Eles discursam, mas nada dizem - uma breve reflexão sobre a sabedoria de Heráclito e a política

Enviado por Raymundo de Lima


  1. A arte e a ética de escutar
  2. Para além do discurso e da imagem...
  3. ... existe o ato ...
  4. Referências bibliográficas

(I)

"Não sabendo escutar também não sabem falar"

(Heráclito de Éfeso - frag. 19, II, 14)

Na época da imagem, do espetáculo e do falar vazio, uma eleição pode ser ganha quando o candidato consegue transmitir: uma boa imagem, um discurso que convença que tudo vai melhorar se ele e seu partido chegarem ao governo. Sua ética pessoal vale menos que sua estética ou sua imagem na mídia, principalmente exposta na televisão. Desde o emblemático debate televisivo entre J. F. Kennedy e R. Nixon, se inaugurou a crença de que ganha eleição quem consegue passar boa imagem na telinha.

O problema das eleições democráticas em nossa época ditada pela mídia e os altos custos das campanhas é que sobra pouco espaço para a democracia autêntica. Mas, também quando há excesso narcisista do candidato e incapacidade dele escutar os eleitores, podem minar que ele ganhe uma eleição. Afinal, os eleitores estão aprendendo cada vez mais a ler os discursos, a interpretar para além do que lhe é oferecido pelos candidatos e a não confiar apenas na imagem maquiada pela equipe de campanha.

Toda vez que a sociedade dos homens se depararam com crise de valores na política e na vida em geral, a sabedoria apontava resgatar para reaprender o que os antigos filósofos diziam. Ou seja, em momentos de crise, em vez de somente nos apegarmos o que diz os estudos da ciência moderna, devemos empreender uma "viagem" rumo aos clássicos de nossa cultura, no sentido de além de contextualizá-lo segundo sua época e cultura, reinterpretar seu pensamento à luz dos problemas de cada época ou cultura. Sócrates, Platão, Aristóteles, são as principais referências, mas devemos também refletir sobre a sabedoria dos chamados Pré-socráticos, como também dos "Pós-Socrátes" depois de Platão e Aristóteles, por exemplo, Epicuro (270 a.C.).

Foi nesse sentido, que fomos buscar em Heráclito algumas idéias que pensamos servir para lermos a realidade de nossa época. 

A arte e a ética de escutar

Heráclito de Éfeso, viveu cerca de 500 antes de Cristo. Constatou que tudo do mundo está em transformação, que em essência "tudo é mudança, tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo".  Usava uma metáfora: "ninguém se banha duas vezes nas águas do mesmo rio [...]. O que é, ao mesmo tempo novamente não é".

Chamava à atenção daqueles que "não sabendo escutar, também não sabem falar" (frag. 19, II, 14, Ibid.). Apesar de mais de dois mil anos de diferença, essa sentença nos orienta para distinguirmos os atos de "escutar" e 'ouvir".

Em nossa época em que as condições existenciais, psíquicas, sociais e científicas, estão quase irremediavelmente fragmentadas, faz aumentar o número de pessoas que ouvem mas não escutam, que vivem mas não existem, que falam mas nada dizem. Podemos até afirmar que hoje temos alguns espaços patológicos onde predominam a compulsão do monólogo narcísico, alienante, repetitivo e que se recusa estabelecer um compromisso de diálogo e esclarecimento baseados nos critérios da razão. Até mesmo, há intelectuais vivendo de auto-enganos; pensam que escutam, mas só sabem ouvir; pensam que dialogam quando só sabem com-versar, isto é, versam sobre vários assuntos, mas não sabem ser sujeito de seu ato. E, se não sabem ser sujeitos, não se responsabilizam pelo que falam, fazem ou deixam de fazer.

Somente após Heráclito é que Sócrates, passou a chamar a atenção para a importância do diálogo, inventando a maiêutica (a arte de parir idéias), que só é possível através do exercício do diálogo.  

Portanto, o atos de falar e escutar é que faz surgir o diálogo e, quem sabe uma sólida amizade. Os antigos valorizavam muito a amizade.

Se o ato de escutar pressupõe uma predisposição do Sujeito de captar o sentido presente na fala ou discurso de outrem, o ato de falar, de dizer algo, pressupõe um Sujeito que se afirma enquanto tal e um Outro presente a quem é dirigido a palavra, mas que não se trata do "destinatário" único da fala.

O Outro presente é sempre aquele a quem nos parecemos dirigir. Toda fala quanto verdadeira provoca o efeito de ouvir ou escutar. Um professor que preparou bem sua aula expositiva e tem paixão por ensinar, ao falar para a turma causará efeitos de escuta nos seus alunos. Não há turma ruim, o que há é professor mal posicionado! O professor pode estar fora de "seu" lugar. Quem se dispõe a escutar - na sala de aula, no consultório ou no exercício da política -, demanda encontrar propósitos significativos no que o falante produz.

T. Reik, um psicanalista contemporâneo de Freud, pensava que escutar é como usar um terceiro ouvido que tem o poder especial de captar o sentido grávido, presente-ausente, da verdade radical do sujeito falante. Jesus Cristo, ao terminar suas parábolas, também apelava para ser entendido pelo "terceiro ouvido" do seus interlocutores. Finalizava suas parábolas com o alerta :  "Quem tem ouvidos para ouvir que escute".

Ou seja, tal como Heráclito, Jesus sabia que nem todos os humanos conseguem escutar; nem todos desejam saber a verdade quando sentem-se preenchidos por outra "verdade" que acreditam; nem todos arrumam tempo para amadurecer a verdade que as vezes é dura ou cruel; nem todos tem coragem para reconhecer o sentido oculto das palavras e, nem todos simplesmente se importam com o que outro quer lhe dizer...

Outra sentença de Heráclito também poderia funcionar como orientação dos eleitores diante dos discursos dos políticos: "É sábio escutar não a mim, mas ao verbo [o logos] que em mim fala. Os olhos e ouvidos são maus testemunhos para os homens, se tiverem uma alma que não lhes compreenda a linguagem".

Seu chamamento é para a educação dos ouvidos, ou melhor, "educação da escuta". É preciso educar a capacidade de escuta das pessoas para que elas saibam discernir onde está a verdade e onde se esconde a mentira nos discursos, principalmente dos políticos profissionais. A verdade está no logos, isto é, está naquilo que se enuncia segundo a lógica da razão e não naquilo que recebemos e ficamos impressionados com o colorido emocional de certas palavras e o efeito da imagem que as sustentam. Em vez de acreditar nos olhos e nos ouvidos que se extasiam com a beleza divulgada, devemos cuidar de ir para além do que estes órgãos dos sentidos nos apresentam. Quem deve garantir a verdade do que recebemos por esses órgãos é o logos ou a razão. 


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