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Exame de Ordem: três respostas (página 2)

Fernando Lima

 

 

2.    A primeira alegação

         Quanto à primeira alegação, de que hoje nós temos 20% dos advogados do mundo, de que o fim do Exame de Ordem causaria um acréscimo de 2,5 milhões de advogados e nós passaríamos a ter praticamente a metade dos advogados do mundo, tenho a dizer o seguinte:

Em outras oportunidades, dirigentes da Ordem já afirmaram que esse acréscimo seria de 1,9 milhões.  De qualquer maneira, esse número parece um exagero, porque hoje o número de bacharéis que concluem os nossos cursos jurídicos deve estar em torno de 50 mil por ano. Assim, o fim do Exame de Ordem causaria um acréscimo, talvez, de 500 mil advogados, dobrando, praticamente, o número de inscritos.

Se é verdade que nós temos 20% dos advogados do mundo, então todos os advogados do mundo estão no Brasil e nos Estados Unidos, porque muitos críticos do sistema legal americano costumam afirmar que os Estados Unidos têm 70% dos advogados do mundo, a exemplo de Greg Hickman, no artigo: Are There too many Lawyers? (Fonte: Power-ofAttorneys.com). Diz ele:  "The U.S. has seventy percent of the world’s lawyers but only five percent of the world’s population. U.S. industry spends hundreds of billion dollars annually on litigation costs and efforts to avoid liability. We have thirty times more lawsuits than Japan, one of America’s primary trade competitors…"

Sabe-se que os Estados Unidos têm aproximadamente 1,3 milhões de advogados. Se é verdade que a América tem 70% dos advogados do mundo, então o Brasil, com 600 mil advogados, deveria ter algo em torno de 30%!!!!!!

Ou seja: França, Inglaterra, Itália, Espanha, Portugal, Canadá, Argentina, etc., não têm advogados! Na minha opinião, os dados americanos não são confiáveis, e nem os dados divulgados pela OAB.

Pois bem: suponhamos, apenas para argumentar, que seja verdade que os Estados Unidos e o Brasil têm muitos advogados. Será que isso é ruim? Será possível falar em "excesso" de advogados?

Para Lin Yutang, escritor americano, o excesso de advogados inviabiliza a Justiça: "When there are too many policemen, there can be no liberty. When there are too many soldiers, there can be no peace. When there are too many lawyers, there can be no justice."

Na minha opinião, o alegado excesso de advogados não seria, necessariamente, ruim, desde que os advogados respeitassem a lei e que as leis não se preocupassem em criar empregos e privilégios para os advogados. Se realmente estamos em uma República, a igualdade deve prevalecer. Nessas condições, pode-se afirmar que o dito excesso não seria prejudicial, absolutamente. Ao contrário, quanto mais advogados, maior poderia ser o respeito à cidadania do nosso povo, que nas condições atuais desconhece os seus direitos.

A verdade é que deve sempre prevalecer o interesse público, e não o interesse corporativo. O Legislativo não pode ser controlado pelos advogados, para votar as leis que possam atender, apenas, aos seus interesses. O Judiciário não pode decidir, também, sob a influência desses interesses. O Executivo não pode ser controlado pelos advogados, ou pelos dirigentes da OAB. A OAB não pode ser transformada em um partido político, porque o seu poder poderá ser utilizado em benefício dos interesses de seus dirigentes, ou dos seus interesses corporativos. A Frente Parlamentar dos Advogados, formada por 115 deputados, é um exemplo do poder da OAB, dentro do Legislativo brasileiro. (Fontes:

http://www2.camara.gov.br/internet/homeagencia/materias.html?pk=104529 e http://www.oab-rj.com.br/content.asp?cc=24&id=2194 )

O mesmo raciocínio se aplicaria, evidentemente, em relação a outras pessoas ou grupos, que detenham o poder suficiente para desviar o Governo de sua função básica e para fazer que os seus interesses individuais ou corporativos prevaleçam sobre o interesse público, a exemplo dos industriais, dos banqueiros e da mídia.

A própria OAB não pode ser tão fortalecida, institucionalmente, ao ponto de interferir no equilíbrio dos Poderes constituídos. O advogado é indispensável à administração da Justiça, diz o art. 133 de nossa Constituição, mas é preciso não esquecer que o interesse público deve ser respeitado. Não é possível que os interesses corporativos da OAB, ou de seus dirigentes, interfiram em todos os Poderes constituídos, em detrimento do interesse público. Dessa forma, a OAB passaria a ser um poder inconstitucional, porque contrário ao princípio básico da independência e harmonia dos Poderes. Dessa forma, o advogado seria prejudicial à administração da Justiça....

