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O Combate à Corrupção no Brasil (página 2)

Emerson Garcia

 

É fácil constatar que a generalidade da Medida Provisória não conseguiu encobrir o seu real destinatário: o Ministério Público. Para justificar o abuso na edição de medidas provisórias, o Sr. Presidente da República, em cadeia nacional de televisão, declarou que a MP no 2.088-35/00 era necessária para conter os abusos de alguns membros do Ministério Público.

Com essa farisaica e extravagante explicação, o Chefe do Executivo Federal, que jurou defender a Constituição da República, tentou aniquilar o mais eficaz instrumento de combate à corrupção posto à disposição da sociedade brasileira, simplesmente para punir alguns abusos. Nas hipóteses de abuso – se é que algum existiu – a lei é pródiga em punições, estando o autor sujeito a sanções de ordem civil, criminal e disciplinar, logo, inexistia qualquer justificativa idônea para atingir uma Instituição que tem a incumbência de defender a ordem jurídica e o regime democrático.

Essa Medida Provisória, longe de representar uma mera opção política ou uma resposta necessária aos anseios da comunidade, talvez seja um dos mais graves atentados à incipiente democracia pátria. Ao invés de municiar aqueles que estão entrincheirados na luta contra a corrupção, o Executivo apontou-lhes pesada artilharia; em lugar de um escudo, pintou-lhes um alvo no peito. Esse fato, no entanto, não passou despercebido à opinião pública, o que levou o Sr. Presidente da República, ante a avalanche de críticas, a introduzir modificações na reedição subsequente da Medida Provisória no 2.088. Nesta reedição, no entanto, foi mantida a fase prévia, o que, ainda hoje, consubstancia um percalço diuturnamente enfrentado para a concreção das sanções da Lei de Improbidade.

Esse lamentável episódio não deve ser esquecido. Pelo contrário, merece ser objeto de constante e contínua reflexão, sendo um marco significativo de duas vertentes opostas: a certeza de que os governantes não hesitarão em retaliar todos aqueles que ousem combater a corrupção e a importância da opinião pública, que não permaneceu silente ao constatar que estava na iminência de ver enfraquecido o maior algoz da corrupção no Brasil.

Outro exemplo é a persistência daqueles que lutam por estender às ações de improbidade o foro por prerrogativa de função previsto na esfera criminal. Acostumados com essa regra de exceção que, a nosso ver, sequer deveria existir em um País que se diz democrático, sonham em transferir à esfera cível a impunidade que assola a seara criminal. Não que a impunidade também não seja a regra em termos de combate à improbidade, mas, sim, porque os arautos da "tese da prerrogativa" há muito perceberam que são grandes as perspectivas de alteração desse quadro. Pergunta-se: quem deseja a manutenção do status quo, a população ou aqueles que se acostumaram e pensam em institucionalizar a confortável sensação de liberdade que a garantia da impunidade lhes causa? Alguém seria ingênuo o suficiente para não perceber as conseqüências que a pretendida alteração legislativa causaria no combate à improbidade? Basta afirmar que as investigações e a conseqüente propositura das ações deixariam de ser realizadas por milhares de Promotores de Justiça e Procuradores da República e passariam a ser concentradas nas mãos de alguns poucos Chefes institucionais, diga-se de passagem, escolhidos pelo Chefe do Executivo, o que acrescenta um indesejável componente político à estrutrura organizacional do Ministério Público - mau-vezo que os defensores da "tese da prerrogativa" teimam em não extirpar.

Resistências à parte, foi editada a Lei nº 10.628, de 24 de dezembro de 2002, que conferiu nova redação ao parágrafo 2º do art. 84 do Código de Processo Penal (!?) e estendeu às ações de improbidade o foro por prerrogativa de função consagrado na esfera criminal. Por ser basilar que a legislação infraconstitucional somente pode elastecer a competência dos Tribunais quando expressamente autorizada pela Constituição, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do preceito. O "esforço", no entanto, não foi em vão. Essa singela alteração legislativa paralisou a grande maioria das ações de improbidade que tramitavam em todo o País, contribuindo para o desvanecimento de provas e a dilapidação de patrimônios, isto para não falar na formação de códigos paralelos de conduta, pois a indefinição do juízo competente inviabilizava a adoção de medidas coercivas sobre a esfera jurídica alheia, sedimentando uma confortável sensação de impunidade.

A tese, que continua a ser discutida no Congresso Nacional, desta feita no âmbito de uma reforma constitucional, perdeu muito do seu "brilho". Explica-se: se em passado recente discutia-se o juízo competente para julgar os altos escalões do poder pela prática de atos de improbidade, hoje já se nega a própria possibilidade de virem a praticá-los. Essa interessante linha argumentativa foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal por meio da Reclamação nº 2.138/2002, alegando-se que: (1) o Tribunal é competente para processar os Ministros de Estado por crime de responsabilidade, (2) qualquer atentado à probidade configura crime de responsabilidade e, conseqüentemente, (3) o juiz federal de primeira instância, ao reconhecer-se competente para julgar Ministro de Estado, que utilizara aviões da FAB para desfrutar momentos de lazer em Fernando de Noronha (praxe administrativa, segundo o agente), usurpou a competência do Tribunal.

