Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 


Educação: um processo cooperativo (página 2)

Antonio Inácio Andrioli

2. A educação para a cooperação

A educação pode ser entendida como uma ação cooperativa. Isso significa dizer que, tendo em vista a aprendizagem como um processo cooperativo de descoberta do conhecimento, esse só ocorre como resultado de uma socialização, uma construção coletiva. Coerente com a afirmação de Sara Paim de que "todo o conhecimento é o conhecimento do outro", entendemos que a própria identidade do sujeito humano depende da existência de outras pessoas, pois é na relação com os outros que o ser humano se reconhece enquanto individualidade (PAIM, 1992). Se não existisse o outro, não seria possível a idéia de um "eu". Como afirmou Karl Marx, em sua obra O Capital, o ser humano "não vem ao mundo nem com um espelho, nem como um filósofo fichtiano: eu sou eu, o homem se espelha primeiro em outro homem. Só por meio da relação com o homem Paulo, como seu semelhante, reconhece-se o homem Pedro a si mesmo como homem. Com isso vale para ele também o Paulo, com pele e cabelos, em sua corporalidade paulínica, como forma de manifestação do gênero humano" (MARX, 1988: 57, nota de rodapé 18). Conforme Piaget, "é na medida que nós nos adaptamos aos outros que tomamos consciência de nós mesmos. É na medida que os outros não nos compreendem espontaneamente, e que nós, da mesma forma, não os compreendemos, que nos esforçamos para modelar nossa linguagem de acordo com os mil acidentes que criam essa inadaptação e nos tornamos aptos para a análise simultânea dos outros e de nós mesmos" (PIAGET, 1967: 201).

Dessa forma, a cooperação está presente na própria idéia de pedagogia e, diferente do que em outras épocas, muitas elaborações atuais sobre a educação e o entendimento acerca do conhecimento colocam a práxis intersubjetiva como centralidade para a validação dos saberes. Com Habermas, o individualismo da filosofia da consciência, paradigma da educação com base na ciência moderna, passa a ser substituído por uma teoria da interação. Segundo Marques, Habermas "postula em lugar da razão monolítica, um conceito de razão comunicativa, dialógica. O conhecimento não se constrói na reflexão isolada, ou no interior de uma consciência, mas de forma dialógica, processual, tendo como referências básicas o grupo e a linguagem usual" (MARQUES, 1993: 79). E, citando Rouanet, "o homem é um ser plural: nasce numa comunidade lingüística e organiza suas relações com seus semelhantes sobre o pano de fundo de um mundo vivido intersubjetivamente compartilhado" (Idem). Nessa compreensão de conhecimento, "argumentar não é convencer ou persuadir alguém de algo, mas é chegarem os interlocutores a um entendimento novo de algo, entendimento cooperativamente produzido, já que resulta não da vitória de um dos contendores sobre os demais e não é simples soma dos diversos pontos de vista, mas reconstrução coletiva de um consenso, que não seria verdadeiro se não significasse o assentimento de cada um" (Idem: 99).

Está emergente, em nossa época, portanto, um novo jeito de compreender a atividade educativa. Essa compreensão supera o paradigma clássico da ciência que entendia o conhecimento como uma relação individual entre sujeito e objeto. Além de negar a idéia de que o saber é uma reprodução do objeto para o sujeito que o apreende (teoria predominante na Idade Média, com a Escolástica), novas reflexões pedagógicas procuram superar a razão instrumental, que acreditava na capacidade do sujeito individual produzindo o conhecimento.

Um dos aspectos principais a ser analisado na educação baseada na razão instrumental é a criação de currículos escolares que colocam as disciplinas como auto-suficientes e isoladas umas das outras: a fragmentação do conhecimento e seu afastamento da complexa problemática das relações sociais. Outro aspecto importante é o isolamento do processo de construção do conhecimento do seu ensino. É necessário, portanto, que na atividade própria da pesquisa se tenha ciência de como se dão os processos de aprendizagem e, enquanto educadores, possamos compreender como ocorre a produção do conhecimento nas ciências. Assim, o trabalho de pesquisa está sendo feito com vistas à aprendizagem e a própria aprendizagem se produz através da pesquisa. Permanecem dois momentos, mas interrelacionados, ou seja, o pesquisador pesquisa para aprender e fazer aprender e a aprendizagem acontece enquanto o conhecimento é produzido: se aprende produzindo conhecimento.