Não se pode admitir a concentração dos poderes do Estado nas mãos de uma só pessoa, ou de um só grupo, já o dizia Montesquieu, no Espírito das Leis, e as suas idéias foram desenvolvidas no Federalista, por Hamilton, Madison, e Jay, para defender a aprovação do projeto da Constituição americana, que deveria garantir a liberdade do povo, contra os abusos do Governo.  Madison alertava, então, para o perigo da concentração do poder nas mãos de um grupo, ou de uma facção, "same hands group", ou "faction", que ele definia como: "a number of citizens who are ruled and actuated by some common... interest adverse to the rights of other citizens,... or to the permanent and aggregate interests of the community". (Fonte: James Madison, Federalist, nº 10)

A Constituição Americana foi escrita, portanto – e a nossa também, supõe-se -, para impedir a tirania e para prevenir que qualquer grupo de interesses (same hands), que pudesse surgir posteriormente, adquirisse o poder, inviabilizando a independência e harmonia dos Poderes e o respeito ao princípio republicano.

Nos Estados Unidos, há quem diga que a Constituição também já foi rasgada, há muito tempo, exatamente pelo desrespeito a essas idéias, defendidas por Montesquieu e por Madison.

Ronald Bibace, um professor de Direito Constitucional de Forte Lauderdale, na Flórida, defende a idéia de que os advogados não poderiam exercer cargos no Executivo, nem no Legislativo, porque a Constituição o proíbe, exatamente na cláusula da separação dos poderes: "Article II, Sect. 3: No person belonging to one branch shall exercise any powers appertaining to either of the other two branches unless expressly provided herein."

Para expor as suas idéias, em defesa do governo constitucional e representativo e para evitar que o poder do Estado americano continue sendo concentrado nas "mesmas mãos" da "profissão legal", de modo que "os advogados/juízes façam as leis, as interpretem e as apliquem, atentando assim contra o espírito e os objetivos da Constituição", o professor Bibace escreveu uma continuação dos "Federalist Papers". (Fonte: Constitutional Guardians of America - http://www.constitutionalguardian.com/)

         Ou seja: se os advogados estão vinculados ao Poder Judiciário, não poderiam exercer nenhuma função, no âmbito dos outros dois ramos do Governo. No Brasil, a Constituição diz – é a única no mundo – que o advogado é indispensável à administração da Justiça (art. 133). Como poderiam, então, os advogados (same hands), ligados pelos mesmos interesses, pertencer, também, ao Legislativo e ao Executivo? Quem faz as leis não pode julgar, nem administrar, ao mesmo tempo, e é isso que caracteriza a separação dos Poderes, e que se supõe que poderia impedir a implantação de uma tirania.

De qualquer maneira, voltando ao nosso tema do Exame de Ordem, se o Brasil têm ou não tem advogados em excesso, esta não é uma discussão jurídica. O excesso de advogados pode ser mau para o mercado de trabalho, que somente absorverá os mais competentes, mas pode ser bom para o consumidor, para aquele que precisa contratar serviços jurídicos, porque a maior competição exigirá melhores serviços, daqueles que quiserem continuar a exercer essa profissão liberal.

Mas esta não é uma discussão jurídica, porque existe, no Brasil, uma coisa que se chama Constituição, e que todos deveriam conhecer. A Constituição garante a liberdade do trabalho e a liberdade do exercício profissional, o que significa, claramente, que todos têm o direito de escolher uma profissão liberal, como a advocacia, e que ninguém, nem mesmo a OAB,  com todo o seu poder, tem o direito de limitar o número de "vagas" de advogados, para proteger o mercado de trabalho dos atuais inscritos. Chama-se a isso: reserva de mercado. O "excesso" de advogados não serve para justificar, absolutamente, o Exame da OAB.

         Portanto, a primeira alegação do Presidente da OAB, de que o fim do Exame de Ordem daria ao Brasil metade dos advogados do mundo, é inteiramente descabida, porque não tem nada a ver com um debate jurídico. Juridicamente, deve ser respeitada a liberdade do exercício profissional, consagrada pelo inciso XIII do art. 5º da Constituição Federal, aliás uma cláusula pétrea, que nem mesmo uma emenda constitucional poderia abolir.

         Não é possível, juridicamente, fazer com que o Congresso Nacional aprove uma lei, e nem mesmo uma emenda constitucional, limitando o número de "vagas" para advogados, médicos, engenheiros, jornalistas, professores, pintores, mecânicos, etc.. O que deve prevalecer é a igualdade. Todos terão o direito de estudar, o direito de adquirir uma qualificação profissional, o direito de trabalhar, o direito de exercer uma profissão liberal, em igualdade de condições, com as mesmas oportunidades...

