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A crítica da hermenêutica e a hermenêutica da crítica (página 2)

Antonio Inácio Andrioli

2. A crítica das ideologias

Jürgen Habermas, como frankfurtiano, é de base marxista e coloca a dialética, a crítica como pressuposto básico da ciência. No entanto, realiza uma crítica interna no marxismo, entendendo que, por esta corrente teórica ter assumido o trabalho, a produção como categoria central, foi hipostasiada a categoria da ação instrumental (baseada no interesse prático e tecnológico), em detrimento de outras ações como a que o próprio Habermas preconiza: a ação comunicativa. Por outro lado, ele mantém a compreensão de que o marxismo é a forma mais avançada de metacrítica e que o interesse pela emancipação é o que regula a capacidade crítica. Segundo Paul Ricoeur, a crítica para Habermas, é "essa teoria da competência comunicativa que engloba a arte de compreender, as técnicas para vencer a não-compreensão e a ciência explicativa das distorções" (Idem: 128)

Em contraposição a Gadamer, Habermas afirma que o maior problema da hermenêutica das tradições é a ontologização da própria hermenêutica. Para Habermas, a idéia do consenso como algo dado na história, a partir da experiência de diálogo que a humanidade possui, não pode servir de modelo para a ação comunicativa. É necessário reconhecer que há distorções na linguagem, movidas por interesses, que impedem o perfeito diálogo e a emancipação humana. Por entender que é necessário superar as interferências da ideologia na linguagem é que Habermas intitula sua teoria como crítica das ideologias. Uma das diferenças fundamentais com Gadamer é que enquanto para este o diálogo está dado, é uma condição, na teoria da ação comunicativa ele passa a ser uma idéia reguladora, um dever-ser para o futuro : "Compete a uma crítica das ideologias pensar em termos de antecipação aquilo que a hermenêutica das tradições pensa em termos de tradição assumida. Em outros termos, a crítica das ideologias implica que coloquemos como idéia reguladora, adiante de nós, o que a hermenêutica das tradições concebe como existindo na origem da compreensão." (Idem: 128).

Além desta oposição básica, Paul Ricoeur apresenta outras três: a) no lugar do conceito de preconceito de Gadamer, trazido do romantismo e reinterpretado com a teoria de Heidegger, Habermas apresenta o conceito de interesse, baseado na crítica marxista; b) ao invés das ciências do espírito, baseadas na reinterpretação da tradição, Habermas utiliza as ciências sociais críticas, como contraposição às reificações institucionais; c) no lugar da não-compreensão, como problema de entendimento, é colocada a teoria das ideologias, explicitando as interferências da dominação na linguagem.

A tarefa do filósofo, ao invés de elevar a consciência histórica e trazê-la para o presente, de acordo com a hermenêutica das tradições, na crítica das ideologias é desmascarar os interesses que impedem a realização humana e pautar a construção da linguagem sem limite e coação. São três os interesses que, conforme Paul Ricoeur, Habermas apresenta como constitutivos das diversas ciências: a) o interesse técnico, baseado nas ciências empírico-analíticas; b) o interesse prático, que constrói a esfera da comunicação a partir das ciências histórico-hermenêuticas; c) o interesse pela emancipação, constituído pelas ciências sociais críticas.

Com o reconhecimento da presença da ideologia na linguagem são apresentados dois elementos que a hermenêutica não aborda: o trabalho e o poder. Para Habermas é dali que partem os interesses que afetam o livre entendimento. Ou seja, a interferência das instituições na linguagem gera a "compreensão sistematicamente distorcida", produzindo a dominação entre os homens. Estando alterada a relação entre trabalho, poder e linguagem, essa situação limita uma hermenêutica que se restringe ao entendimento da linguagem. "O conceito de ideologia ocupa, numa ciência social crítica, o lugar que ocupa o conceito de mal-entendido, de não-compreensão, numa hermenêutica das tradições. (...) Estes são os traços principais do conceito de ideologia: impacto da violência no discurso, dissimulação cuja chave escapa à consciência e necessidade do desvio para a explicação das causas. Mediante esses três traços, o fenômeno ideológico constitui uma experiência para a hermenêutica". (Idem: 124-125,127-128).

