Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
Para conhecer é preciso experimentar, observar, estar com a atenção
voltada aos movimentos, às possibilidades do explorar e do descobrir.
Para conhecer
"é imprescindível chegar aos significados, ter acesso ao
mundo conceitual dos indivíduos, e às redes de significados
compartilhados pelos grupos, comunidades e culturas ."
É necessário ainda querer, desejar este conhecimento, e neste
querer/desejar, estar em movimento de curiosidade, de procura, de busca e contato
com a variedade, a diversidade de situações e fenômenos
o caracterizam. Os fios podem nos conduzir. Tal como o fio que nos permite entrar
no "labirinto do Minotauro" e dele sairmos, não mais como entramos,
mas com a experiência de lá ter estado, de lá ter vivido,
conhecer é estar em movimento de ir, de voltar, e neste retorno, sermos
outros/as.
Encontrarmos o fio é o desafio primeiro nesta busca por uma construção
teórica que fundamente nossa prática. Encontrarmos o fio é
perceber que temos uma bússola, que pode nos conduzir em mares revoltos,
em épocas de incertezas. Com o fio se faz o tecido. O tecido
se faz com nossa autoria de pensamento, com nossa autonomia no criar.
Reconfigurando paradigmas e pensando processos de autoria de pensamento:
"Palavras! Simples palavras! Que magia
possuíam até o ponto de dar
forma plástica a coisas informes!
Que é que pode ser tão real como as palavras?"
Oscar Wilde
Em tempos de reconfiguração de paradigmas, pensar nos processos
de autoria do sujeito nos remete a uma compreensão do sujeito que aprende,
ocupação a quem tem se dedicado a Psicopedagogia, que entende
a inteligência não como ponto principal, mas sim a "articulação
entre o organismo, o corpo, a inteligência e o desejo, numa relação
com o outro, que constitui o terreno onde ensino-aprendizagem acontece".
Neste caminhar, a produção teórica vai se fazendo a medida
que muitos/as psicopedagogos/as estão tecendo múltiplos fios e
criando e recriando significados, a partir de suas práticas e pesquisas,
numa inserção criativa em campos tais como a Psicologia,
a Neurobiologia, a Psicanálise, a Neuropsicologia, a Pedagogia e a Epistemologia
Genética.
Não é meu objetivo aqui mapear este caminho em construção,
mas posso perceber que este movimento existe e que, de uma forma vigorosa, está
ganhando espaço mais aprofundado no meio acadêmico e se constituindo
num movimento de renovação de pensares, não somente a nível
nacional, mas também latino-americano e internacional, sobre o aprender,
o ser, o fazer, o viver, o estar num mundo repleto de ambivalências.
Os fios com que se tece o tecido dão forma à rede que trato a
seguir. Esses fios são fabricados numa perspectiva ampla, aberta a novos
significados e que tentam, a meu ver, entender a demanda social presente na
crise de paradigmas que enfrentamos no contexto mundial.
Nas diferentes concepções e visões científicas contemporâneas,
paradigmas são revistos, criados, construídos, superados, pois
vivemos uma época de crise, resultante da linearidade do pensamento cartesiano-newtoniano,
que precisa ser suplantado por não mais dar conta do pensamento humano,
das ciências, das práticas sociais, dos problemas ambientais que
estamos, todos, submersos.
O fazer cartesiano-newtoniano, por suas características exploratórias,
mecânicas e fragmentárias, me impele a afirmar que a vida humana
e a vida de todo o planeta Terra estão ameaçada e que mudar de
paradigma é fundamental para que possa surgir orientação
nova para a formação de novas consciências.
A partir dos avanços dos movimentos sociais, do surgimento de novas idéias
para pensar o mundo, e da evolução da própria ciência
como um todo, é que podemos vislumbrar possibilidades de alteração
desta realidade.
Os fios, aqui compreendidos como conhecimentos, apesar de estarem num emaranhado
imenso, precisam ser trabalhados e, assim, tecer a rede necessária ao
revisitar e construir novos campos de sentido para nossas vidas, estudos, perspectivas.
Esses, quando manipulados pelas curiosas mãos que podemos ter, nos auxiliam
a personalizarmos técnicas, métodos e processos que atendam às
nossas diversidades de sonhos, utopias, desejos, medos, estilos, ritmos, necessidades,
ansiedades enfim.
