O texto é fruto de uma experiência de docência de Filosofia no curso de Informática, a partir da qual construímos, em interação com a turma envolvida, um conjunto de reflexões que pretendemos aqui socializar. Não se trata, portanto, da apresentação de respostas à problemática da relação entre filosofia e informática na universidade e sim da análise de uma experiência docente com o tema, no sentido de contribuir com o debate. Por isso, ao invés de trazer respostas, nossa intenção é fazer perguntas e, com isso, o texto abre mão de boa parte de seu caráter propositivo para se constituir em elemento de problematização da prática delimitada.
No senso comum seguidamente verificamos um conjunto de imprecisões sobre o significado da Filosofia para a humanidade e uma significativa parcela da população continua se referindo pejorativamente a esse termo. É evidente que não podemos, e nem bastaria, apresentar um conceito único e abrangente o suficiente e reproduzi-lo para que, então, mais pessoas pudessem ter acesso ao seu significado.
Aliás, se o que entendemos por filosofia é o suficiente para considerá-la definida, provavelmente já estaremos deixando de filosofar, pois, como processo de reflexão livre, plural e contraditório acerca do próprio conhecimento humano, a atitude filosófica não pode se declarar satisfeita com o que "des-cobriu". Pelo contrário, o filósofo, como "amante da sabedoria", reconhece sua limitação e constantemente admira o "não-conhecido", inscrevendo-se na difícil tarefa de rigorosamente construir conhecimento a partir da realidade "des-conhecida". O filósofo Husserl traz uma importante contribuição nesse aspecto: "O que pretendo sob o título de filosofia, como fim e campo das minhas elaborações, sei-o, naturalmente. E contudo não o sei... Qual o pensador para quem, na sua vida de filósofo, a filosofia deixou de ser um enigma?... Só os pensadores secundários que, na verdade, não se podem chamar filósofos, estão contentes com as suas definições" (1).
No entanto, o que mais impressiona, além da utilização equivocada e a dificuldade de definição conceitual, é a discussão sobre a utilidade da filosofia. Assim, o que mais se pergunta não é sobre "o que é filosofia" mas sim "para que filosofia?", como se as duas perguntas não estivessem já imbricadas e manifestassem uma mesma preocupação original. Ou será que é possível responder o "para que" de algo que não me atrevo a dizer "o que é?"
Essa acentuada preocupação com a utilidade da filosofia parece estar ligada à forma como é concebido o conhecimento na sociedade capitalista, ou seja, somente vale a pena conhecer o que estiver imediatamente "servindo para algo", o que, em última instância é definido pelo mercado. Além disso, a filosofia também aparece como algo tão estranho à maioria da população porque sua presença tem sido historicamente elitizada e, evidentemente, houve todo um interesse para que isso assim continuasse.
A professora Marilena Chauí em seu livro Convite à Filosofia, questiona o fato das pessoas perguntarem pela utilidade da filosofia, visto que dificilmente alguém ousa perguntar, por exemplo, "para que matemática" ou "para que biologia" ou para que servem outras áreas do conhecimento. Segundo a autora, "o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o trabalho da Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas e filósofos sabem disso, o senso comum continua afirmando que a Filosofia não serve para nada. Para dar alguma utilidade à Filosofia, muitos consideram que, de fato, a Filosofia não serviria para nada, se ‘servir’ fosse entendido como a possibilidade de fazer usos técnicos dos produtos filosóficos ou dar-lhes utilidade econômica, obtendo lucros com eles; consideram também que a Filosofia nada teria a ver com a ciência e a técnica (...) Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é ciência, são questões filosóficas. O cientista parte delas como já respondidas, mas é a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas"(2).
É claro que existe toda uma história de construção de concepções teóricas que reforçam o senso comum quanto à noção de utilidade. Um dos aspectos mais fortes dessa afirmação contundente de utilidade do conhecimento, é o positivismo das ciências exatas que, sobrevalorizando a experimentação para instrumentalizar a produção, passou a desconsiderar por completo as atividades tipicamente especulativas. Em contraposição à delimitação conceitual de utilidade, como sendo apenas decorrência do que é meramente instrumental e adaptado à lógica produtivista do capitalismo, Marilena Chauí é, em nosso entendimento, quem de forma mais explícita se posiciona: "Qual seria, então, a utilidade da Filosofia? Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes"(3).
Se a Filosofia é útil, nos termos colocados acima, nos parece evidente que a sua presença é fundamental em qualquer área do conhecimento. Porém, como se dará essa relação da filosofia, com as diferentes áreas do conhecimento? Essa é a questão mais pertinente ao tema que abordamos nesse texto e esperamos tratar dela durante toda essa elaboração.
A Filosofia deve ser exercida necessariamente por filósofos? Essa pergunta remete a uma outra: "quem são os filósofos?" No decorrer da história da humanidade os filósofos são vistos como sujeitos isolados do mundo e que realizam a atividade básica da elaboração teórica. Muitos mitos existem em torno da "figura do filósofo", como se esse fosse predestinado e contasse com a superioridade intelectual da espécie em si mesmo. Estudando a história da filosofia, Sócrates, filósofo grego, foi considerado o homem mais sábio de seu tempo e ele, paradoxalmente, afirmava: "tudo o que sei é que nada sei". Ou seja, o filósofo não é aquele que sabe, mas o que tem consciência de seu "não-saber" e por isso "procura saber".
