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Sobre o tempo da loucura em Nise da Silveira (página 2)

Jacileide Guimarães

Este autor2 nos alerta que o que um relógio comunica, por intermédio dos símbolos inscritos em seu mostrador, constitui aquilo a que chamamos tempo. Ao olhar o relógio, sei que são tantas ou quantas horas, não apenas para mim, mas para o conjunto da sociedade a que pertenço. Mas a compartimentalização do tempo em "tempo físico" por um lado e "tempo social" por outro é uma abordagem dicotômica e, por isso, obsoleta, "como se eles existissem e pudessem ser estudados independentemente um do outro". Isso, porém, é impossível. "[...] O estudo do 'tempo' é o de uma realidade humana inserida na natureza, e não de uma 'natureza' e uma realidade humana separadas".

Para Whitrow4 a nossa idéia de tempo decorre da reflexão acerca da experiência do presente, mas, no entanto, enquanto a nossa atenção concentra-se nesse presente, tendemos a não ter consciência do tempo, porque perdemos a noção de duração. E isso pode ser afetado de maneira drástica por um conjunto de fatores que nos rodeiam, tais como nosso estado físico geral, pela distorção proporcionada por drogas ou pelo confinamento por longos períodos em ambientes frios ou escuros, sem recurso a relógios. Sendo que, entre os fatores que influenciam nosso sentido de duração, porém, o mais amplamente experimentado é nossa idade, pois há um reconhecimento geral de que, à medida que ficamos mais velhos, o tempo, tal como o registram o relógio e o calendário, parece passar cada vez mais depressa.

Conforme o autor supracitado, atente-se para o alto grau de comprometimento do sentido de duração no manicômio, onde o estado físico geral da pessoa encontra-se afetado, o uso de drogas psicotrópicas interfere na senso-percepção e o confinamento em locais frios e escuros sem o recurso de relógios/calendários é lugar comum. E quanto à idade? Não são poucos os pacientes classificados com idade ignorada, e não foram menos os que passaram a ignorá-la no âmbito do manicômio.

A complexificação crescente da sociedade institucionalizou o tempo como dispositivo de alto grau de síntese, imprescindível no mundo ocidental industrializado, "levando todos a se perguntarem cada vez mais, incessantemente, 'Que horas são?', ou 'Que dia é hoje?'"2. Mas o que ocorreu com os pacientes psiquiátricos institucionalizados, que embora em uma sociedade que dispõe/enfatiza mecanismos de controle e demonstração/orientação do tempo não os utilizaram? Ou seja, o que subsistiu à orientação temporal convencional destas pessoas por mais de vinte anos em instituições que omitiram o uso de relógios e calendários? Se o tempo "necessita ser sustentado com seqüências que possam criar a sensação de continuidade"1 o sentido de duração quais as "estruturas de sustentação" empregadas por esses pacientes? Desveladas as pretensões de neutralidade da ciência, sabemos que apesar de classificado como desorientado no tempo e no espaço, o paciente psiquiátrico resguarda formas de orientação pessoal, não raro ancoradas em um tempo subjetivo ou, como disse Nise da Silveira5, um tempo sustentado por camadas da experiência do afeto pessoal. Mesmo porque, "no hospício, como nas prisões, o tempo objetivo está como se tivesse realmente sido estancado: tem-se a sensação de um presente enorme e vazio"6.

Se hoje os serviços substitutivos dos hospitais psiquiátricos ostentam signos de orientação temporal cronológica, no passado não foi assim. Nos grandes pavilhões dos manicômios, cujos herdeiros estão hoje em vias de desinstitucionalização, naqueles hospícios, os pacientes não tinham o privilégio, do ponto de vista convencional, de disporem de relógios e calendários.

Conforme Moffatt6, nos hospitais psiquiátricos o dia da alta é indefinido, não se estabelecem prazos terapêuticos. "Em princípio é possível permanecer internado 3, 6 meses, ou 10 anos, dependendo da sorte e do azar. Tudo isso conspira contra a elaboração de um projeto de vida ou, pelo menos, contra a definição de uma data de saída que permita organizar uma forma de perceber, de contar o tempo e, com isso, livrar-se um pouco desta sensação de tempo-morto, de tempo-infinito".