Apesar de o resultado da Reclamação já estar definido, o acolhimento da tese ainda permanece em aberto, já que o Tribunal sofreu consideráveis alterações em sua composição. O teor dos debates, no entanto, ainda deixa dúvidas se o Tribunal compactuará com a possibilidade de os altos escalões do poder responderem por atos de improbidade. Acresça-se ser igualmente factível que se estabeleça uma espécie de "apartheid jurídico": os agentes políticos que, nos crimes de responsabilidade, tenham o foro por prerrogativa de função previsto na Constituição, não praticam atos de improbidade; os demais (leia-se: os Prefeitos Municipais) sim.

À luz desse quadro, parece-nos relevante demonstrar o equívoco da tese (óbvio, não fosse o fato de ter sido acolhido pelo Supremo Tribunal Federal) e, principalmente, a sua discrepância em relação ao papel diuturnamente desempenhado pela jurisdição constitucional na interpretação da Constituição. Com isto, espera-se demonstrar o pesado fardo a ser deixado pelo Supremo Tribunal Federal para a população brasileira, pois, como afirmou o Ministro Carlos Velloso, essa tese "é um convite para a corrupção".

2. Natureza jurídica das sanções cominadas na Lei de Improbidade.

Com o evolver das civilizações e a constante mutação das relações intersubjetivas, foi inevitável o aperfeiçoamento do regramento social. Outrora de proporções reduzidas, ao alcance e sob o controle de todos; hodiernamente, afigura-se eivado de complexidade ímpar, culminando em ser aglutinado em compartimentos normativos, os quais se encontram subdivididos conforme a natureza e a importância dos interesses tutelados.

Com esteio em tal concepção, formulou-se a dicotomia entre o público e o privado, bem como a inevitável repartição de cada um desses ramos consoante graus de especificidade que identificavam as novas ramificações como espécies do mesmo gênero, com pontos comuns de contato, mas igualmente com dissonâncias que desaconselhavam a análise e a disciplina de forma conjunta. No entanto, qualquer que seja o ramo em que esteja armazenada a norma de conduta, ela normalmente apresenta um componente indissociável, qual seja, uma sanção para a sua inobservância.

A sanção será passível de aplicação sempre que for identificada a subsunção de determinada conduta ao preceito proibitivo previsto de forma explícita ou implícita na norma. A sanção, pena ou reprimenda apresenta-se como o elo de uma grande cadeia, cujo desdobramento lógico possibilita a concreção do ideal de bem-estar social; caracterizando-se, ainda, como instrumento garantidor da soberania do direito, concebido este não como mero ideal abstrato, mas como fator perpétuo e indissociável do bem-estar geral.

Como se vê, sob o prisma ôntico, não há distinção entre as sanções cominadas nos diferentes ramos do direito, quer tenham natureza penal, civil, política ou administrativa, pois, em essência, todas visam a recompor, coibir ou prevenir um padrão de conduta violado, cuja observância apresenta-se necessária à manutenção do elo de encadeamento das relações sociais.

Sob o aspecto axiológico, por sua vez, as sanções apresentarão diferentes dosimetrias conforme a natureza da norma violada e a importância do interesse tutelado, distinguindo-se, igualmente, consoante a forma, os critérios, as garantias e os responsáveis pela aplicação. Em suma, as sanções variarão em conformidade com os valores que se buscou preservar.

Caberá ao órgão incumbido da produção normativa, direcionado pelos fatores sócio-culturais da época, identificar os interesses que devem ser tutelados e estabelecer as sanções em que incorrerão aqueles que os violarem. Inexistindo um elenco apriorístico de sanções cuja aplicação esteja adstrita a determinado ramo do direito, torna-se possível dizer que o poder sancionador do Estado forma um alicerce comum, do qual se irradiam distintos efeitos, os quais apresentarão peculiaridades próprias conforme a seara em que venham a se manifestar.

No direito positivo pátrio, não são encontrados parâmetros aptos a infirmar a regra geral acima exposta, existindo unicamente sanções que são preponderantemente aplicadas em determinado ramo do direito. À guisa de ilustração, pode-se mencionar:

a) o cerceamento da liberdade do cidadão, normalmente sanção de natureza penal (art. 5º, XLVI, CR/1988), também é passível de ser utilizado como sanção contra o depositário infiel e o inadimplente do débito alimentar (art. 5º, LXVII, da CR/1988), erigindo-se como eficaz meio de coerção para o cumprimento de tais obrigações e, igualmente, como sanção disciplinar em relação aos militares, não podendo ser afastado nem mesmo com a utilização do habeas corpus (art. 142, § 2º, da CR/1988);

b) a infração aos deveres funcionais pode acarretar para o servidor público a perda do cargo, que poderá caracterizar uma sanção de natureza cível (art. 37, § 4º, da CR/1988), administrativa (art. 41, § 1º, II e III, da CR/1988) ou penal (art. 5º, XLVI, da CR/1988);

c) a suspensão dos direitos políticos pode apresentar-se como conseqüência de uma sanção penal (art. 15, III, da CR/1988) ou de uma sanção política (art. 85 da CR/1988 e Lei nº 1.079/1950).

No âmbito específico da improbidade administrativa, tal qual disciplinada na Lei nº 8.429/1992, as sanções serão aplicadas por um órgão jurisdicional, com abstração de qualquer concepção de natureza hierárquica, o que afasta a possibilidade de sua caracterização como sanção disciplinar (rectius: administrativa).