Resgatar a qualidade de nossas contribuições no surgimento de
outros fios/conhecimentos faz surgir novas formas, múltiplas e contínuas,
de participação ativa, de construção de olhares:
pode contribuir para a melhoria e evolução da vida, superando
suas mazelas e disparidades.
O caminho que estamos por trilhar exige uma nova compreensão, remete-nos
e repensar nossas próprias práticas e condutas, nos estimula a
seguir propondo-nos a pensar que "a autonomia de pensamento é possível
e necessária para que uma pessoa tenha contato com a faculdade humana
mais apreciada, que é a liberdade" .
Liberdade é, como nos diz Cecília Meireles "esta palavra
que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que a explique,
nem ninguém que não a entenda".
A metáfora da rede: antigos e novos paradigmas em discussão
"Embora a forma de organização
social em rede tenha existido em outros tempos e espaços, o novo paradigma
da tecnologia da informação fornece a base material para sua expansão
penetrante em toda a estrutura social."
Manuel Castells
No desenvolver de meus pensares sobre o fio, pretendo discutir, ainda que brevemente,
algumas idéias a respeito da rede como metáfora possível
para a construção da teoria no campo da Psicopedagogia.
Meu objetivo diz respeito, principalmente, ao desenvolvimento da idéia
de rede como conhecimento humano e sua aplicabilidade no desenvolvimento da
própria Psicopedagogia.
Tanto no campo da Epistemologia como em outras ciências, a metáfora
da rede ganhou destaque mais evidenciado a partir da década de 90 do
século passado e pode, a meu ver, ser instrumento essencial aos processos
de busca de teoria/s em Psicopedagogia. Superando modelos que estavam voltados
à idéia de construção, tal metáfora nos movimenta
num tecido de elementos interconectados, quando o conhecimento se dá
" onde se entrelaçam prejuízos, intuições,
inervações, autocorreções, antecipações
e exageros, em poucas palavras, na experiência, que é densa, fundada,
mas de modo algum transparente em todos os seus pontos."
É fundamental compreender que nem todas as relações na
rede ficam claras, há pontos obscuros, nós a serem desatados nos
fios que a constituíram. Há, nesta afirmativa, uma tensão,
um suspense, um não-previsível: não se pode, ao tentar
superar o antigo paradigma cartesiano-newtoniano por um outro paradigma, sistêmico-contigencial,
querer ter controle, a certeza concreta, pronta, acabada, os resultados de tal
superação.
Assim, num esforço de tentarmos entender tudo isso, podemos pensar em
que formato organizar essas idéias. Acredito que é preciso pares
de categorias para uma análise mais abrangente: visão totalitária
e equilíbrio, casualidade e complexidade, antagonismo e complementaridade,
não-contradição e contradição, determinismo
e probabilidade, fragmentação e globalidade.
Na visão totalitária existem verdades absolutas, pouca consciência
das diferenças de interesses e de posturas sobre as decisões de
políticas públicas, ou seja, uma satisfação que
atenda a todos/as é possível e buscada. Em contrapartida, a visão
de equilíbrio nos remete pensar na complexidade das sociedades humanas,
com todas as suas contradições.
Entre casualidade e complexidade há uma outra idéia que pode nos
ser útil aqui: a linearidade e a permanência são substituídas
pelo que é cíclico, evolutivo, complexo, dinâmico. Neste
sentido, fica praticamente impossível querer descartar novas idéias
e novos modos de olhar. Na verdade, novas idéias, novos modos de olhar
se mostram como essenciais, principalmente no que se refere à práxis
psicopedagógica. Horizontes diferenciados, perspectivas mais abertas,
experimentações antes não pensadas nem vivenciadas ganham
espaço, tempo e lugar para ocorrerem. Mister se faz atentarmos e enfatizarmos,
nos espaços de formação do psicopedagogo, sobre este ponto:
cada vez mais é preciso pesquisar, estudar, ler, trocar, informar, gerando
um movimento de intercâmbio produtivo e que possa ampliar, cada vez, mais,
a dinâmica aqui evidenciada.
Outro conjunto de idéias pode compor ao pensarmos as categorias antagonismo
e complementaridade. No que concerne ao antagonismo, percebermos uma profunda
incoerência entre prática e teoria, ou seja, a prática é
dissociada da teoria a tal ponto que entre ambas não é possível
visualizarmos nenhuma relação efetivamente presente. Isso sem
acrescentarmos que há enorme disparidade entre o discurso e o que de
fato ocorre. Numa abordagem sistêmico-contigencial essa incoerência
é impulsionada para fora do círculo. É proposto o encontro
equilíbrio/harmonia, numa nova práxis onde prática e teoria
estejam irmanadas. A complementaridade surge como possibilidade concreta de
superação da dicotomia prática-teoria.