Nessa compreensão de educação, tanto a interdisciplinaridade como a interlocução estão inerentes a um trabalho que tem como propósito a construção do conhecimento. A aprendizagem, segundo Marques "é construção coletiva assumida por grupos específicos na dinâmica mais ampla da sociedade, que por sua vez, se constrói a partir das aprendizagens individuais e grupais. (...) Não se ensinam ou aprendem coisas, mas relações estabelecidas em entendimento mútuo e expressas em conceitos que, por sua vez, são construções históricas, isto é, nunca dadas de vez, mas sempre retomadas por sujeitos em interação e movidos por interesses práticos no mundo em que vivem. Em vez de o professor operar com conceitos que já aprendeu e na forma em que os aprendeu e que agora só necessitariam ser reproduzidos nos e pelos alunos, trata-se, no ensino, de ele e os alunos produzirem, em entendimento comum, os conceitos com que irão operar para entenderem as relações com que lidam" (Idem: 109-110).

3. A educação cooperativa e a construção de práticas solidárias

O que mais nos desafia na educação cooperativa, é a sua dimensão pedagógica. Nesse aspecto, vamos analisar aqui apenas um aspecto que mais nos interessa para a presente discussão: de que forma a educação cooperativa pode contribuir na construção de práticas solidárias entre os alunos?

O fato de estarmos utilizando a idéia do cooperativismo, entretanto, não nos coloca na condição de justificadores das experiências cooperativas que existem. Pelo contrário, uma proposta de educação cooperativa deve se colocar como crítica às cooperativas. Inclusive essas instituições, cooperativas, enquanto empresas, só poderão ter coerência com os ideais que representam, enquanto teoria do cooperativismo, se fizerem uma profunda autocrítica de suas práticas.

O fato de estarmos colocando elementos do cooperativismo na construção da proposta de educação cooperativa em escolas se justifica pelo entendimento que temos da relevância social e educativa de sua teoria. Portanto, estamos nos referindo à teoria e prática do cooperativismo como uma forma de ser e viver em sociedade. "O cooperativismo se situa na linha do ‘dever ser’, não numa dimensão impositiva, mas como um apelo às consciências para optarem por uma proposta comportamental, na sua atividade econômica e social, que conduza a uma sociedade e a um sistema econômico alternativo, mais solidário, justo, autônomo, democrático e participativo. Os valores, princípios e normas que propõe são um paradigma que ajuda a orientar a ação dos cooperadores, no seu empenho em prol da realização dos objetivos da cooperação" (SCHNEIDER, 1993: 2).  

Nesse sentido, também entendemos que o cooperativismo se apresenta como uma prática social que pode se adaptar a várias ideologias e compreensões de educação. No entanto, mantemos uma unidade no entendimento de que é contrária à sociedade capitalista e aos seus diversos mecanismos de opressão. Com esse entendimento, a sua ação está engajada e comprometida com a construção de novas relações sociais entre as pessoas. Concretamente, isso se expressa nas experiências práticas realizadas em escolas, desenvolvendo com os alunos e a partir desses, atitudes de resgate da cooperação e da solidariedade em contraposição aos valores do individualismo e da competição, típicos da cultura de nossa época. Temos, portanto, na prática cooperativa dos alunos a maior referência para uma proposta de educação cooperativa, tendo em vista que é na relação concreta entre os sujeitos sociais que se constrói a consciência social ou, especificamente em nossa abordagem, a consciência cooperativa.  Para Ferrière, citado por Gadotti, "a vida social, bem como a moral, o sentido do bem e do mal na vida coletiva, não podem ser apreendidos a não ser na prática" (in GADOTTI, 1997: 12).

Compreendemos que um dos primeiros momentos da superação do individualismo e da competição é a consciência dos alunos de que realmente são individualistas e competitivos. Afirma Paulo Freire, em sua obra Pedagogia do Oprimido, que os seres humanos, "somente na medida em que se descubram ‘hospedeiros’[2] do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora" (FREIRE, 1987: 32). Em seguida, Freire observa que, "quase sempre, num primeiro momento desse descobrimento, os oprimidos, em vez de buscar a libertação na luta e por ela, tendem a ser opressores também, ou subopressores. (...) ‘Reconhecerem-se’, a este nível, contrários ao outro, não significa ainda lutar pela superação da contradição. Daí esta quase aberração: um dos pólos da contradição pretendendo não a libertação, mas a identificação com o seu contrário. (...) Os oprimidos têm no seu opressor o seu testemunho de ‘homem" (Idem: 32-33). 