De acordo com o art. 12, a perda de bens ou valores de origem ilícita, o ressarcimento do dano, a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos, a multa civil e a proibição de contratar ou receber incentivos do Poder Público, são passíveis de aplicação por um órgão jurisdicional, restando analisar se possuem natureza penal ou cível (rectius: extrapenal). À luz do direito posto, inclinamo-nos por esta última, alicerçando-se tal concepção nos seguintes fatores:

a) o art. 37, § 4º, in fine, da Constituição, estabelece as sanções para os atos de improbidade e prevê que estas serão aplicadas de acordo com a gradação prevista em lei e "sem prejuízo da ação penal cabível";

b) regulamentando esse dispositivo constitucional, dispõe o art. 12, caput, da Lei nº 8.429/1992 que as sanções serão aplicadas independentemente de outras de natureza penal;

c) as condutas ilícitas elencadas nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei de Improbidade, ante o emprego do vocábulo "notadamente", tem caráter meramente enunciativo, o que apresenta total incompatibilidade com o princípio da estrita legalidade que rege a seara penal, segundo o qual a norma incriminadora deve conter expressa e prévia descrição da conduta criminosa;

d) o processo criminal atinge de forma mais incisiva o status dignitatis do indivíduo, o que exige expressa caracterização da conduta como infração penal, sendo relevante frisar que ela produzirá variados efeitos secundários;

e) a utilização do vocábulo "pena" no art. 12 da Lei nº 8.429/1992 não tem o condão de alterar a essência dos institutos, máxime quando a similitude com o direito penal é meramente semântica;

f) a referência a "inquérito policial" constante do art. 22 da Lei nº 8.429/1992 também não permite a vinculação dos ilícitos previstos neste diploma legal à esfera penal, já que o mesmo dispositivo estabelece a possibilidade de o Ministério Público requisitar a instauração de processo administrativo e não exclui a utilização do inquérito civil previsto na Lei nº 7.347/85, o que demonstra que cada qual será utilizado em conformidade com a ótica de análise do ilícito e possibilitará a colheita de provas para a aplicação de distintas sanções ao agente;

g) a aplicação das sanções elencadas no art. 12 da Lei de Improbidade pressupõe o ajuizamento de ação civil (art. 18), possuindo legitimidade ativa ad causam o Ministério Público e o ente ao qual esteja vinculado o agente público, enquanto que as sanções penais são aplicadas em ações de igual natureza, tendo legitimidade, salvo as exceções constitucionais, unicamente o Ministério Público.

Em que pese à sua natureza extrapenal, a aplicação das sanções cominadas na Lei de Improbidade, não raro, haverá de ser direcionada pelos princípios básicos norteadores do direito penal, que sempre assumirá uma posição subsidiária no exercício do poder sancionador do Estado, já que este, como visto, deflui de uma origem comum, e as normas penais, em razão de sua maior severidade, outorgam garantias mais amplas ao cidadão.

A questão ora estudada, longe de apresentar importância meramente acadêmica, possui grande relevo para a fixação do rito a ser seguido e para a identificação do órgão jurisdicional competente para processar e julgar a lide, já que parcela considerável dos agentes ímprobos goza de foro por prerrogativa de função nas causas de natureza criminal.

Identificada a natureza cível das sanções a serem aplicadas, inafastável será a utilização das regras gerais de competência nas ações que versem sobre improbidade administrativa, o que culminará em atribuir ao Juízo monocrático, verbi gratia, o processo e o julgamento das causas em que o Presidente da República, o Procurador-Geral da República, Senadores, Deputados Federais, Prefeitos, Conselheiros dos Tribunais de Contas, membros dos Tribunais Regionais do Trabalho e Juízes de Tribunais Regionais Federais figurem no pólo passivo.

Há quem procure sustentar a aplicabilidade do foro por prerrogativa de função nesta seara sob o argumento de que a severidade das sanções cominadas o justificaria, pois teriam "forte conteúdo penal". Essa tese, no entanto, possui maior alicerce na emoção que propriamente na razão. Com efeito, o caráter penal ou extrapenal de determinada sanção, como vimos, é determinado pela opção política do legislador, não propriamente por sua severidade (rectius: real perspectiva de efetividade, o que em muito justifica o temor de alguns). Além disso, não se nos afigura possível igualar, porquanto vegetais, frutas e leguminosas, pois cada qual possui suas características intrínsecas. A competência, do mesmo modo, e isto é importante repetir, é determinada em conformidade com a natureza da matéria versada, o que impede a extensão do foro por prerrogativa de função, sob os auspícios de uma pseudo "força de compreensão", às ações de natureza cível.

3. Atos de improbidade e crimes de responsabilidade: noções distintas e inconfundíveis

A tese de que a Lei de Improbidade veicularia crimes de responsabilidade encontrou pouco prestígio na doutrina e nenhuma adesão na jurisprudência. A primeira dificuldade que se encontra é identificar o que venham a ser crimes de responsabilidade, proposição que enseja não poucas dúvidas e perplexidades. Para o Presidente da República, crime de responsabilidade é uma infração político-administrativa que o sujeita a um julgamento político (sem necessidade de fundamentação) perante o Senado Federal. Para o Ministro de Estado, é uma infração associada a atos políticos e administrativos que o sujeita a um julgamento totalmente jurídico (com a necessidade de fundamentação) perante o Supremo Tribunal Federal. Para o Prefeito Municipal, é um crime comum, que o expõe a uma pena de prisão. E para os Senadores, Deputados e Vereadores? Não é nada. Em outras palavras, esses agentes não se enquadram na tipologia dos crimes de responsabilidade, estando sujeitos, unicamente, ao controle político realizado no âmbito do próprio Parlamento, o que, eventualmente, pode resultar na perda do mandato.