         3. A segunda alegação

        Quanto à segunda alegação, referente "à baixa qualificação profissional e à péssima qualidade do ensino jurídico", é também descabida, simplesmente porque não compete à OAB avaliar a qualificação profissional dos bacharéis formados em nossos cursos jurídicos. Isso é competência do Estado brasileiro, conforme claramente previsto na Constituição Federal, especialmente nos artigos 205 e 209. A qualificação do advogado é garantida pelo diploma, que lhe é conferido por uma instituição de ensino superior, autorizada e avaliada pelo Estado. Não é o Exame da OAB que deve qualificar o advogado, mas o ensino superior. À OAB, cabe apenas a fiscalização do exercício profissional.

         Para Vital Moreira, um dos mais renomados constitucionalistas de Coimbra,  "A vocação natural das Ordens Profissionais não é a de controlar a formação académica dos candidatos à profissão, essa já está "acreditada" no título académico, mas sim a de lhes ministrar uma adequada formação quanto à deontologia profissional e quanto às boas práticas da profissão (coisas que não competem às universidades), e depois proceder ao necessário controlo e punição das infracções a umas e outras. O mais espantoso a este respeito é que a maior parte das ordens profissionais não cumpre a primeira dessas tarefas elementares e poucas cumprem razoavelmente a segunda". (Fonte: O Império das Corporações Profissionais, http://www.fcsh.unl.pt/docentes/cceia/ordens-profis.doc)

         Se é verdade que existem muitos cursos jurídicos de péssima qualidade, cabe ao Estado brasileiro impedir que esses cursos continuem funcionando. O que não é possível é continuarem sendo enganados, os bacharéis em Direito, formados por esses cursos, autorizados e fiscalizados pelo MEC, que depois de receberem um diploma que, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, atesta a sua qualificação profissional, ficam impedidos de trabalhar, por um órgão de classe que não é uma instituição de ensino superior e que não tem competência para avaliar a sua qualificação profissional. Para que serviria o diploma, então?

O que não é possível é continuar a proliferação de cursinhos preparatórios para o Exame de Ordem, muitos deles patrocinados pelas próprias Seccionais da OAB. Tudo isso depõe contra a imagem da Ordem, que não deveria se meter no que não é de sua conta, e que depois se sujeita às diversas denúncias que têm sido feitas, quanto à lisura de seu Exame, a exemplo do que ocorreu em Goiás, quando a Polícia Federal prendeu, dentre outras pessoas, o Presidente e o Vice-Presidente da Comissão do Exame de Ordem, acusando-os de terem formado uma quadrilha, para vender a aprovação no Exame, e de terem obtido um rendimento de aproximadamente 3 milhões de reais.

O que não pode continuar é a ineficiência das instituições públicas de ensino superior, nas quais um aluno custa ao Estado quase dez vezes mais do que a mensalidade das melhores instituições privadas.

O que não pode continuar é o mercantilismo de muitas instituições privadas, que não se preocupam com a qualidade do ensino que oferecem, mas apenas com os altos lucros que a atividade pode proporcionar. Muitos políticos, hoje, são donos de faculdades. Dirigentes da OAB são diretores de cursos jurídicos, ou seja, atuam nas duas funções, como jogadores e como árbitros.

No Congresso Nacional, diversos parlamentares são donos de instituições de ensino superior, que já estão enfrentando problemas, decorrentes do baixo poder aquisitivo de nosso povo, que não tem como pagar as altas mensalidades de um curso universitário.

Assim, o deputado federal Bonifácio de Andrada (PSDB–MG) é dono da Universidade Presidente Antônio Carlos, a UNIPAC, que administra 176 ‘campi’ em diversas cidades do interior mineiro. De acordo com levantamento feito pela reportagem do Jornal do Brasil (Fonte: Eles Fizeram Faculdades, Inês Garçoni e Leandro Mazzini – Jornal do Brasil, 02.04.2006 - http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=258972), existem outros deputados na mesma situação, mas o problema é que muitos deles são membros da  Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, que pode aprovar projetos de lei que beneficiam as suas próprias faculdades:

"Até aí, morreu o Neves, como diz a letra de Jorge Ben Jor, gravada por Elis Regina. É direito de qualquer deputado investir no empreendimento que bem lhe convier. O problema é que Bonifácio é membro da Comissão de Educação e Cultura (CEC) da Câmara, onde projetos de lei tomam forma, e podem mudar a vida de milhões de universitários e beneficiar as faculdades. Bonifácio não é o único no seleto grupo. Ao lado dele, três deputados donos de faculdades atuam na mesma comissão: Murilo Zauith (PFL-MS), dono da Unigran, em Dourados (MS); Átila Lira (PSDB-PI), cuja irmã é reitora da Faculdade Santo Agostinho, em Teresina; e Clóvis Fecury (PFL-MA), dono de duas universidades – a Uniceuma,

 

Fernando Lima

profpito[arroba]yahoo.com



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