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Delação e escola: o caso da Escola Base (página 2)

Raymundo de Lima

Efeitos psíquicos e sociais da delação

O efeito da delação pode ser devastador a nível psicológico, social, moral, político. A vítima da delação, principalmente se for inocente, poderá nunca mais se livrar do sofrimento, da mágoa, às vezes precisará conviver com fobia e pânico e jamais confiará totalmente nas pessoas. A delação tem o poder de sabotar sólidos vínculos de companheirismo e amizades. "A delação produz uma crença clandestina que sapa a confiança das pessoas", diz o professor de ética da Unicamp, Roberto Romano. No campo político, geralmente a vítima se condena ao auto-isolamento e, dependendo da rigidez superegóica, alguns comentem suicídio como meio ilusório de resgatar a honra. Na Europa e na Ásia, cuja formação moral parece ser mais rigorosa do que nos países latino-americanos, são freqüentes as notícias de suicídios de políticos acusados de corrupção. Em algumas culturas, o suicídio é ainda tido como a única forma de resgate da dignidade perdida na dimensão social. No Japão, as escolas tradicionais incentivam a delação como meio disciplinador dos alunos e professores, além dela ser um importante instrumento de manutenção da rígida hierarquia escolar.

Nesse sistema fechado de regras, qualquer um é "autorizado" para ser delator em nome da tradição moralista, dos valores "certos", etc. Ser delator é se sentir incluído entre os "dominantes", mas certamente será odiado entre os "dominados". 

É preciso também considerar que a delação desencadeia um efeito duplo sobre o delator: por um lado, trata-se de um ato que certamente abala a confiança das pessoas tomadas como alvo e por outro, este mesmo ato pode retornar ao próprio delator, causando-lhe danos psicológicos (culpa, remorso) ou sociais (isolamento, rejeição). Não é sem sentido que, na Bíblia, Judas, arrependido de sua traição para com Jesus, se enforca. E, Silvério dos Reis passou para a nossa história como um infame.

Sobrevivido ao ato infame, o delatado jamais esquece o delator.  Aqueles que se identificaram com a vítima, também. Nas entrevistas que realizamos por ocasião da pesquisa para doutorado, os entrevistados revelaram que "fulana de tal" ficou marcada pelo meio acadêmico como delatora de um colega aos órgãos de repressão do regime militar pós-64. Seu brilhante currículo como professora, diretora e coordenadora de um projeto inovador de ensino de um importante estado da Federação, não pode evitar em seu currículo a nódoa da delação.

A nódoa imprimida pelo dedo-duro gera medo, precaução e desconfiança por todos, inclusive pelo poder que o acolheu. É verdade que a vítima fica marcada, mas o delator também, por ter fraquejado ou gratuitamente entregado o outro. Haverá sempre a desconfiança de que se ele usou de gesto tão infame uma vez, provavelmente, usará outras.

Alguma coisa está funcionando mal no sistema político quando a nação elege – ou aplaude – delatores e traidores como heróis da pátria e arautos da moralidade. Nessas horas, é preciso, sobretudo, desconfiar dos discursos moralistas de última hora da direita e da extrema-direita. A direita sempre foi moralista no discurso, cafajeste no jogo político e suja na vida privada de seus membros. A esquerda sempre se pautou pela ética, igualdade, justiça, solidariedade, etc., mas nem sempre logrou êxito no seu intento. 

É preciso desconfiar das alianças esquizofrênicas dos "princípios" da extrema direita e da extrema esquerda que se unem – tal como representa a faixa de Moebius – visando sabotar os pontos fracos da democracia e tirar proveito da sua crise para enganar o povo com slogans, moralismos e pose de pai autoritário ameaçando o Presidente com uma "surra". Veja como eles são ridículos quando fazem pose pra galera!

