Agosto 1994
"A questão da privatização deve ser comprendida num sentido mais amplo, qual seja, no papel do poder público local em mobilizar os agentes da sociedade civil local - privados e comunitários - como um caminho para nova articulação Estado e sociedade." IPEA/IBAM
O Brasil gasta mal. Só na área social gastam-se cerca de 80 a 100 bilhões de dólares por ano, e muita coisa pode ser feita com recursos deste porte. A desproporção entre o que se gasta e os resultados levou o Banco Mundial a realizar uma pesquisa no Brasil: "A proporção do PIB brasileiro destinada aos serviços sociais parece ser mais elevada do que a dos outros paises em desenvolvimento de renda média. Em comparação com os mesmos paises, os indicadores do bem estar social no Brasil são surpreeendentemente inferiores". Não há dúvida que temos recursos insuficientes, mas também não há dúvida que estes recursos encontram-se antes de tudo mal utilizados. Imaginar que se trata de uma característica do setor público é ilusão. Nas cifras acima, estão os gastos privados, e o estudo do Banco Mundial constata, por exemplo, que no conjunto cerca de 80% dos gastos em saúde situam-se na área da saúde curativa, o que é simplesmente absurdo. Que técnico com experiência em planejamento social duvidaria que com prioridade à saúde preventiva, à educação básica, descentralização da gestão da seguridade social e algumas medidas mais, poderiam ser economizados uns 30% ou mais para aplicações mais amplas? E isto significa dezenas de bilhões de dólares.
Mas podemos também ir para um setor essencialmente privado como é o dos bancos, e constatamos que a intermediação financeira nos custa cerca de 50 bilhões de dólares por ano. Vamos clarificar isso: para estocar, gerir, aplicar os recursos de todos nós, os bancos têm custos, que incluem desde salários até computadores e lucros dos banqueiros. É o custo da máquina que ultrapassa 50 bilhões de dólares, algo entre 12 e 15% do PIB nacional, mais do que o valor total da produção agrícola do país. O banqueiro, para cobrir estes custos, cobra juros, pagos pelas empresas que tomam empréstimos. Estas empresas, por sua vez, incluem os custos financeiros ao calcular o preço de custo dos seus produtos, repassando-os para os preços de venda, o que significa que a massa de consumidores do país paga, ao comprar qualquer produto, os custos financeiros correspondentes, sustentando a gigantesca máquina de intermediação. Estes 12 a 15% de "imposto" financeiro, cobrado pelos bancos, encarecem todos os produtos, reduzem a capacidade de investimentos do país, e constituem uma gigantesca esterilização de poupança. Considere-se que nos Estados Unidos a intermediação financeira situa-se na faixa de 3 a 4% do PIB, que equivaleriam a algo em torno de 15 bilhões de dólares no Brasil.
É um cálculo conservador estimar que 30 bilhões de dólares são desperdiçados anualmente no Brasil por irracionalidades do sistema de intermediação financeira.
Tomemos também o exemplo dos transportes em São Paulo. São 4 milhões de automóveis particulares que se acotovelam nas ruas da cidade, e qualquer motorista que se encontra na rua num dia de chuva pode constatar o alcance da nossa incapacidade de gestão urbana: conseguimos nos paralisar por excesso de meios de transporte. Se calcularmos que um carro vale em média 5 mil dólares, são 20 bilhões de dólares imobilizados. É claro que não estamos computando o valor do combustível, dos pneus que se gastam, da sinalização das ruas. Só o valor dos carros permitiria construir mais de 500 km de metrô na cidade, resolvendo todos estes problemas. Mas a nossa mão invisível é sábia: São Paulo tem apenas 35 km de metrô, que aliás custa por quilômetro duas vezes e meia o que custou a construção do metrô de Montreal, no Canadá, para dar um exemplo.