O decisivo é colocar a crítica acima do reconhecimento da autoridade, da consciência de finitude, da pré-compreensão que ignora e sufoca a instância crítica: "A instância crítica se situa, assim, acima da ‘dissolução’ das coações oriundas, não da natureza, mas das instituições. Um abismo separa, assim, o projeto hermenêutico, que coloca a tradição assumida acima do juízo, e o projeto crítico, que situa a reflexão acima da coação institucionalizada". (Idem: 124).

3. A construção da síntese: a tarefa filosófica anunciada por Paul Ricoeur.

O trabalho de Paul Ricoeur é uma tentativa de abordar os problemas relativos ao significado da atitude filosófica na hermenêutica e na dialética. Ou seja, o gesto hermenêutico como crítica das ideologias, levando em consideração "as condições históricas a que está submetida a compreensão humana sob o domínio da finitude" e o desafio de se contrapor diante das distorções que emergem no ato da comunicação.

No primeiro caso, a tarefa é de reconhecimento do "devir histórico" no qual todos os seres humanos estão incluídos; no segundo, é necessária a oposição à situação de dominação exercida pela ideologia na linguagem. Cada paradigma pressupõe um ponto de vista diferente, pois ambos abordam problemas diferentes. A grande tarefa anunciada por Paul Ricoeur é construir uma síntese que permita o reconhecimento mútuo das duas teorias, sem simplificações e preservando a identidade de cada pensamento.

Levantando uma reivindicação legítima, ele retoma as questões fundamentais a que se propõe discutir. A primeira, diz ele, "em que condição pode uma filosofia hermenêutica dar conta de si mesma da exigência de uma crítica das ideologias? A preço de que reformulações ou de uma crítica refundição do seu programa?" A segunda se refere ao seguinte problema: "em que condição é possível uma crítica das ideologias? Em última análise, poderá ela ser dissipada de pressupostos hermenêuticos?"

A hermenêutica das tradições centra sua ação no movimento de retorno, na afirmação da consciência histórica. Durante esse processo, ela se ontologiza e nega a possibilidade da crítica, pela negação do distanciamento alienante e a afirmação da sua universalidade, fundada na tese da historicidade. O caminho que poderia preceder uma abertura acaba fechando-se e "primando pela conjunção". O que Paul Ricoeur propõe como alternativa é a possibilidade de considerar a relação dialética entre a consciência histórica e a crítica como matriz fundante da hermenêutica: "O que me pergunto é se não conviria deslocar o lugar inicial da questão hermenêutica, de tal forma que certa dialética entre a experiência de pertença e o distanciamento alienante torne-se a própria mola, a chave da vida interna da hermenêutica". (Idem: 134).

O caminho apontado parece oportuno e convincente ao reconhecer que o distanciamento é uma condição para a interpretação sem, para isso, negar a historicidade. No ato de leitura de um texto, por exemplo, o distanciamento dele é que permite a sua interpretação. Após escrito, o texto ganha autonomia, "vida própria" em relação ao autor e, mesmo para este, que lê novamente sua produção teórica, é perceptível um novo sentido atribuído. É essa a riqueza da hermenêutica, o sentido da interpretação que gera a pluralidade dos atos de leitura e escrita. E, aqui se dá a identificação da presença da crítica na hermenêutica: "Podemos ver nessa liberação a mais fundamental condição para o reconhecimento de uma instância crítica no interior da interpretação. Porque, aqui, o distanciamento pertence à própria mediação. O distanciamento revelado pela escrita já está presente no próprio discurso que mantém, em germe, o distanciamento do dito ao dizer" (Idem: 136).

