A partir do segundo pós-guerra, ao menos sob uma perspectiva idealístico-formal, a concepção de que o respeito ao ser humano deve ocupar o epicentro de toda e qualquer atividade desenvolvida pelas estruturas sociais de poder parece ter recebido o colorido de dogma intangível. Essa constatação, longe de ser setorial ou mesmo sazonal, rompeu as fronteiras de cada Estado de Direito, disseminou-se pelo globo e, em refluxo, afrouxou as amarras do aparentemente indelével conceito de soberania, subtraindo do Estado a disponibilidade normativa e exigindo o imperativo respeito a valores essenciais ao ser humano.
A transposição dessa concepção à realidade fenomênica, longe de ser direcionada pela estabilidade e pela universalidade indissociáveis da perspectiva idealístico-formal, tem sido caracterizada por momentos de ruptura e por uma inegável limitação de ordem espacial. Nos Estados de reduzida tradição democrática, a instabilidade política e a ausência de uma sólida ideologia participativa em muito contribuem para a não-sedimentação do respeito ao ser humano como um valor verdadeiramente fundamental. Esse quadro não sofre alterações substanciais mesmo nos casos em que, no plano internacional, o contorno essencial dos direitos humanos tenha assumido a condição de ius cogens. Ainda que a observância desses valores passe por períodos de confortante estabilidade, as rupturas têm sido freqüentes, o que é um claro indicador de que a perspectiva material de observância dos direitos humanos está longe de ter seus contornos sobrepostos à perspectiva idealístico-formal.
A exemplo do que se verifica em um governo despótico ou antidemocrático, que jamais será rotulado como tal no respectivo texto constitucional, também nos Estados onde a inobservância dos direitos humanos é uma constante, a apologia de sua importância é contraditoriamente entusiástica. Diminutos são os Estados que não consagram o respeito aos direitos humanos como um valor fundamental, mas múltiplos são aqueles que não observam os mais comezinhos princípios relacionados à sua proteção.
Atenuar o distanciamento entre os vetores axiológico e real exige seja densificada a plasticidade retórico-semântica - da já referida perspectiva idealístico-formal dos direitos humanos - e despertada sua eficácia transformadora, permitindo aproximá-la da concretude inerente à perspectiva material. Esse iter metodológico, prima facie, não pode ser principiado e ultimado num ambiente acadêmico e, muito menos, integralmente percorrido com um mero lance de tinta. Ainda que o jurista identifique o seu fundamento e estabeleça as suas bases de sustentação, à fórmula haverá de ser integrado o componente sociopolítico, permitindo que os "fatores reais de poder", isto para utilizarmos a sugestiva expressão de Lassalle, tornem efetivo aquilo que existe em potência. Ignorar a importância do componente sociopolítico redundará em imperfeição semelhante àquela que se busca combater: o distanciamento entre o discurso retórico-semântico e a realidade.
Apesar de a eficácia do discurso jurídico estar umbilicalmente ligada aos fatores de transformação social, do que decorre o esvaziamento de sua força persuasiva em níveis proporcionais ao distanciamento da realidade que tenciona regular, é inegável a sua importância estruturante na formação de qualquer iniciativa transformadora. Um alicerce sólido torna igualmente sólida a construção que sobre ele seja erguida, um alicerce frágil, do mesmo modo, transmitirá fragilidade semelhante ao que sustenta, permitindo que ao mais leve sopro se desvaneça.
A solidez do discurso, por evidente, está diretamente relacionada ao paradigma metodológico empregado na sua fundamentação e no regime jurídico a que se sujeita a dignidade humana, sendo este o leitmotiv da análise a ser realizada, indicação oportuna na medida em que passaremos ao largo de considerações de ordem político-sociológica.
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