A partir dessa constatação inicial, já se pode afirmar que a "tese" prestigiada por inúmeros Ministros do Supremo Tribunal Federal não comporta uma resposta linear, pois, para alguns agentes, o crime de responsabilidade ensejará um julgamento jurídico e, para outros, um julgamento político, isto para não falarmos daqueles que sequer são alcançados pela tipologia legal.

Avançando nos alicerces estruturais da curiosa e criativa "tese", argumenta-se que boa parte dos atos de improbidade definidos na Lei nº 8.429/1992 encontra correspondência na tipologia da Lei nº 1.079/1950, que trata dos crimes de responsabilidade, o que seria suficiente para demonstrar que a infração política absorveria o ato de improbidade. Além disso, o próprio texto constitucional, em seu art. 85, V, teria recepcionado esse entendimento ao dispor que o Presidente da República praticaria crime de responsabilidade sempre que atentasse contra a probidade na Administração, possibilitando o seu impeachment. Como o parágrafo único do último preceito dispõe que esse tipo de crime seria definido em "lei especial", nada mais "natural" que concluir que a Lei de Improbidade faz às vezes de tal lei. Afinal, se é crime de responsabilidade atentar contra a probidade, qualquer conduta que consubstancie improbidade administrativa será, em última ratio, crime de responsabilidade.

Com a devida vênia daqueles que encampam esse entendimento, não tem ele a mínima plausibilidade jurídica. Inicialmente, cumpre manifestar um certo alívio na constatação de que os crimes contra a Administração Pública tipificados em "leis especiais", que consubstanciam evidentes manifestações de desprezo à probidade, não foram considerados crimes de responsabilidade!

O impeachment, desde a sua gênese, é tratado como um instituto de natureza político-constitucional que busca afastar o agente político de um cargo público que demonstrou não ter aptidão para ocupar. Os crimes de responsabilidade, do mesmo modo, consubstanciam infrações políticas, sujeitando o agente a um julgamento de igual natureza. Nesse sentido, aliás, dispunha a Exposição de Motivos que acompanhava a Lei nº 1.079/1950, ao tratar do iter a ser seguido na persecução dos crimes de responsabilidade, que "ao conjunto de providências e medidas que o constituem, dá-se o nome de processo, porque este é o termo genérico com que se designam os atos de acusação, defesa e julgamento, mas é, em última análise, um processo sui generis, que não se confunde e se não pode confundir com o processo judiciário, porque promana de outros fundamentos e visa outros fins".

Entender que ao Legislativo é defeso atribuir conseqüências criminais, cíveis, políticas ou administrativas a um mesmo fato, inclusive com identidade de tipologia, é algo novo na ciência jurídica. Se o Constituinte originário não impôs tal vedação, será legítimo ao pseudo-intérprete impô-la? E o pior, é crível a tese de que a Lei nº 1.079/1950 é especial em relação à Lei nº 8.429/1992, culminado em absorver a última? Não pode o agente público responder por seus atos em diferentes esferas, todas previamente definidas e individualizadas pelo Legislador? Como é fácil perceber, é por demais difícil sustentar que uma resposta positiva a esses questionamentos possa ser amparada pela Constituição, pela moral ou pela razão.

Não se pode perder de vista que a própria Constituição fala, separadamente, em "atos de improbidade" e em "crimes de responsabilidade", remetendo a sua definição para a legislação infraconstitucional. Como se constata, por imperativo constitucional, as figuras coexistem. Além disso, como ensejam sanções diversas, a serem aplicadas em esferas distintas (jurisdicional e política), não se pode falar, sequer, em bis in idem.

Com escusas pela obviedade, pode-se afirmar que a Lei nº 1.079/1950 é a lei especial a que refere o parágrafo único do art. 85 da Constituição, enquanto a Lei nº 8.429/1992 é a lei a que se refere o parágrafo 4º do art. 37.

Os agentes políticos, assim, são sujeitos ativos em potencial dos atos de improbidade, conclusão, aliás, que encontra ressonância na termos extremamente amplos do art. 2º da Lei de Improbidade: "reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior"

Apesar da clareza desses argumentos, ainda se deve perquirir se seria (ética e moralmente) permitido ao intérprete último da Constituição construir uma interpretação semelhante àquela que vem paulatinamente delineando.

4. Interpretação constitucional

A interpretação jurídica reflete um processo intelectivo que permite sejam alcançados conteúdos normativos a partir de fórmulas lingüísticas, indicativo de que o intérprete constrói a norma com observância de um dado balizamento, o texto normativo. O intérprete identifica a fonte de direito, associa a disposição normativa à realidade e, a partir de uma operação mental, individualiza a norma. Essa atividade não reflete propriamente uma "(re)produção", pois o texto não possui um sentido imanente, em que a atividade do intérprete se limitaria a mostrar o seu conteúdo.