Minzoni7, em estudo realizado na década de 1970 em um hospital psiquiátrico de uma cidade do interior do Estado de São Paulo, constatou que na área destinada aos pacientes não se vê relógio, calendário ou espelho. Durante o dia, não existe horário para repouso e os pacientes indigentes não têm acesso ao leito; somente os particulares e alguns considerados melhores o têm. O horário das refeições é rígido, sendo trancadas as portas que oferecem acesso a outras áreas do hospital, além do pátio e banheiros. O paciente indigente não tem comunicação com o ambiente externo ao hospital, nem pode se comunicar com os familiares por carta ou telefone. A família não participa do tratamento, os dias de visita são regulamentados e nesses dias os familiares não podem circular pela área do hospital. Ficam restritos ao local destinado às visitas. Para os particulares, há liberdade de visitas e comunicação com a família. O hospital é rígido em seus regulamentos e rotinas, não permitindo a participação do pessoal de enfermagem e do paciente nas decisões.

Note-se a reprodução, no manicômio, da divisão dos pacientes em classes sociais, em que, para os indigentes, as condições e regulamentos do hospital acirram-se, sem deixar margem para qualquer liberdade. E quanto aos horários rígidos das refeições, Minzoni7 também constatou a discrepância em relação com os horários usuais na sociedade extramuro.

Goffman8, em sua abordagem sobre as instituições totais, dentre as quais classifica o "hospital para doentes mentais", refere-se ao "tempo morto" nessas instituições, em que o controle rigoroso das necessidades humanas é um fato constatado. Todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, pois uma atividade leva, em tempo determinado, à seguinte, e toda a seqüência de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e um grupo de funcionários.

Daí podermos inferir que tais horários, assim como as atividades, rigorosamente estabelecidas e impostas de cima, não implicam necessariamente, mas muito pelo contrário, no conhecimento dos horários para os internados como apreensão do tempo convencionado na sociedade. Ou seja, por certo, o tempo nas instituições totais enquadra-se no que Goffman8 denominou de "incompatibilidades das instituições totais" para com as estruturas básicas da sociedade, sobre o que este autor cita a forma de pagamento pelo trabalho realizado e a relação com a família, e aqui acrescentamos, a relação com o tempo.

Tais incompatibilidades geram o que Goffman8 chamou de "desculturamento" ou "destreinamento", que consiste na inabilidade temporária do paciente em enfrentar alguns aspectos de sua vida diária, dentre os quais destacamos o recurso à cronologia do tempo - ou o tempo objetivo - tal como no espaço cultural e social extramuro.

Esse autor8 traz exemplos de que a internação causa uma ruptura inicial profunda com os papéis vivenciados anteriormente pelo paciente institucionalizado, assim como a retirada de seus pertences individuais, remetendo-o a uma "perda do passado". Sobre este aspecto Moffatt6 refere-se a um passado "congelado" que compete para a ausência ou dificuldade de projeção/perspectiva do futuro.

Nas enfermarias dos hospitais psiquiátricos, em geral, têm-se como mobília "apenas cadeiras e bancos pesados de madeira". Segundo nossa experiência como trabalhadoras e pesquisadoras em saúde mental, podemos acrescentar, bancos e mesas fixos, chumbados ao chão, não podendo ser movidos de um lugar para outro, como, por exemplo, de um local escuro e sem ventilação para uma janela, mesmo que com grades, como são as janelas dos manicômios.

Porém, Goffman8 nos indica uma avaliação perspicaz no que se refere ao tempo do paciente psiquiátrico institucionalizado ao sugerir que o sentimento de tempo perdido nas instituições totais não se deve apenas às condições duras de vida, mas também às perdas de contatos sociais usuais e a impossibilidade de aí adquirir coisas que possam ser transferidas para a vida extramuro, por exemplo, dinheiro, formação de ligações conjugais, certidão de estudos realizados.