Podemos afirmar, em síntese, que o filósofo é aquele que quer saber. Mas saber o quê? Sobre tudo. E isso é possível? É claro que não podemos saber de tudo, mas em cada área do conhecimento podemos fazer filosofia e, ao fazê-la, estaremos reconstruindo o conhecimento como um todo, não mais fragmentado da forma como a ciência moderna o tem condicionado através da especialização. "O especialista é aquele que se dedicou, a vida toda, a conhecer cada vez mais sobre cada vez menos e que, finalmente, ficou sabendo quase tudo sobre quase nada"(4).
O que podemos dizer rapidamente sobre esse aspecto é que o movimento teórico da filosofia é contrário ao da especialização científica. Ou seja, a função do filósofo na ciência, conforme Samuel Branco, "é recuperar a dimensão humana do conhecimento, inserindo os diversos saberes num contexto global. (...) Hoje em dia, em tempos de rápida mudança dos saberes e das técnicas, mais do que nunca o especialista precisa sair de seu mundo fechado, abrindo-se para a interdisciplinaridade"(5).
Como a Filosofia não é um conhecimento em específico, mas uma reflexão radical em torno de tudo que é possível conhecer, seria estranha a atividade de um "especialista em Filosofia". Isso não impede que existam filósofos especializados em determinadas temáticas próprias da filosofia, como ética, história da filosofia, epistemologia, etc. Mas, o que queremos enfatizar é que, para ser filósofo, não há um conteúdo de domínio restrito que determine sua condição, ao contrário do que muitas vezes é difundido no senso comum.
Todas as pessoas que querem saber e se dispõem a refletir questões filosóficas, em qualquer área do conhecimento, são filósofas. "Qualquer cientista, em certo momento de seu trabalho, pode parar para refletir sobre questões propriamente filosóficas"(6). O filósofo italiano Antônio Gramsci, apresentava de forma muito clara a constatação de que, embora existam graus diferenciados, todos podem ser intelectuais: "Todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então; mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais"(7). E, em nota de rodapé, Gramsci acrescenta: "Do mesmo modo, o fato de que alguém possa em determinado momento fritar dois ovos ou costurar um buraco do paletó não quer dizer que todo mundo seja cozinheiro ou alfaiate"(8).
É importante destacar, no entanto, que o fato de que todos podemos ser filósofos, não pode ser entendido, de forma alguma, que todo o conhecimento é filosófico. O professor Paulo Schneider cita Bertrand Russel ao explicar o que é filosofia: "A filosofia origina-se de uma tentativa obstinada de atingir o conhecimento real. Aquilo que passa por conhecimento, na vida comum, padece de três defeitos: é convencido, incerto, e em si mesmo contraditório. O primeiro passo rumo à filosofia consiste em nos tornarmos conscientes de tais defeitos, não a fim de repousar, satisfeitos, no ceticismo indolente, mas para substituí-lo por uma aperfeiçoada espécie de conhecimento que será experimental, preciso e autoconsciente. Naturalmente desejamos atribuir outra qualidade ao nosso conhecimento: a compreensão. Desejamos que a área do nosso conhecimento seja a mais ampla possível"(9).
Portanto, filosofar pressupõe uma rigorosidade que lhe é própria, de caráter especulativo, investigando os pressupostos, limites e potencialidades de todo o conhecimento humano. Essa forma de trabalhar com o saber pressupõe um olhar crítico e questionador da realidade, o que implica uma abertura ao novo e uma reconstrução a partir da tradição. "A sabedoria não se conquista como uma coisa que se quis e que agora poderia ser mantida e manipulada indefinidamente, pois quando se pára de querer saber, não se sabe mais. Quando pretensamente se alcança o saber, não se sabe mais"(10).
Após o exposto, voltamos a enfatizar a possibilidade de todos sermos filósofos, o que se coloca como condição necessária da atividade construtora do conhecimento, independente da área científica a que estejamos nos referindo. Na universidade, espaço privilegiado para o diálogo dos diferentes saberes, o filósofo de cada área do conhecimento é o sujeito que concretiza a atividade científica, gerando novos significados de totalidade para a humanidade.
O profissional da informática, ao invés de se inscrever de maneira fragmentada na produção do conhecimento, entendemos que deva se colocar também na condição de interlocutor das diversas ciências, tratando seu objeto de estudo de forma ampliada com o conjunto do conhecimento científico da atualidade e suas repercussões para a humanidade. O desafio aqui é ser filósofo a partir da informática e desenvolver a tecnologia em função da necessidade humana de exercer a comunicação, o que permite tanto o avanço da informática como da própria filosofia, não como instâncias separadas, mas relacionadas em favor da emancipação humana.
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