Sob a epígrafe da interpretação jurídica podem ser incluídos dois sentidos distintos: a) a análise do significado de um conjunto de dados lingüísticos e, mais especificamente, de textos normativos; e b) o ato pelo qual se produz uma norma particular a partir da concretização de uma disposição normativa geral e abstrata. Esse processo, por sua vez, sofre a influência de fatores práticos, teóricos e ideológicos, que refletem, respectivamente, a realidade, a metodologia jurídica e os valores prestigiados pelo intérprete.

A interpretação jurídica, assim, deve ser concebida como um processo aberto, não de submissão a um conteúdo estruturalmente definido ou, mesmo, de recepção de uma ordem previamente dada. A operação conducente à identificação do conteúdo da norma assume uma feição necessariamente criativa: não no sentido da edição de uma norma geral a partir de um vazio legislativo, mas como reflexo da integração da atividade do intérprete àquela iniciada pelo legislador.

Não é por outra razão que se atribui ao intérprete um poder de nível idêntico ao da autoridade que editou a disposição normativa objeto de interpretação: "o intérprete da lei detém um poder legislativo e o intérprete da Constituição um Poder Constituinte". As opções valorativas do intérprete terminam por aperfeiçoar os contornos semânticos da disposição normativa, assumindo vital importância na construção do seu conteúdo: poder constituinte e intérprete - em momentos que, embora sucessivos, integram uma unicidade operativa - são os responsáveis pela individualização da norma constitucional.

O reconhecimento da força normativa da Constituição e a necessidade de determinar o seu significado bem demonstram que a interpretação constitucional em muito se assemelha à interpretação jurídica em geral. As especificidades, no entanto, não permitem uma ampla e irrestrita superposição entre essas figuras. Apesar de igualmente voltada ao delineamento da norma, a interpretação constitucional é diretamente influenciada pelo caráter fundante da Constituição, que ocupa uma posição de preeminência na hierarquia do sistema, sendo este um nítido diferencial em relação à interpretação das demais espécies normativas. A supremacia constitucional é um claro indicativo de que o processo de concretização das normas constitucionais, incluindo a atividade interpretativa, apresenta funções e métodos próprios, conferindo-lhe algumas características de inegável singularidade.

Acresça-se que a interpretação constitucional sofre a ação de três elementos hermenêuticos que apresentam uma operatividade mais limitada no âmbito da interpretação jurídica em geral. São eles a evolutividade, a politicidade e a extrema sensibilidade axiológica. A evolutividade sofre a influência dos contornos acentuadamente abertos das disposições constitucionais, o que lhes assegura grande mobilidade e um grande poder de adaptação aos circunstancialismos presentes no momento de sua aplicação. A politicidade está associada ao fato de a ordem constitucional regular as principais "portas de entrada" da política na esfera do direito, que são a organização dos órgãos de soberania e o processo de elaboração normativa. Quanto ao fator axiológico, é possível afirmar que as Constituições modernas, sectárias do pluralismo político e que buscam harmonizar uma multiplicidade de padrões ideológicos, ao que se soma a estrutura demasiado aberta de suas disposições, são o campo propício à proliferação de valores, de indiscutível relevância na concretização do seu conteúdo.

Interpretação e modificação refletem os dois níveis de desenvolvimento constitucional, sendo necessariamente influenciadas pelas "cristalizações culturais" do meio social. Assim, é absolutamente normal que disposições constitucionais idênticas sejam interpretadas de forma diferente no tempo e no espaço, permitindo que de um mesmo texto sejam extraídos conteúdos distintos conforme a cultura em que apareça.

A interpenetração entre texto normativo e realidade é um claro indicativo de que a norma constitucional não é atemporal ou indiferente aos padrões sociais do momento de sua aplicação. Ainda que a Constituição formal apresente uma vocação à perenidade, característica inerente à própria concepção de constitucionalismo, as normas dela extraídas não assumem um contorno idêntico. A norma constitucional é volátil, sustentando-se a partir de um discurso argumentativo contemporâneo à realidade que direciona a sua concretização.

A integração entre os planos real e jurídico também se faz sentir na orientação constitucional aberta, representada por Häberle com a tensão entre o possível (potencialidades normativas do texto), o necessário (reflete as pré-compreensões e aspirações do intérprete) e o real (os condicionamentos de ordem circunstancial). Entre esses fatores se produzirá tanto uma relação de concorrência, como, sobretudo, de cooperação, exigindo seja identificada a "dose correta" de cada um deles para que o processo de concretização seja corretamente finalizado: uma "boa" exegese constitucional tenderá a ser o resultado dessa tríade cognitiva.

A Constituição, corretamente interpretada, alcançará um "final feliz" (happy ending), noção indicativa daquilo que a justiça ou a filosofia política requer, vale dizer, corresponderá aos valores supremos ou históricos que inspiram a ordem jurídica. A partir da atividade desenvolvida pelo intérprete, a Constituição, como o direito, pode ser justa ou injusta, conclusão que será alcançada com a realização de um juízo valorativo voltado à interação entre disposição normativa e realidade. Em outras palavras, somente será possível concluir pela justiça ou injustiça de uma disposição constitucional ao final do processo de concretização. O objetivo da interpretação constitucional é conduzir o operador do direito à obtenção de um resultado racionalmente justificável e constitucionalmente correto.