Os jornais e revistas produzidos pelos internados dos hospitais psiquiátricos não lhes dão o sentido temporal similarmente atribuído aos relógios e calendários por serem exibições institucionais (representadas pelos jornais, revistas, esportes internos, festa anual - o Natal e pelo teatro institucional). Tem-se nestas atividades indícios da presença da orientação oferecida pelo relógio e pelo calendário; no entanto, o caráter regulado dessas manifestações parece negligenciar tal orientação convencional, desconectando-se do sentido de duração do tempo. Seja pelo fato de serem atividades semi-erigidas apenas pelos "eleitos", seja pelo fato de serem atividades supervisionadas pela equipe dirigente, seja pelo fato da instantaneidade/momentaneidade - exibição - da ação. Ainda sobre os eleitos, vale destacar que, no hospital psiquiátrico, ser eleito significa ser obediente/subserviente - convertido ou colonizado8 -, o que por sua vez, implica na ausência de questionamento sobre qualquer coisa.

O paciente de hospitais para doentes mentais "parece atingir um novo platô quando aprende que pode sobreviver ao agir de uma forma que a sociedade considera como capaz de destruí-lo" 8. Supomos que isso se dá porque o paciente descobre/inventa formas de construção/sobrevivência. E sobre esse aspecto de sobrevivência do paciente psiquiátrico, nos detemos nas formas de sustentação com relação à sua percepção de tempo. O tempo oficialmente negado, mas que se afirma em formas de sobrevivência, como se afirmam outros aspectos da condição do paciente psiquiátrico institucionalizado por mais de vinte anos. Como constatação de formas de sobrevivência dentro das instituições totais, destaca-se, por exemplo, os "sistemas ocultos de comunicação" em que é empregado "um conjunto especial de convenções de comunicação entre si". Já uma forma de evidenciar a busca de conexão dos pacientes com o tempo objetivo e a constatação de que desejavam transformar aquele "tempo morto" em tempo vivo/vivido, tem-se o que para eles se revestia na idéia de tratamento médico: "a idéia de que a pessoa está passando por tratamento durante vários anos, mas que será útil para o resto da vida, pode dar a alguns pacientes a possibilidade de encontrar um sentido aceitável para o tempo que passam exilados no hospital"8.

Outro aspecto para encontrar um sentido aceitável para o tempo que passam exilados no hospital, usado por alguns pacientes, e maciçamente propugnado pela equipe médica do manicômio, é o recurso à laborterapia a cura pelo trabalho, ressalte-se que essa "terapia" foi advogada exclusivamente para os pacientes indigentes. "Uma das virtudes da doutrina de que os hospitais para doentes mentais são hospitais para tratamento de pessoas doentes é que os internados, depois de terem dedicado anos de suas vidas a esse tipo de exílio, podem tentar convencer-se de que trabalharam ativamente para sua cura e que, uma vez curados, o tempo aí dispendido terá sido um investimento razoável e proveitoso. Este sentimento de tempo morto provavelmente explica o alto valor dado às chamadas atividades de trabalho e/ou distração, isto é, atividades suficientemente excitantes para fazer o participante esquecer momentaneamente a sua situação real. Se se pode dizer que as atividades usuais nas instituições totais torturam o tempo, tais atividades o matam misericordiosamente"8. Atente-se para o fato de que o emprego de trabalho nos hospitais psiquiátricos é um tema amplo e polêmico e que aqui o frisamos apenas no que concerne à apropriação do sentido de tempo, não intencionando adentrar as suas demais particularidades.

Em hospitais psiquiátricos, no seu tempo morto, presente enorme e vazio, tem-se ainda o agravante do esgar da loucura, o estigma/cristalização da patologia na pessoa com sofrimento psíquico, favorecendo a sua classificação e conseqüente reducionismo da pessoa a um depósito de sinais e sintomas do diagnóstico aferido. Entendimento e abordagem que Nise da Silveira subverteu como psiquiatra e estudiosa da condição da pessoa com transtorno psiquiátrico, compreendendo o tempo subjetivo do paciente institucionalizado não apenas como "sintoma da doença", mas como produção de sentido de sua existência.