Um outro par de categorias: não-contradição e contradição
se apresentam: na abordagem sistêmico-contigencial, esta é vivenciada
como uma reflexão pautada na dialética e passa a ser encarada
como uma possibilidade de sistematização aberta a respeito dos
conflitos e crises, enquanto que aquela, no antigo paradigma, é percebida
como uma perene necessidade de consenso, ordem, disciplina e organização
exacerbada. Configura-se uma impermeabilidade e uma não aceitação
de movimentos mais dinâmicos: permanência e imutabilidade são
predominantes.
Em decorrência das características citadas acima se gera, no antigo
paradigma, o determinismo, compreendido com uma objetividade demasiada e forçada
e com a premissa de que tudo é assim porque tem que assim ser. Não
há espaço para o acaso: o que ocorre sem planejamento prévio,
sem mensuração estatística não merece aceitação
e credibilidade.
Em contraposição a idéia acima descrita, no novo paradigma
surge à probabilidade, ou seja, destacam-se os processos do vir a ser,
do pensar em uma alternativa para determinado problema. Amplia-se a capacidade
de conexão e os processos construtores da subjetividade ganham contorno
mais definido e, assim, admite-se: outras saídas e respostas são
possíveis.
Por fim, resta-nos destacar o par fragmentação e globalidade.
A superação da perspectiva do cuidar das coisas de modo separado,
cada parte em seu lugar, em seu tempo e espaço gerou uma realidade que,
ao mesmo tempo isolou-se e afetou o todo. Os acontecimentos, o mundo a realidade,
a sociedade, o conhecimento, o pensar filosófico, nada disso pode ser
possível isoladamente. A fragmentação nos levou ao desperdício
de idéias, pessoas, materiais, que nos remete a ter um mundo onde reina
o individualismo, o centralismo e a ausência de uma visão do todo
compreendido como diversidade, pluralidade e diferenças. A fragmentação
consolidou a lógica determinista do já estabelecido pela tradição,
gerando um mundo fechado, com certezas comprovadas e analisadas.
A globalidade pressupõe olhar criticamente para o fenômeno da fragmentação,
avaliando outras maneiras de tentar compreender a realidade que nos cerca. Neste
conceito outras possibilidades são existentes, outras hipóteses
podem ser levantadas, visando uma integração do todo com as partes
e das partes com o todo. Aqui existe uma rede complexa de múltiplas conexões,
geradoras de outras redes, onde indivíduos, propostas, métodos,
técnicas e conteúdos são discutidos sob uma perspectiva
holística, integral.
A rede, a partir da análise do confronto entre os dois paradigmas que
aqui trabalhamos, acaba por se constituir, então, como uma possibilidade
de dar-nos um fio mestre, condutor de processos mais abrangentes de construção
teórica. Podemos claramente perceber que um outro entendimento da vida
e suas complexidades podem ser gerados a partir das muitas variações
que estão presentes quando nos envolvemos em outros caminhos, visando
à transformação, a ruptura com o conceito de linearidade
cumulativa na evolução da ciência.
Retomando a discussão, é preciso que, ao se pensar na construção
de processos teóricos voltados à prática psicopedagógica,
considerarmos que:
"somos pescadores e nossas teorias são como
redes. E não deixamos de lado de bom grado as redes com as quais algumas
vezes pescamos pelo mero fato de que não servem para certos peixes ou
em determinados mares, mas continuamente inventamos e tecemos novas redes e
distintas e as lançamos à água, para ver o que pescamos
com elas. Não desprezamos rede alguma e em nenhuma confiamos excessivamente,
ainda que prefiramos carregar o barco com as redes mais eficazes e deixar no
porto as de menos uso. E assim, vamos navegando, renovando continuamente nosso
arsenal de redes em função das características da pesca."
Assim, o aprender e o fazer teoria em Psicopedagogia é, antes de qualquer
coisa, exercer a autonomia como elemento que faça germinar perguntas,
baseando-se no risco da criatividade e na capacidade de descobrirmos o sentido
presente no ato de não-conhecer. Enquanto sujeitos, somos capazes de
nos assumirmos como incompletos e, assim, nos aventurarmos na busca prazerosa
de construirmos conhecimentos, de encontrarmos outras explicações
para os fenômenos da vida.