A importância da interpretação constitucional decorre de três fatores principais: a) a indeterminação de sentido do texto, que pode ser vago ou ambíguo, absorvendo uma pluralidade de conteúdos, isto sem olvidar que as disposições constitucionais são acentuadamente conflitantes; b) a irrelevância da intenção dos constituintes; e c) a evolução das concepções políticas e sociais, exigindo a contínua atualização do conteúdo normativo da Constituição.

6. Ideologia dinâmica de interpretação constitucional

Entrando em vigor, a Constituição assume individualidade própria e desprende-se da vontade constituinte: o conteúdo da ordem constitucional é encontrado a partir de seu texto, não do elemento anímico que influenciou o poder responsável pela sua elaboração.

Longe de ser um instrumento de regulação meramente sazonal, a Constituição é vocacionada à continuidade, devendo acompanhar o Estado em todas as suas vicissitudes históricas, sociais e culturais. No entanto, se o texto (programa da norma) é o mesmo, como assegurar a sobrevivência da ordem constitucional em realidade (âmbito da norma) distinta daquela contemporânea à sua entrada em vigor? Como regular situações futuras, desconhecidas quando do surgimento da Constituição? Em uma palavra, com a sua interpretação.

A Constituição, ainda que estática no texto, é dinâmica no conteúdo, estando o seu evolver dependente de uma interpretação prospectiva, vale dizer, de uma identificação de sentido contemporânea à sua aplicação. Fosse prestigiado o seu sentido originário, ignorando-se todo o processo evolutivo da sociedade, o dever ser se distanciaria de tal modo do ser que terminaria por transmudar-se em algo impossível de ser. Tal ocorrendo, a Constituição não mais poderia subsistir, acarretando a ruptura da ordem constitucional, efeito inevitável na medida em que as alterações na vida social são mais céleres que as alterações promovidas nas disposições constitucionais.

Observado o balizamento fixado pelo texto constitucional, é ampla a liberdade do intérprete na sua constante releitura, permitindo que, sem acréscimos, modificações ou supressões formais, seja a Constituição continuamente atualizada.

Wróblewski atribuiu a essa concepção o designativo de ideologia dinâmica de interpretação jurídica, contrapondo-a à ideologia estática de interpretação jurídica. A primeira defende a adaptação do direpito às necessidades da vida social, desprendendo-o do legislador histórico; a segunda, por sua vez, prestigia os valores básicos de certeza e estabilidade, vinculando a norma à vontade do legislador histórico e não admitindo seja ela atualizada pelo intérprete. Enquanto a ideologia dinâmica visualiza matizes de adaptabilidade e criatividade na interpretação, melhor se adaptando às vicissitudes da vida social, a estática a concebe como uma atividade de descobrimento, resultando num "governo dos mortos sobre os vivos". Apesar de voltada à interação entre texto e realidade, essa classificação, quanto aos seus efeitos, pode ser reconduzida às teorias subjetiva e objetiva, conforme seja prestigiada, ou não, a vontade do legislador.

Também se pode falar em interpretação como "ato de conhecimento" ou "ato de vontade". No primeiro caso, parte-se da premissa de que o texto possui uma unidade de sentido, que encontra abrigo na vontade do legislador; no segundo, ao revés, é reconhecida a impossibilidade de se atribuir um sentido claro e unívoco ao texto e aos seus mentores, não bastando o mero conhecimento de algo previamente ultimado, sendo necessária a consciente formação do que anteriormente fora apenas delineado.

Acresça-se que a norma constitucional, apesar de individualizada a partir de um texto, sofre a influência de outros textos e de outras normas igualmente integrantes do sistema. Uma disposição constitucional não pode ser concebida como uma partícula isolada, insuscetível de influência do exterior e impassível de influenciá-lo. Integra uma unidade existencial (a Constituição) e será direcionada por essa unidade no processo de delineamento da norma. Essa constatação também contribui para demonstrar a inviabilidade da ideologia estática, pois a interação das disposições e das normas do sistema impede a manutenção do seu sentido original sempre que novas disposições sejam aprovadas ou antigas disposições sejam modificadas ou suprimidas.

A força normativa da Constituição não se coaduna com o subjetivismo da mens legislatoris, não sendo legítimo que seu alcance e seus efeitos sejam forjados em elementos de natureza individual, já que sua gênese se encontra atrelada a caracteres eminentemente sociológicos. Em síntese: "interpretatio ex nunc e não interpretatio ex tunc".

7. A impossibilidade de a jurisdição constitucional ignorar a realidade

As intensas transformações vivenciadas pela metódica constitucional exige sejam revisitados aspectos nucleares de atuação da jurisdição constitucional, que, no processo de concretização da norma, passará a apreciar a realidade de forma mais intensa, não raro com a necessidade de dilação probatória.

No direito norte-americano, tornou-se célebre o memorial utilizado pelo advogado Louis D. Brandeis (Brandeis-Brief) no Caso Muller vs. State of Oregon, que dedicava duas páginas às questões jurídicas e cento e dez aos efeitos deletérios que a longa duração da jornada de trabalho causava à mulher. Com isto, contribuiu para que o Supremo Tribunal reconhecesse que o papel social e biológico dessa camada da população poderia ser comprometido pelo trabalho excessivo. Memoriais como esse, anota Tribe, "ajudaram a salvar inúmeros estatutos da invalidação", contribuindo para que o Supremo Tribunal visualizasse a "real e substancial" relação entre a lei e os seus objetivos.