Se o tempo não passa, mas nós é que passamos por ele2, como passaram os internados indigentes dos hospitais psiquiátricos? De que forma eles passaram, apreenderam em si, o tempo sem símbolos? Quais os subterfúgios utilizados para preencher os emblemas convencionais, ou eles não calculavam, como nós, esse passar fugaz das horas, traduzido na precária constituição dos dias? Responderia Nise: Há sim um tempo do paciente psiquiátrico institucionalizado, um tempo equivocadamente considerado paradoxal porque simultaneamente estancado e acelerado: o tempo do afeto subjetivo. Estancado pelo fato de manter-se ancorado no passado ao passo que a vida institucional também não contribui para a sua compreensão e acelerado devido a velocidade da torrente de emoções trazidas pelos afetos particulares.

O olhar de Nise da Silveira vem ao encontro da abordagem da História Nova francesa, que prioriza a escrita do cotidiano de sujeitos comuns e anônimos, considerados marginais para a historiografia tradicional centrada na aclamação de "majestades" do cenário político das grandes cidades.

Para Le Goff e Nora9, a escrita da História Nova francesa traz novos problemas que colocam em causa a própria história; novas abordagens que modificam, enriquecem, subvertem os setores tradicionais da história; novos objetos, enfim, aparecem no campo epistemológico da história. Sob influência da economia, da sociologia, da geografia, da antropologia e da psicologia, a história pesquisará o campo econômico-social-mental que permeia e permanece nos acontecimentos.

Essa visão valoriza o levantamento e a consideração de fontes antes negligenciadas. Documentos arqueológicos, pictográficos, iconográficos, fotográficos, cinematográficos, numéricos, orais, enfim, de todo tipo. Todos os meios são tentados para se vencer as lacunas e silêncios das fontes, mesmo, e não sem risco, os considerados antiobjetivos10. Trata-se de uma história que se comunique com as suas fronteiras, seja a economia, a demografia, os costumes, a geografia, a psicologia, a psiquiatria. No dizer de Le Goff11: História dos homens, de todos os homens, não unicamente dos reis e dos grandes. História em movimento, história das evoluções e das transformações, não história estática, história quadro. História explicativa, não história puramente narrativa, descritiva ou dogmática. Uma nova escrita, tal que explique as lacunas, os silêncios da história tradicional, assentando-se tanto sobre esses vazios, quanto sobre os cheios que sobreviveram.

Schmitt12, na esteira do legado da História Nova, tece considerações sobre "a história dos marginais", sendo estes os que estão à margem da escrita historiográfica oficial, os que escapam a todas as estruturas de integração numerosas e complementares da sociedade, tais como a escola, a fábrica, a família, dentre outras, e chama a nossa atenção para o seguinte questionamento: "Eles são a-sociais em relação à sociedade dominante. Acaso isso significa que não possuem, em seu 'meio'' regras sociais próprias? Ou, inversamente, deve-se pensar que formam uma 'contra-sociedade'?". Esse autor destaca que, por escaparem à normalidade das estruturas sociais, os "loucos" e os indigentes fazem parte dos marginais, o que aglutina sobre a grande maioria dos pacientes psiquiátricos internados em manicômios um duplo caráter de marginalidade: indigente e louco. E nos remete ao pressuposto de que tais pacientes duplamente marginais possuem sim em seu "meio" regras sociais próprias e, que não inversamente, mas por isso mesmo formam uma contra-sociedade, espectro que produziu a sua maciça exclusão no século XVII13. Daí a incursão por uma escrita da história que permite a investigação dos marginais como sujeitos detentores de um discurso social que fala não apenas do seu lugar de produção, mas também denuncia a centralidade autoritária do discurso oficialmente vigente. Assim, o paciente psiquiátrico institucionalizado, classificado como louco e indigente denuncia a supremacia de um discurso da normalidade e de uma estratificação do seu poder aquisitivo.

Ainda Schmitt12 nos alerta para o cuidado que se deve ter com as palavras que escapam do silêncio, pois vêm de lugares da repressão e por isso atestam antes de mais nada o funcionamento bem ordenado da instituição judiciária, que aqui não perde o sentido se fizermos a alusão à instituição psiquiátrica. De fato, a hipótese básica é a de que uma sociedade se revela por inteiro no tratamento de suas margens, daí a contribuição essencial da história da marginalidade: preencher não somente as margens da história, mas também possibilitar uma releitura da história do centro, da versão oficial.

