Desafios da prática de ensino de Filosofia no Ensino Fundamental



  1. A Filosofia como reflexão crítica da realidade
  2. O contexto da experiência prátic
  3. A Filosofia e as relações interativas em sala de aula
  4. Referências bibliográficas
  5. O Conselho de Alunos: uma idéia inovadora e conflituosa
  6. O significado da prática e sua contribuição para a superação do contexto
  7. O desafio da contínua reconstrução da proposta pedagógica
  8. Referências bibliográficas

Parte I

 

Os desafios da atualidade exigem cada vez mais criatividade e dinamicidade dos trabalhadores em educação, de forma que a reflexão da prática educativa pode ser compreendida como princípio edificador de mudanças. Nesse sentido, nos propomos a refletir nossa experiência prática realizada com alunos de 8ª. Série do Ensino Fundamental, em escola privada, na cidade de Santa Rosa – RS. Ao invés de compreender a Filosofia como uma disciplina de conteúdo e programa restrito, procuramos construir uma compreensão nova para o exercício de sua prática. Entendemos que a Filosofia pode cumprir um papel fundamental enquanto método de trabalho em educação, no sentido de estabelecer um espaço de construção da unidade entre os diversos campos do conhecimento existentes na escola, desenvolvendo uma nova relação de aprendizagem com os alunos, através de uma visão interdisciplinar e transdisciplinar da realidade.

1. A Filosofia como reflexão crítica da realidade.

Como método de trabalho, a Filosofia pode desenvolver uma maior capacidade de crítica do conhecimento, da escola, da sociedade e das relações humanas através de momentos privilegiados de debate em sala de aula. O contato com teorias contraditórias através de leituras e interpretações propicia um "novo olhar" para o mundo, entendendo que a "verdade" não é privilégio de um indivíduo ou de um grupo social, mas que sua busca depende da interlocução de sujeitos que se colocam na condição de pesquisadores, conscientes de que não conquistarão o conhecimento definitivamente, mas que, até por isso, estão dispostos a continuar procurando através de muito estudo e debate.

Ao tratarmos de educação, cidadania e construção de relações solidárias e democráticas entre os alunos, estamos pressupondo um conjunto de condições necessárias ao seu engajamento político e social. A oportunidade de expressão das idéias, o desejo de participar de debates, a busca da leitura como um prazer da vida e a valorização do progresso intelectual são fundamentais para a conquista de autonomia pelo ser humano. Só podemos compreender a liberdade humana se essa for uma relação de sujeitos que agem de forma autônoma. Sendo o conhecimento a base da ação livre, que implica em responsabilidade, a nossa atenção, como educadores deve estar voltada para os momentos concretos de atitudes livres dos alunos. Assim, a motivação do grupo de alunos para a reflexão da realidade e a tentativa de sua superação merece ser colocada como o centro da ação educativa. Por isso, o ponto de partida é a prática dos alunos e suas ações em sala de aula e na sociedade. A partir da análise da prática, a Filosofia aparece como um elemento inovador, porque permite o pensamento por contradição, que inicia um conjunto de reflexões possíveis acerca da dimensão concreta dos fatos e sua implicação com a utopia que coletivamente possamos almejar.

A construção de sujeitos que, no processo de discussão, possam se assumir como históricos e que, por isso, têm uma contribuição a dar ao mundo, foi a prioridade do nosso trabalho. O pensamento filosófico, entretanto, se coloca no nível do dever-ser, não se limitando à discussão de sua possível aplicabilidade em determinada realidade. "O filósofo não vê apenas como é, mas como deveria ser. Julga o valor da ação, sai em busca do significado dela. Filosofar é dar sentido à experiência. (...) A Filosofia é a possibilidade da transcendência humana, ou seja, a capacidade que só o homem tem de superar a situação dada e não escolhida. Pela transcendência o homem surge como ser de projeto, capaz de liberdade e de construir o seu destino". (ARANHA, 1993: 73, 75)

A contradição entre o ser e o dever-ser possibilita um processo de gradativa construção da consciência crítica e da utopia, fortalecendo a participação ativa de alunos que se sentem motivados a contribuir com a discussão. É um fato notório que no momento do debate aparece a indisciplina ou desorganização da discussão, com a maioria se manifestando ao mesmo tempo. No entanto, esse também é um fato que merece ser discutido pela Filosofia e a necessidade de sua superação novamente ocorre num processo de contradição, para a transformação da atitude, em direção ao que projetamos coletivamente, entre o grupo de alunos, como ideal de dever-ser ao espaço de debate. "Enquanto o imaginário reprodutor procura abafar o desejo de transformação, o imaginário utópico procura criar esse desejo em nós. Pela invenção de uma outra sociedade que não existe em lugar nenhum e em tempo nenhum, a utopia nos ajuda a conhecer a realidade presente e a buscar sua transformação. Em outras palavras, o imaginário reprodutor opera com ilusões, enquanto a imaginação criadora e a imaginação utópica operam com a invenção do novo e da mudança, graças ao conhecimento crítico do presente". (CHAUÍ, 1995: 136)

2. O contexto da experiência prática

O público alvo de nossa prática educativa são jovens, em sua maioria, entre 13 e 14 anos. As características da turma não diferem muito de grande parte da nova geração juvenil, que apresenta expectativas e comportamentos sugestionados por uma cultura centrada nos valores propagados pelos grandes meios de comunicação social. Tendo em vista que a escola em que realizamos a prática educativa possui um grande referencial na cidade e na região, muitos alunos manifestam um sentimento de superioridade em relação às demais escolas, até por sua condição econômica. As famílias dos alunos, em sua maioria, possuem boas condições de vida, oferecendo aos filhos o tempo e a estrutura necessária a um bom aproveitamento escolar.