No direito alemão, o Bundesverfassungsgericht tem analisado as prognoses legislativas e a possibilidade de ocorrerem os fatos em que se baseiam: no Caso Apotheken, o Tribunal verificou a constitucionalidade de lei do Estado da Baviera que exigia uma especial autorização da autoridade competente para a instalação de novas farmácias. Ao reconhecer a incompatibilidade dessa medida com a liberdade de exercício profissional garantida na Grundgesetz, baseou-se nos seguintes argumentos: a) laudos periciais demonstravam que a liberdade de instalação de farmácias em outros países do mesmo nível civilizatório da Alemanha não trazia qualquer ameaça à saúde pública; b) em razão do elevado custo de instalação, essa liberdade não conduziria, necessariamente, a uma exagerada multiplicação desses estabelecimentos; c) o possível risco de os farmacêuticos não cumprirem os seus deveres legais em razão da diminuição de sua capacidade financeira, conseqüência do aumento de competitividade, era infundado, já que, além de as opções pessoais equivocadas não poderiam justificar medidas legislativas dessa natureza, a superação do modelo de farmácia de fabricação pelo de entrega aumentava o tempo livre do farmacêutico; d) opiniões de peritos indicavam que a maior procura de medicamentos decorreria de circunstancialismos associados ao pós-guerra (v.g.: desnutrição e patologias de ordem psicológica).

No direito brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, em não poucas ocasiões, tem moldado a norma constitucional à luz da realidade, chegando mesmo a realizar uma interpretação ab-rogante nas hipóteses em que a disposição normativa mostrou-se totalmente dissonante dos fins a que se destinava.

O Tribunal, por sua Primeira Turma, em julgamento emblemático, proferiu decisão que, no caso concreto, afastou a incidência de regra constitucional que se mostrava absolutamente incompatível com a situação de anormalidade institucional presente no momento de sua aplicação: trata-se do Habeas Corpus nº 89.417-7, julgado em 22 de Agosto de 2006, sendo relatora a Ministra Cármen Lúcia.

O habeas corpus foi impetrado por parlamentar do Estado de Rondônia, cuja prisão "em flagrante" fora decretada pela Ministra relatora do Inquérito nº 529, do Superior Tribunal de Justiça, sob a acusação de ser ele o chefe de uma organização criminosa instalada na Assembléia Legislativa de Rondônia, organização esta que se ramificara pelas principais estruturas de poder do Estado, cooptando, inclusive, membros do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas, o que terminou por atrair o caso para a esfera federal. Sustentava-se a incompetência do Superior Tribunal de Justiça e, em especial, a violação aos parágrafos segundo e terceiro do art. 53 c.c. o parágrafo primeiro do art. 27, ambos da Constituição da República. De acordo com esses preceitos, o Deputado Estadual, desde a expedição do diploma, (1) somente poderia ser preso em caso de flagrante de crime inafiançável, (2) nesse caso, os autos deveriam ser remetidos, dentro de vinte e quatro horas, à Assembléia Legislativa, para que resolvesse sobre a prisão e (3) iniciado o processo criminal, por crime praticado após a diplomação, deveria o órgão jurisdicional dar ciência à Assembléia Legislativa, que poderia sustar a tramitação da ação enquanto durasse o mandato. Alegava-se, ainda, a incongruência de um mandado de prisão "em flagrante", figura inexistente no direito brasileiro, bem como que a alegada flagrância referia-se ao crime de quadrilha, cuja pena mínima era de 1 (um) ano de prisão, não se tratando, portanto, de crime inafiançável. Quanto aos demais crimes imputados ao impetrante, como não havia flagrante, não poderiam legitimar a sua prisão.

A Ministra relatora iniciou o seu voto realizando uma ampla exposição das circunstâncias fáticas subjacentes ao caso, conferindo especial ênfase ao preocupante quadro de anormalidade institucional que se instalara no Estado de Rondônia: a) todos os Deputados Estaduais estavam sendo investigados pela sua participação no crime organizado; b) a organização havia cooptado membros das principais estruturas de poder do Estado, inclusive o Presidente do Tribunal de Justiça e membros do Tribunal de Contas; e c) além de desviar recursos públicos, os membros da organização condicionavam a produção normativa à obtenção de benesses.

A alegada incompetência do Superior Tribunal de Justiça foi, de pronto, afastada, isto porque alguns membros da organização criminosa deveriam ser julgados perante esse órgão, o que exercia uma vis atractiva em relação a todos os demais. No que concerne à alegada violação ao estatuto protetivo da imunidade parlamentar, a Ministra reconheceu que a decisão da intitulada autoridade coatora, apesar de destoar do claro sentido das regras constitucionais invocadas, era plenamente justificada pelas circunstâncias do caso, harmonizando-se com as demais normas do sistema.

Em seu voto, afirmou a Ministra que a Constituição, ao mesmo tempo em que assegura a imunidade relativa dos parlamentares, o que é feito em benefício do eleitor com vistas à autonomia do órgão legiferante, proíbe a impunidade absoluta de quem quer que seja, sendo estes os referenciais de interpretação das disposições constitucionais suscitadas pelo impetrante. Invocando as lições de Black e de Rui Barbosa, defendeu que qualquer lei deve ser interpretada em consonância com a realidade, o seu espírito e a razão, não podendo ser excluída do sistema em que inserida. A imunidade parlamentar existe para o regular funcionamento das instituições democráticas, não para legitimar a sua destruição e autorizar a prática de crimes. No caso concreto, a aplicação das regras invocadas pelo impetrante sempre asseguraria a sua impunidade, pois a manutenção da prisão seria decidida pelos demais integrantes da organização criminosa, seus pares na Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia.