Por isso, intencionamos discutir o entendimento de Nise da Silveira sobre o tempo da loucura, posto que um tempo dividido em físico ou social de forma estanque não satisfaz a compreensão do tempo simultaneamente objetivo versus subjetivo, que é o tempo do viver.

A emoção de lidar: o tempo da loucura em Nise da Silveira

Nise Magalhães da Silveira nasceu em Maceió em 15 de fevereiro de 1905. Formou-se pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1926. Em 1933, aprovada por concurso público, torna-se psiquiatra da antiga Assistência a Psicopatas e Profilaxia no Rio de Janeiro. Em 1936, foi presa como comunista pela ditadura de Getúlio Vargas por porte de "livros subversivos" (livros de cunho marxista), permanecendo um ano e oito meses afastada do serviço público por motivos políticos. Readmitida no serviço público em 1944, fundou em 1946 a STOR do Centro Psiquiátrico Nacional no Engenho de Dentro no Rio de Janeiro. Em 1952, a partir do trabalho desenvolvido nesta seção do hospital, criou o Museu de Imagens do Inconsciente. Mantinha contato e intercâmbio com Carl Jung, de quem traz grande influência para o Brasil através de cursos, simpósios e conferências, além da aplicação prática de contribuições junguianas e da publicação de vários estudos relacionados14. Em carta a Arnaldo Alves da Motta, Nise conta que um dos doentes denominou as realizações de seu trabalho emoções de lidar, o que levou a substituição interna do "áspero título terapêutica ocupacional por Emoções de Lidar"15.

Psiquiatra e pesquisadora diferenciada pelo seu método de abordagem junto aos internados psicóticos, em geral institucionalizados de longa internação, Nise realizou o que hoje se tem claro como verdadeira revolução para os moldes psiquiátricos da época. Contrapondo-se aos métodos coercitivos e invasivos de tratamento da loucura, se posicionou a favor da compreensão do sofrimento psíquico e do máximo zêlo para com a pessoa doente, o que lhe rendeu opositores ferrenhos, defensores de uma psiquiatria "moderna", impositiva e autoritária16. Atualmente, é notório não só o êxito da terapêutica empregada por Nise, mas também o valor artístico das obras realizadas pelos doentes sob seus cuidados de 1946 até o fim de sua vida no ano de 1999, quando ainda mantinha vínculo com o hospital e os doentes. "A psiquiatria humanitária, carregada de afeto, que se identifica com o sofrimento e sem perder a lucidez, encontra sua síntese nesta mulher detentora dos opostos: fraca/forte, frágil/firme, tranqüila/explosiva, criativa/repetitiva, compreensiva/intransigente. Nise é um anjo duro"17.

Nise colocara a questão do tempo do paciente psiquiátrico, destacando a impossibilidade de comunicação e, portanto, do estabelecimento de uma relação satisfatória entre duas pessoas, se cada uma delas estiver vivendo em espaço e tempo diferentes. Sobre o que ressaltava ainda a relação indispensável psiquiatra-doente e alertava para o baixo número de profissionais que se lembram de considerar a peculiaridade do tempo-espaço do internado, dando-se por satisfeitos em investigar a orientação no mundo externo: "Que dia é hoje?", "Que horas são?", "Que lugar é este?", "Onde você está?" e outras perguntas do mesmo nível. Considerando ainda que dizer que o doente está orientado ou desorientado terá pouca significação para a relação profissional-paciente. "Faltará ainda muito para que seja penetrada a situação vivida por aquele em seu próprio espaço-tempo interior"5.

Nise já equacionara a preocupação do pensamento sociológico2 sobre a compartimentalização caduca do tempo em físico por um lado e social por outro, dicotomia que redunda na obsolescência de uma abordagem que pretende dois tempos divididos como se eles existissem e pudessem ser estudados independentemente um do outro. Sobrepujando essa divisão caduca do tempo, denunciava a unilateralidade prevalecente na abordagem da ciência psiquiátrica, notadamente de orientação cartesiana-newtoniana, onde a visão objetiva aprisiona e impede a consideração da existência de outro modus operandi, subjetivo, impregnado pela vivência da pessoa com sofrimento psíquico institucionalizada, portanto, a estrutura de sustentação da sua percepção de tempo passa necessariamente por afetos intensos estancados ou não. Sendo muitas vezes necessário por parte do terapeuta o estabelecimento de um vínculo inicialmente construído através de um nível não verbal de interação, pautado no acolhimento e na confiança da compreensão18.