Podemos fazer outro cálculo: a opção metrô em grande escala poderia economizar meia hora em média de tempo de transporte do trabalhador paulistano, e estamos sendo comedidos. Cinco milhões de trabalhadores a meia hora por dia, são 2,5 milhões de horas economizadas por dia. Como a produtividade média da hora de trabalho do brasileiro é da ordem de 3 dólares, teríamos uma economia de 7,5 milhões de dólares por dia, ou 2,1 bilhões por ano, suficiente para construir por ano o dobro de toda a rede de metrô da cidade. Mas a opção é derrubar mais casas na Faria Lima para abrir mais espaço para carros, enquanto o projeto metrô surge...em Brasilia.
Outra área? Na área das infraestruturas, onde as decisões são dominantemente públicas mas com influência determinante das empreiteiras, acumulamos gastos gigantescos (a nossa dívida externa é hoje da ordem de 120 bilhões de dólares), para desenvolver um programa atômico sem nenhum sentido, uma rodovia Transamazônica entre o nada e o nada, uma ferrovia do aço que tem mais túneis e pontes do que trechos normais, e uma central hidrelétrica que arcou com todos os sobrecustos de querer ser a maior do mundo. Só na central foram 18 bilhões de dólares, dinheiro suficiente para comprar bons estabelecimentos agrícolas para todos os sem-terra do país.
Na área agrícola, tão importante e tão subestimada, temos no país 370 milhões de hectares de boa terra agrícola, lavramos anualmente cerca de 60 milhões, e apresentamos um gigantesco desperdício de terra através do que tem sido chamado pudicamente de pecuária extensiva (média nacional de 3 hectares por cabeça), enquanto na realidade temos sólidos dois terços do nosso potencial em terras imobilizado como reserva de valor, com proprietários que nem cultivam nem deixam cultivar. Isto sem falar das impressionantes estruturas de atravessadores que provocam viagens absurdas dos produtos agrícolas entre diversas "praças", simplesmente para pagar pedágio comercial. Trata-se, aqui também, da área privada, e não do Estado.
Na área dos recursos humanos, em números redondos, o Brasil tem uma população total da ordem de 155 milhões de pessoas, das quais cerca de 90 milhões em idade de trabalho. Destas, cerca de 70 milhões constituem a população economicamente ativa, ou seja, que trabalha ou está procurando emprego, e um pouco mais de 60 milhões trabalham efetivamente, constituindo a população ocupada. Basta ver, pelos números, que mantemos uma gigantesca subutilização dos recursos humanos do país, em termos estritamente quantitativos, sem falar da imensa perda de produtividade representada pelo fato de metade da nossa mão-de-obra ter completado no máximo até o quarto ano primário, formando uma gigantesca massa de analfabetos funcionais.()
Estes exemplos, tomados isoladamente, levam a explicações parciais e a culpas fáceis. Tomados no seu conjunto, demonstram:
a) que os volumes desperdiçados são simplesmente gigantescos, da ordem dos 100 a 150 bilhões de dólares anuais, pelo menos um quarto do PIB. Em consequência, o nosso problema central não é o de levantar recursos novos, e sim de utilizar corretamente os que temos, inclusive recursos físicos subutilizados como o solo, e os recursos humanos.
b) o problema não é de maneira nenhuma característico do setor público, podendo ser constatado no conjunto da economia, criando uma situação global de baixa produtividade social.
c) como os diversos agentes econômicos, públicos ou privados, não sofrem de uma perversão generalizada de querer o seu próprio mal, o problema resulta essencialmente de uma desordem institucional, que leva a uma cultura organizacional centrada no curto prazo e no canibalismo econômico.
d) quando numerosos atores sociais buscam a vantagem a curto prazo e a qualquer custo, inviabilizando o processo de desenvolvimento no seu conjunto, as soluções devem ser buscadas na recuperação da governabilidade no seu sentido mais amplo.
Estas constatações, por óbvias que sejam, são importantes pra deixar claro que a racionalização institucional faz parte de um processo mais amplo, ultrapassando as simplificações da privatização. Por outro lado, mostram que a reorganização do contexto institucional do nosso desenvolvimento, e a recuperação da governabilidade do país, constituem um eixo de ação absolutamente vital. Não se trata portanto de organogramas, trata-se da lógica do processo, da cultura administrativa herdada pela nação.
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