Perante esse lamentável quadro, questiona a Ministra: "como se cogitar, então, numa situação de absoluta anomalia institucional, jurídica e ética, que os membros daquela Casa poderiam decidir livremente sobre a prisão de um se seus membros, máxime quando ele é tido como ‘o chefe indiscutível da organização (criminosa) (que) coordena as ações do grupo e cobra dos demais integrantes o cumprimento das tarefas que lhes são repassadas. As indicações para importantes cargos... são de sua responsabilidade, e controla, mediante pagamento, os deputados estaduais’ (fls. 80)?" Sendo evidente a impossibilidade de os parlamentares decidirem livremente sobre a prisão, como se aplicar as regras constitucionais invocadas? Em situações desse tipo, "há que se sacrificar a interpretação literal e isolada de uma regra para se assegurar a aplicação e o respeito de todo o sistema constitucional". Apesar de ser o impetrante um parlamentar, a necessidade de garantir a segurança pública indica que "a prisão haverá de ser aplicada segundo as regras que valem para todos quando o status funcional de alguém já não esteja em perfeita adequação ao ofício que determina a aplicação do regime jurídico constitucional ao agente".

Apesar do não atendimento das regras específicas que regulam a prisão de parlamentares, "o que se tem por demonstrado é que o mínimo do conteúdo normativo exigido para a prisão decretada, na contingência de uma excepcional condição, foi atendido." (...) "A prisão atende, portanto, à ordem pública, ao princípio da segurança de todos e de cada um dos membros da sociedade. Nem se indague sobre a excepcionalidade e a gravidade da prisão, mais ainda quando se volta contra um agente que representa o povo".

Em outro julgamento, o Pleno do Supremo Tribunal Federal negou provimento a Reclamação ajuizada contra ato de Tribunal de Justiça, que determinara o seqüestro de verbas do Estado para a quitação de precatório que beneficiava pessoa portadora de doença grave e incurável. Como observou o Ministro Eros Grau, o Tribunal firmara o entendimento, partindo da literalidade do parágrafo 2º do art. 100 da Constituição, que o seqüestro somente seria cabível se houvesse preterição ao direito de preferência na quitação do precatório, o que não ocorria no caso concreto. Apesar disso, a Reclamação não foi acolhida pela unanimidade dos Ministros, já que a situação deveria ser considerada uma exceção à regra constitucional.

Volvendo à Reclamação nº 2.138/2000, é pouco provável que os Ministros do Supremo Tribunal Federal desconheçam haver (muita) corrupção no Brasil, o que em muito dificulta a compreensão das razões que o estão levando a desarticular a Lei de Improbidade. Também é difícil imaginar que tenha passado despercebido ao Tribunal o efeito devastador que sua decisão causará em termos de proliferação da corrupção. A explicação é simples: como os altos escalões de poder estarão imunes à Lei de Improbidade, é fácil imaginar que neles será concentrado todo o poder de decisão, sujeitando-os, tão-somente, à responsabilização nas esferas política e criminal, cuja ineficácia não precisa ser lembrada ou explicada.

A posição do Tribunal destoa (1) do senso comum da esmagadora maioria da coletividade, pois, salvo engano, não visualizamos a existência de movimentos sociais "pró" e "contra" a corrupção, (2) da quase totalidade da doutrina, (3) de todos os tribunais do País e (4) dos compromissos assumidos pelo Brasil no plano internacional (v.g.: Convenção Interamericana de Combate à Corrupção e Convenção das Nações Unidas de Combate à Corrupção).

8. Epílogo.

Na conhecida classificação de Heidenheimer, que leva em consideração a percepção das elites e da opinião pública em relação à corrupção, esta se subdivide em negra, cinza e branca. Na corrupção negra, é divisado um consenso entre as elites e a opinião pública quanto à reprovação de um ato e à imprescindibilidade de sua punição. Na corrupção cinza, alguns elementos, normalmente oriundos das elites, defendem a punição do ato, enquanto a maioria da população assume uma posição dúbia. Por último, na corrupção branca, a maior parte das elites e da população, por tolerar certos atos de corrupção, não apóia com vigor a sua criminalização e conseqüente coibição.

Arriscaríamos afirmar que, no Brasil, temos uma corrupção negra, claramente endêmica, em vários setores da vida pública. Esse estado de coisas bem demonstra a elevada responsabilidade ética e moral do Supremo Tribunal Federal na recepção da "tese" que lhe foi apresentada. Discussões em torno da legitimidade da jurisdição constitucional, por certo, voltarão a aflorar, o que é sempre temerário no âmbito de um Estado de Direito democraticamente constituído, mas recém-saído de um longo período ditatorial.

Espera-se, no entanto, sofra a questão maior amadurecimento no âmbito do mais elevado tribunal brasileiro, o que, por certo, contribuirá para sedimentar os próprios alicerces do Estado brasileiro, evitando o descrédito das instituições e, conseqüentemente, da própria democracia.

 

Emerson Garcia

emersongarcia814[arroba]hotmail.com



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