Ao analisarmos a juventude como um todo, na qual os referidos alunos podem ser incluídos, um conjunto de características merecem nossa atenção para a realização de um trabalho crítico e reflexivo com uma geração que se interessa ainda menos por isso, se comparada a outras gerações. Sem dúvida, este foi um dos principais desafios de nosso trabalho: criar o gosto pela discussão e o interesse pelo conhecimento.

Para a juventude atual o desemprego se apresenta como o principal problema, e a faixa de maior exploração dos jovens está entre os 14 e 18 anos, período de muitas indecisões, carências e interesses diversos. Essa ausência de perspectiva de poder trabalhar coloca o jovem numa condição nova que, para toda a humanidade, passa a exercer uma forte influência no modo de perceber o sentido de sua vida. "Perdemos, com o desaparecimento da importância biográfica do trabalho como elemento de realização, uma espécie de capacidade cognitiva de distinguir entre realidade e ficção. (...) Como conseqüência, a vida humana é muito mais uma espécie de estilo existencial em que se imita aquilo que é representado nos meios de comunicação. O resultado disso será, novamente, a individualização das pessoas, que perdem a capacidade e o próprio fundamento para poderem sentir-se sustentadas por mundos da vida comuns". (STEIN, 1993: 28-29)

Apesar desse processo de individualização e crescente competição entre os jovens, ocorre a formação de pequenos grupos que se reúnem em função de interesses específicos e que passam a criar uma linguagem característica e fechada. Ali, a presença de gírias é constante e reforça a necessidade de criação de momentos de encontro, seja por carência afetiva, bem como para afirmação dos sujeitos que, não sabendo bem o que querem, precisam se identificar entre si e com alguma coisa.

Esse jovem é um sujeito que não quer ser rico, mas valoriza o "ter", para poder investir na moda. "Compra-se para ser mais ou igual aos outros". Cabe nisto também a constatação de que vivemos um período de massificação ou mundialização da cultura: os jovens de diferentes origens e crenças vivem os mesmos desejos alienados que os meios de comunicação, controlados a nível mundial, lhe despertam. Para compreender melhor essas questões, buscamos a contribuição de pesquisadores como Mário Osório Marques, Gontardo Calligaris, Edgar Morin, David Harvey, René Armand Dreifuss e Ernildo Stein.

Com a rejeição às pequenas cidades, reforça-se a cultura de que o bom sempre provém de fora. E, com o fenômeno de "imitação" de estilos de vida, onde as referências estrangeiras passam a ser colocadas como padrões a serem seguidos por aqueles que, sem esses, se sentem excluídos, o consumismo se reafirma como uma forma de dominação aos jovens. Parece que o velho cogito cartesiano do "penso, logo existo" passa a ser adaptado para "consumo, logo existo" e o status passa a ser colocado como o diferencial de classes. Aliás, para Gontardo Calligaris o luxo já é um aspecto constituinte do próprio ser moderno: "Os bens de luxo são a matéria simbólica da modernidade, ou seja, exatamente o que decide nossa organização social. (...) O luxo (do objeto de consumo até a cultura e o saber) declara quem somos para os outros e para nós mesmos. (...) A novidade moderna é que o acesso ao luxo (e não a nascença) decide da classe e do lugar social de cada um". (CALLIGARIS, 1997: 8) 

Isso se reproduz na escolha da profissão e, generalizando, na uniformização do gosto em função do que é reconhecido pelos outros. "A mundialização lida com a massificação e homogeneização cultural, evidente no consumo de hamburgers, pizzas, sorvetes, iogurtes, refrigerantes, cigarros, jeans, tênis, cartões, etc. (...) A mundialização é, portanto, do âmbito societário, embora no seu desdobramento condicione a economia e a política. Refere-se a valores e referências, a produtos e métodos desejados e passíveis de utilização, nos mais diversos países, sem ater-se à sua origem nacional ou cultural (na maioria dos casos, simplesmente desconhecendo-a), e transbordando ou atravessando culturas e estilos  existenciais e vivenciais".  (DREIFUSS, 1996: 138-139)

Nesse contexto, se reforça a cultura do investimento no imediato, pois é necessário curtir o momento em que determinada coisa está em evidência para se afirmar na sociedade enquanto sujeito. As metanarrativas ou as grandes utopias de sociedade presentes nos jovens da geração passada, agora são colocadas como findadas, marcando um período de sobrevalorização do presente. "Lidamos com indivíduos que se desconectam do seu passado e que não fazem nenhum tipo de vínculo com o futuro. Vivem apenas os momentos da sua inserção num determinado contexto que, por sua vez, parece inteiramente fluido, transitório e efêmero". (STEIN, 1993: 28). Harvey, citando Lyotard, define esse contexto simplesmente como "incredulidade diante das metanarrativas" (amplos esquemas interpretativos) agregando a isso a evaporação de todo sentido de continuidade e memória histórica. (HARVEY, 1992: 49-50) Em outra passagem, citando Jameson, Harvey se refere a um novo processo de alienação que ocorre em nossa época: "a alienação do sujeito é deslocada pela fragmentação do sujeito" e isso se deve à redução da experiência a "uma série de presentes puros e não relacionados no tempo". Idem: 57)


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