"Na história da sociedade há um ponto de fadiga e enfraquecimento doentios em que ela até toma partido pelo que a prejudica, pelo criminoso, e o faz a sério e honestamente" (F. Nietsche, Para além do bem e do mal).
Prescreve o artigo 181 do Código Penal que é isento de pena quem comete delitos contra o patrimônio em prejuízo do cônjuge, na constância da sociedade conjugal (inciso I) e de ascendentes ou descendentes, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, civil ou natural (inciso II).
Já nos incisos I, II e III do artigo 182 do Diploma Repressivo é previsto que somente se procede mediante representação se os crimes contra o patrimônio forem praticados em detrimento de cônjuge desquitado ou judicialmente separado; de irmão, legítimo e ilegítimo; de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.
Não se aplica o disposto nos dois artigos acima citados se o crime é de roubo ou extorsão, ou, em geral, quando haja o emprego de grave ameaça ou violência à pessoa; ao estranho que participa do crime; se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 anos, conforme dispõe os incisos I, II e III do artigo 183 do Código Penal.
No presente artigo, pretende-se demonstrar que a norma veiculada no artigo 181, inciso I, do Código Penal deve ser relativizada, pois, dentre outros motivos, sua ‘interpretação tradicional’ (literal) fere o princípio constitucional da isonomia, além de servir de fomento à impunidade.
Refere NUCCI (2005, p. 731) que ‘imunidade é um privilégio de natureza pessoal, desfrutado por alguém em razão do cargo ou da função exercida, bem como por conta de alguma condição ou circunstância de caráter pessoal. No âmbito penal, trata-se (art. 181) de uma escusa absolutória, condição negativa de punibilidade ou causa pessoal de exclusão da pena. Assim, por razões de política criminal, levando em conta motivos de ordem utilitária e baseando-se nas circunstâncias de existirem laços familiares ou afetivos entre os envolvidos, o legislador houve por bem afastar a punibilidade de determinadas pessoas".
O citado autor prossegue afirmando que ‘Ensina Nélson Hungria que a razão dessa imunidade nasceu, no direito romano, fundado na co-propriedade familiar. Posteriormente, vieram outros argumentos: a) evitar a cizânia entre os membros da família; b) proteger a intimidade familiar; c) não dar cabo do prestígio auferido pela família. Um furto, por exemplo, ocorrido no seio familiar deve ser absorvido pelos próprios cônjuges ou parentes, afastando-se escândalos lesivos à sua honorabilidade (Comentários ao Código Penal, v. 7, p. 324).
No entanto, o legislador não poderia, pura e simplesmente, face ao princípio de que todos são iguais perante à lei, blindar contra a ação persecutória do Estado o agente que pratica crimes patrimoniais em prejuízo de seus ascendentes, descendentes e cônjuges.
Está-se, vez mais, diante do problema de colisão de direitos fundamentais. De um lado, o direito fundamental à segurança e à propriedade de que a vítima é titular; de outro, o direito do réu a uma imunidade penal, qual seja, não ver-se processado pelo Estado por uma conduta ilícita.
2.1 Colisão de direitos fundamentais
É pacífico na doutrina e na jurisprudência que os direitos fundamentais não são intocáveis e absolutos. Como o homem vive em sociedade, estando em contato permanente com seu semelhante - que também goza de direitos e garantias -, natural que surjam situações de conflitos e choques entre esses direitos.
Tem-se colisão ou conflito de direitos sempre que a Constituição proteja, ao mesmo tempo, dois valores ou bens que estejam em contradição em um caso concreto.
Conforme CANOTILHO, uma colisão autêntica de direito fundamentais ocorre quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular.
E no âmbito penal, não se pode ter visão monocular do Direito. Os interesses da sociedade também devem ser tutelados. Importante relembrar a lição do Supremo Tribunal Federal: "A lei deve ser interpretada não somente à vista dos legítimos interesses do réu, mas dos altos interesses da sociedade, baseados na tranqüilidade e segurança social1 ".
O princípio da proporcionalidade tem dupla face: se de um lado há a proibição de excesso, para conter o arbítrio do Estado, de outro existe a proibição da proteção deficiente aos que têm seus direitos fundamentais violados.
2.2 Do direito fundamental à segurança e à propriedade
Toda pessoa que se encontre no território do país tem direito à segurança e à propriedade, cabendo ao poder público promover este direito, garantindo à população o direito de ir e vir, de se estabelecer com tranqüilidade, de ter sua intimidade preservada, sem que seu patrimônio, integridade física, moral ou psicológica sejam colocados em risco.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, datada de 1948, no seu artigo 3, prescreve que "todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal" No art. 8 há a previsão de que todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhes sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.
, por fim, prescreve o artigo 17, itens 1e 2, da referida Declaração:
"I – Todo homem tem direito à propriedade, só ou em
sociedade com outros.
"II – Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade."
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (o famoso ‘Pacto
de São José da Costa Rica’), no seu artigo 7º assegura que ‘toda
pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais’.
A Constituição Brasileira garante aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade – art. 5º, ‘caput’.
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