Estando junto, fazendo-nos em redes de conhecimento, participando ativamente
de nosso tempo presente, militando por nossas causas, agregando novos/as parceiros/as
aos nossos comprometimentos e lutas, respeitando a diversidade dos fios, torna-se
possível nossa utopia – tão sonhada – da criação
de um mundo mais humano, justo e solidário.
É preciso se enredar, se entrelaçar, fazer-se fio, tecido, nó,
ponto de confluência, estação de emissão e recepção
de saberes; é necessário tornar-se capaz de ser elo de interligação
entre outros "eus" e assim, ser outro sujeito constituído em
busca de um outro tempo, uma outra vida.
A metáfora de rede aqui tratada pode ganhar outras conotações
e devemos, sempre, procurar outras possíveis articulações,
utilizando nossas possibilidades de construção de autorias de
pensamento: é só acreditar para poder querer, é só
querer e acreditar para ver.
FERNÁNDEZ Alicia. O saber em jogo: a psicopedagogia
possibilitando autorias de pensamento. Editora ARTMED, Porto Alegre, 2001, p.54
e ss.
MORIN, Edgar. Introdución à une penseé complexe, ESF. Tradução:
Itália e Portugal (Instituto Piaget)1990,103-104. Citado in: PETRAGLIA,
Izabel Cristina. Edgar Morin: a educação da complexidade do ser
e do saber. Editora Vozes, Petrópolis, 2000, p.81.
GÓMEZ, A. I. Pérez. Compreender o ensino na escola: modelos metodológicos
na investigação educativa. In.: GÓMEZ, A. I. Pérez
e SACRISTÁN, J. Gimeno. Compreender e transformar o ensino. Editora ARTMED,
Porto Alegre, 2000, p. 103.
Idem.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede. Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro,
1999, p. 497.
ADORNO, Theodor W. Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada.
Editora Ática, São Paulo, 1992, p. 133.
MOSTERÍN, Jesús. Conceptos y teorías en la ciencia. Alianza
Editorial, Madrid, 1987, p.174.
ADORNO, Theodor W. Minima moralia: reflexões
a partir da vida danificada. Editora Ática, São Paulo
BEAUCLAIR, João. O fio, a rede e o equilibrista: a busca permanente da
teoria no campo psicopedagógico. Conferência pronunciada no II
Congresso Latino-americano de Psicopedagogia,VI Congresso Brasileiro de Psicopedagogia,
promovido pela ABPp, Associação Brasileira de Psicopedagogia.
São Paulo, Universidade Mackenzie, 9 a 12 de julho de 2003. (
no prelo).
___________,_______. Educação para a Paz: um estilo de ‘aprenderensinar’
e ‘ensinaraprender’ na perspectiva da Educação em Direitos Humanos
como possível suporte psicopedagógico. Publicado no site www.fundacaoaprender.org.br
_____________, _____. Iniciantes idéias: a construção do
olhar do/a psicopedagogo/a. Artigo publicado no site da Associação
Brasileira de Psicopedagogia www.abpp.com.br
e no site www.psicopedagogiaonline.com.br
CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede. Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro,
1999.
FERNÁNDEZ Alicia. O saber em jogo: a psicopedagogia possibilitando autorias
de pensamento. Editora ARTMED, Porto Alegre, 2001.
GÓMEZ, A. I. Pérez. Compreender o ensino na escola: modelos metodológicos
na investigação educativa. In.: GÓMEZ, A. I. Pérez
e SACRISTÁN, J. Gimeno. Compreender e transformar o ensino. Editora ARTMED,
Porto Alegre, 2000.
MORIN, Edgar. Introdución à une penseé complexe, ESF. Tradução:
Itália e Portugal (Instituto Piaget)1990,103-104. Citado in: PETRAGLIA,
Izabel Cristina. Edgar Morin: a educação da complexidade do ser
e do saber. Editora Vozes, Petrópolis, 2000.
MOSTERÍN, Jesús. Conceptos y teorías en la ciencia. Alianza
Editorial, Madrid 1987.
Publicado na Revista Psicologia Brasil, julho de 2004.
Prof. João Beauclair
Psicopedagogo, Arte-educador, Mestre em Educação
joaobeauclair[arroba]yahoo.com.br
Homepage: http://www.profjoaobeauclair.net
Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
|
|