Ao considerarmos o processo de escrita, leitura e discurso como um momento integrado e não particularizado, o que interessa é a obra produzida. O movimento hermenêutico que trabalha com a obra, opera como mediação, coincidindo com a práxis, uma categoria da dialética, portanto, da crítica. A compreensão do discurso da obra é fruto de uma permanente reconstrução, reelaboração da própria obra e é nisso que consiste a hermenêutica quando não transformada em ontologia. Para Paul Ricoeur, "A hermenêutica deve superar a dicotomia danosa, herdada de Dilthey, entre ‘explicar’ e ‘compreender" (Idem: 136).

Se a hermenêutica decorre da mediação, Ricoeur se atreve a dizer que verdade e método não são categorias isoladas, mas constituem uma oposição de caráter dialético. "A coisa do texto não é aquilo que uma leitura ingênua do texto revela, mas aquilo que o agenciamento formal do texto mediatiza. Se é assim, verdade e método não constituem uma alternativa, porém, um processo dialético" (Idem: 137). Com esse entendimento, Ricoeur preconiza o momento hermenêutico como uma abertura, através da interrogação sobre o sentido do texto: "O sentido da obra é sua organização interna, sua referência é o modo de se manifestar diante do texto" (Idem: 137).

A partir daí está apresentada a condição de crítica da hermenêutica e o reconhecimento da presença da subjetividade na interpretação. Se o sentido é atribuído na mediação do intérprete com o texto, numa fusão de horizontes, com caráter inesgotável, o modo de ser do mundo constitui um poder-ser. Não havendo sentido oculto no texto, mas sim abertura a uma nova dimensão do real, está permitido o caminho de negação da realidade dada, da situação de distorção que impede o diálogo. Nessa perspectiva, Ricoeur afirma que a crítica das ideologias pode ser entendida como parte integrante da hermenêutica, ou seja, com a crítica da hermenêutica se conclui que a hermenêutica contém a crítica como potencial de superação de si mesma: "A crítica da consciência falsa pode tornar-se, assim, parte integrante da hermenêutica e conferir à crítica das ideologias a dimensão meta-hermenêutica que Habermas lhe assinala" (Idem: 139).

Mas, se a crítica é apresentada como uma possível meta-hermenêutica, sob que condições ela acontece? E, por outro lado, é válida a poposição de Gadamer de que as universalidades da crítica das ideologias e da hermenêutica se interpenetram? Com base nessas questões é que Paul Ricoeur tenta demonstrar que na crítica existe a hermenêutica.

Voltamos a afirmar que as duas teorias partem de lugares distintos. Enquanto a crítica das ideologias se ocupa da relação entre trabalho poder e linguagem, a hermenêutica das tradições é centrada na interpretação da finitude humana. No entanto, embora o ponto de partida seja diferente, Paul Ricoeur aponta um lugar comum, como um cruzamento das duas teorias, a saber: "a hermenêutica da finitude que assegura, a priori, a correlação entre o conceito de preconceito e o de ideologia" (Idem: 141). Por isso, a análise que Habermas faz dos interesses, constituindo a base da crítica das ideologias, é um processo de reconhecimento, desocultando o interesse técnico, o interesse prático e o interesse pela emancipação, que estão imersos na história, na tradição humana. "Esses interesses se enraízam na história natural da espécie humana, embora enfatizem a emergência do homem acima da natureza e assumam forma no meio do trabalho, do poder e da linguagem" (Idem: 140).

O interesse pela emancipação, que move a crítica das ideologias, situa-se na base de atuação das ciências histórico-hermenêuticas: a comunicação. É no reconhecimento desse espaço que se constitui a idéia reguladora do diálogo sem distorções, livre da dominação. Ora, a comunicação é uma herança cultural da humanidade que é criada e recriada pela interpretação humana. O ideal da comunicação de Habermas, nada mais é do que uma antecipação, que depende da hermenêutica mesmo para ser anunciada como tal: "Não podemos antecipar simplesmente no vazio, um dos lugares da exemplificação do ideal da comunicação é justamente nossa capacidade de vencer a distância cultural na interpretação das obras recebidas do passado. É bem provável que quem não é capaz de reinterpretar seu passado, também não seja capaz de projetar concretamente seu interesse pela emancipação" (Idem: 142).