Em nossa experiência educativa com cooperativas de alunos pudemos perceber que, em muitos de nossos grupos, essa elaboração teórica de Freire se efetivou na prática. Ou seja, nas cooperativas informais de alunos, um primeiro momento foi a tomada de consciência de seu individualismo e competição e o segundo passo foi a reprodução de preconceitos que vinham a reforçar uma cultura de exclusão como o machismo, o racismo, o autoritarismo. Em algumas das experiências isso parece ter sido superado e foi possível construir a autonomia do grupo, com a correspondência da prática, apesar e em função dos muitos problemas para que isso acontecesse, ao que o grupo almejava enquanto cooperativa. Observamos que nos grupos onde ocorreu uma efetiva discussão dos problemas, de forma que as contradições se tornaram evidentes (desveladas), houve maior progresso. Nos grupos que ignoraram ou não se propuseram a gerar conflitos e trabalharam de uma forma apenas idealista, verificamos discursos que reforçavam seu trabalho mas não se sucederam progressos no sentido da superação de preconceitos. Nessas experiências percebe-se, inclusive, um reforço aos preconceitos existentes.

Como afirma Gadotti, "não há duas escolas iguais, cada escola é fruto do desenvolvimento de suas contradições". (GADOTTI, 1997: 57). A autonomia dos educandos em suas vivências cooperativas, entretanto, é decisiva para o processo de construção da consciência participativa: "O papel importante da autonomia (self-government) é o processo de ‘socialização’ gradual das crianças. (...) A educação para a cidadania dá-se na participação no processo de tomada de decisão". (Idem: 12, 49). Além da oportunidade dos alunos terem os seus próprios espaços de decisão, em forma de experiência cooperativa, as escolas poderiam oferecer maiores condições efetivas de participação aos alunos nas decisões que dizem respeito à escola.

A opção pela educação cooperativa, portanto, pressupõe para a escola o desafio de abandonar o "medo da democracia" e de afirmar seu compromisso com a construção de um processo de crescente inclusão e participação, que culmine com a conquista de maior liberdade. Todas as relações entre seres humanos são relações de poder; a saída para o problema está na forma como concebemos e nos relacionamos com o poder. Nesse sentido, a educação cooperativa, como proposta multidisciplinar, baseada na ação coletiva e a na constante reflexão crítica sobre experiências concretas de alunos, pode oferecer elementos importantes para a construção de uma educação baseada na solidariedade e na transformação das relações sociais geradoras de opressão, competição, exclusão, alienação e preconceito.
__________

[1] Em entrevista: "O capitalismo educa o povo para que viva a imoralidade", Marinanela Balbi, El Nacional, 05/03/87, em Caracas. In: BROWN, 1994.

[2] Hospedeiro: categoria utilizada por Paulo Freire para designar a condição vivida pelo oprimido ao reproduzir o opressor. Ou seja, ao "hospedar" o opressor em si, os oprimidos agem como seres duplos, inautênticos (FREIRE, 1987).

Referências bibliográficas:

ANDRIOLI, Antônio I. Vontade geral e democracia: um estudo da democracia direta em Rousseau. Ijuí: Editora Unijuí: 2000.

BROWN, Guilhermo. Jogos cooperativos: teoria e prática. [Trad. de Rui Bender]. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1994.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª.  Edição. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1987.

GADOTTI, Moacir. Escola Cidadã. São Paulo: Editora Cortez, 1997.

MANENT, Pierre. História Intelectual do Liberalismo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1990.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. 3ª. Edição. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1988.

MARQUES, Mário Osório. Conhecimento e Modernidade em Reconstrução. Ijuí: Editora Unijuí, 1993.

PAIM, Sara. Diagnóstico e tratamento dos problemas da aprendizagem. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1992.

PIAGET, Jean. O raciocínio da criança. Trad. Valérie Rumjovek Chaves. Rio de Janeiro: Distribuidora Record de Serviços de Imprensa, 1967.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio ou da Educação. Introdução de Michel Launey; [revisão da tradução Monica Stahel}. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1995.

SCHNEIDER, José Odelso. A doutrina do cooperativismo nos tempos atuais. São Leopoldo: Editora Unisinos / CEDOPE, 1993. 

 

Antonio Inácio Andrioli

andrioli[arroba]espacoacademico.com.br

Professor do Mestrado em Educação nas Ciências da UNIJUÍ - RS. Doutor em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade de Osnabrück – Alemanha

Website: www.andrioli.com.br

Revista Espaço Acadêmico www.espacoacademico.com.br



 Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.