Contra a cultura da delação

Não estamos defendendo a corrupção, nem o caixa 2, nem a ladroagem, mas sim, a atitude prudente  e serena nas horas de crise. Em momentos de crise política, a serenidade é melhor do que se deixar levar pelo descontrole das paixões (a política é uma delas), dizia N. Bobbio. Há que se apurar os fatos para em seguida punir os responsáveis, mas não devemos reforçar a "moral cínica" que pretende fundar uma cultura de denúncia ou uma cultura de delação, incentivada pela mídia, premiada pelo aparelho judiciário, e silenciada pelos intelectuais burgueses que se pensam "a favor do proletariado". (Parafraseando Saramago, os próprios proletários não se vêem como tal; esse termo nada significa para eles, assim como o termo "utopia").

Pensando numa escola voltada para a sabedoria – e não apenas voltada para preparar os alunos para o Vestibular, ou dando-lhes conhecimento teórico ou um mínimo de técnica para servir ao mercado – teríamos alunos e cidadãos mais céticos, isto é, melhor preparados para resistir e questionar aquelas aulas cheias de opiniões, slogans, palavras de ordem, pregações, enfim, um discurso que, no fundo, serve apenas para formar cidadãos que trocam uma fé por outra. Aulas abstratas, supostamente críticas, podem ter resultados piores do que aulas supostamente alienadas, porque podem ter o poder despertar no aluno apenas ódio em vez da atitude prudente de pesquisador.

Uma universidade sustentada na verdadeira atitude crítica deveria estar ancorada na dúvida metódica, que, além de ser uma atitude necessária para se fazer ciência deveria também fornecer um estilo de ser plural, porque é preciso primeiramente compreender antes de discutir e debater muito antes de condenar.

Bibliografia consultada

ASSIS, M. Conto de Escola. São Paulo: Ática, 1970.

BARBOSA, L. O jeitinho brasileiro... Rio: Campus, 1992.

BOBBIO, N. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: UNESP, 2002).

CASTORIADIS, C. "Os destinos do totalitarismo". In: As encruzilhadas do labirinto. v. 2. Rio: Paz e Terra, 1987, pp.207-224.

CONY. C. H. "Delações premiadas". Folha de S. Paulo, 18/08/2005.

CUNHA, D. R. R. "Sobre Arapongas, Informantes, dedo-duros, etc." http://www.inf.ufsc.br/barata Email derneval[arroba]bigfoot.com Índice barata24.html

DOLTO, F. Como orientar seu filho. Ed.F. Alves,1988.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977.

________.  A verdade e as formas jurídicas. Rio: Cad. da PUC-Rio, Depto. Letras e Artes, 01/1978.

JORNAL do Brasil, 11/12/ 2004.

LA BOÉTIE, E. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1982.

REALIDADE [rev.] "Quem é o dedo duro?". São Paulo: Abril, julho/ 68, nº 28, pp. 88 a 99 [texto de João Antônio].

REBOUL, O. O slogan. São Paulo. Cultrix, 1983[?].

REICH, W. Psicologia de massa do fascismo. Porto: 1974. 

RIBEIRO, A. O Caso Escola Base - Os Abusos da Imprensa. São Paulo: Editora Ática, 1995.

ROMANO, R. Delação e boatos, sinais de barbárie [artigo disponível na Internet].

SAGAN, C. O mundo assombrado pelos demônios. A ciência vista como vela no escuro. São Paulo: C. Letras, 1996.

SILVEIRA, A. Grandes julgamentos da história. S. Paulo: Cultrix, 1969.

VIGNOLES, P. A perversidade. Campinas: 1991.

Filmes recomendados sobre delação, denuncia, e traição:

As bruxas de Salen,

Sindicato dos ladrões,

A onda,

Todos os homens do presidente – o Caso Watergate,

Testa de ferro por acaso (de W. Allen)

Dogville,

Acusação

O poderoso Chefão

Sem perdão

O informante

Cidadão Cohn

O casal Rosenberg

Donie Brasco

Parceiro da Noite (Cruising)

A confissão (de Costa Gravas)

 

Raymundo de Lima

Psicanalista, mestre em Psicologia Escolar (UGF) e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). professor do Depto. Fundamentos da Educação (DFE) da Universidade Estadual de Maringá (Pr), e voluntário do CVV-Samaritanos de Maringá (PR).

ray_lima[arroba]uol.com.br

Revista Espaço Acadêmico http://www.espacoacademico.com.br


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