.

Se no fanatismo o sujeito inexiste para dar lugar ao Senhor absoluto e maravilhoso, então faz sentido não assumir a sua própria responsabilidade, porque ela é "obra do Senhor" [Werk de herrn.] [13] , "o Senhor quer que eu faça", "foi a mão de Allah" [14] , etc. São mais do que frases, são efeitos de uma poderosa "fantasia da eleição divina" [sic!] onde o sujeito é nadificado para dar lugar ao discurso delirante da salvação messiânica [15] . O mundo fanático foi dividido entre "os eleitos" e os que continuam nas trevas e que precisam ser salvos ou serem combatidos por todos os meios, pois "são forças do mal".

O famoso caso Schreber, analisado por Freud [16] , que acreditava ter recebido um chamado de Deus para salvar o mundo, que lhe era transmitido por uma linguagem particular - só entre ele e Deus - , tornou-se o modelo psicanalítico para se pensar a relação loucura e fanatismo. Como já dissemos, o fanatismo é sustentado por sistema de crença delirante, psicótico, dominado por uma autoridade absoluta e invisível (Deus ou a causa da "supremacia da raça ariana", ou a "missão do povo judeu", ou "a Jihad islâmica", "ou salvar o mundo do diabo", enfim, um significante posto no lugar "absoluto" que comanda a ação do grupo fanático(17),etc). Segundo a psicanálise, isso poderia apontar para a hipótese de um "complexo paterno" de origem.

A leitura lacaniana fala de "um buraco no Nome-do-Pai, que produz no sujeito um buraco correspondente, no lugar da significação fálica, o que provoca nele, quando é confrontado com essa significação fálica, a mais completa confusão. É  isso que desencadeia a psicose de Schreber, no momento em que ele próprio é chamado a ocupar uma função simbólica de autoridade, situação à qual só teria podido reagir com manifestações alucinatórias agudas, às quais a construção de seu delírio iria pouco a pouco fornecer uma solução, constituindo, no lugar da metáfora paterna fracassada, uma "metáfora delirante", destinada a dar um sentido àquilo que, para ele, era totalmente desprovido de sentido" [18] .


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