Para Habermas a crítica se coloca acima da hermenêutica. Em outras palavras, a reflexão está acima da coação. Essa capacidade de crítica, para ele, decorre do interesse pela emancipação. Mas, de onde parte esse interesse pela emancipação? A pergunta remete novamente à ação comunicativa. E onde se funda o "despertar da ação comunicativa?" Para Paul Ricoeur, a resposta é precisa: na "retomada criadora das heranças culturais". Reside aí o grande ponto de unidade entre a crítica das ideologias com a hermenêutica, quando chegamos a admitir que para a crítica operar ela possui, como substrato, a hermenêutica.

Ao finalizar, Paul Ricoeur ainda chama a atenção para a resolução de um aspecto que parece central para a diferenciação entre a hermenêutica das tradições e a crítica das ideologias. Retomando toda sua exposição das duas teorias ele resume dizendo que a hermenêutica é baseada no consenso presente na história da linguagem humana, no "diálogo que somos nós"; e, a crítica das ideologias, projeta um vir-a-ser: o ideal da ação comunicativa, através da emancipação da linguagem. É essa, de fato, a grande diferença e que deve ser mantida. Porém, quando Habermas fala da emancipação ele a relaciona com a auto-reflexão. Conforme Paul Ricoeur, "a auto-reflexão é o conceito correlato do interesse pela emancipação". Qual seria o lugar da auto-reflexão? Para Paul Ricoeur, esse lugar é a tradição, ou seja, exatamente esse lugar tão contestado pela crítica. Poderia se debater sobre que tradição é essa, se é a tradição do iluminismo em confronto com a do romantismo ou com base nas muitas contradições da história do pensamento humano. Mas não há como fugir da tradição e, em última instância, a crítica também é uma tradição. "É do fundo de uma tradição que vocês falam. É uma tradição, a tradição da emancipação, mais que a tradição da rememoração. (...) Talvez não houvesse mais interesse pela emancipação, mais antecipação da libertação, se fosse apagada do gênero humano a memória do Êxodo, a memória da ressurreição" (Idem: 145).

A ação empreendida por Paul Ricoeur é de uma originalidade marcante. Desde o início da sua abordagem o anúncio de uma possível síntese entre duas teorias em conflito não parte de uma tentativa de simplificação ou ecletismo teórico. Por outro lado, também não há a pretensão de negação de uma ou outra posição, nem a pretensão de sufocar as diferenças que permanecem nas duas grandes vertentes teóricas da filosofia contemporânea.

O que o autor realmente consegue desenvolver, e aí está sua verdadeira originalidade, é a tarefa de olhar para a hermenêutica com base na teoria da crítica das ideologias e, num segundo momento, refletir a crítica das ideologias através dos pressupostos da hermenêutica. A impressão que se tem, ao ler o texto de Ricoeur, é que se presencia um rico debate entre as duas teorias como se, de fato, ali estivessem inscritos os representantes das referidas correntes de pensamento. Tamanha é a capacidade de posicionamento e discernimento de Ricoeur, evidentemente desenvolvidas ao longo de muitos estudos e debates acadêmicos sobre o tema.

O rigor teórico ao tratar as categorias e o método de apresentação do texto são de uma precisão elogiável, o que facilita o entendimento ao leitor. Com certeza, o texto é de um valor acadêmico inestimável, não só pelo sucesso da ação empreendida, ou seja, a apresentação de uma síntese válida para duas teorias em conflito, mas pelo ensinamento que deixa como reflexão para os filósofos que todos podemos ser: "É a tarefa da reflexão filosófica colocar ao abrigo das oposições enganadoras o interesse pela emancipação das heranças culturais recebidas do passado e o interesse pelas projeções futuristas de uma humanidade libertada" (Idem: 146).

 

Antonio Inácio Andrioli

andrioli[arroba]espacoacademico.com.br

Professor do Mestrado em Educação nas Ciências da UNIJUÍ - RS. Doutor em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade de Osnabrück – Alemanha

Website: www.andrioli.com.br

Revista Espaço Acadêmico

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