Considerando a retroalimentação dos diferentes sistemas de percepção do mundo, o objetivo e o subjetivo, e a conseqüente superação de um tal entendimento estanque entre tempo físico e social, que predomina no modo objetivo na abordagem psiquiátrica, Nise referia-se à dificuldade para se alcançar, se penetrar terapeuticamente, na situação vivida pelo doente em seu próprio espaço-tempo subjetivo. Assim, guiando-se por uma interpretação de conjunto, orientada por conhecimentos de outras áreas como mitologia, filosofia, sociologia e antropologia, nos dava uma pista de como se encontrar com o tempo do doente através das suas histórias de vida. Em sua vivência profissional, Nise verificou ter sido a partir de uma intensa situação afetiva que o fluir do tempo "estancou" para as pessoas com grande sofrimento psíquico. As idéias, os afetos que permanecem dominantes durante todo o curso do processo psicótico, derivam sempre das situações que absorviam o indivíduo antes da doença, como se o tempo parasse5. Porém, um tempo centrado no afeto, aparentemente "parado" mas passível de compreensão e desvelamento para a própria evolução da terapêutica, uma vez considerada a sua dinâmica interior, a de um tempo calcado em afetos intensos. O afeto anterior, ou seja, a situação na qual eclodiu o processo psicótico, que culminou na internação psiquiátrica, seria, portanto, a chave para a conexão entre os tempos subjetivo do doente e o tempo objetivo do mundo, este último o tempo no qual estamos todos mergulhados, o veio da normalidade.

Hirata19, ao estudar a contribuição da psicologia analítica acerca da conceituação de tempo e de descompasso emocional, destaca o pensamento de que quanto mais emotiva uma vivência, tanto mais viva e duradoura é a sua lembrança. Assim, as emoções são o marca-passo da alma, do relógio anímico.

Tem-se, então, o cerne do disparate do saber orientado exclusivamente para a objetividade da ciência e, portanto, do visível, do mensurável. A psiquiatria tradicional, em seus excessos, tem sua própria camisa de força, traduzida na dissociação dos tempos subjetivo e objetivo com predomínio deste último como "o saber legítimo" do profissional sobre o doente e, em última instância, traduzido na realidade em que se tornaram os hospitais psiquiátricos: depósito de loucos.

A cultura psiquiátrica se distancia do doente através de dizeres/verdades como "desorientado no tempo e no espaço", quando deveria perguntar sobre que tempo e que espaço? Ou ainda quando declara um tal "embotamento afetivo", sem intercambiar as possibilidades simbólicas da existência do doente, que para Nise perfazem a síntese tempo-espaço-afeto. Determinado momento do afeto é a porta de entrada do processo psicótico que gera a institucionalização e todo esse processo passa a ser a referência de tempo-espaço para o doente, ou como disse Nise5, "verificamos que as vivências do tempo acham-se instintivamente interligadas aos intensos afetos do doente". Note-se a delicadeza de tal encadeamento, sem pretensão classificatória, sem nenhuma necessidade de definição da loucura20, 21, um cuidado que não desconsiderava a diferença ou intensidade dos estados mentais, mas também não os agrilhoava na desvantagem. Em 1999, ano em que Nise viria a falecer, Pedro Pellegrino22 dizia na apresentação da segunda edição de Cartas a Spinoza, escrito por ela: "Nise sonha alto". E quanto mais lutamos por uma assistência psiquiátrica brasileira pautada na atenção psicossocial, tanto mais comprovamos a atualidade do alto sonho de Nise, que não se atrevia a definir a loucura, fazia muito mais, acolhendo-a e intervindo incansavelmente para o resgate da dignidade do doente que ela preferia chamar pelo seu nome próprio. Como disse Pellegrino22: "Ave Nise!".

Considerações finais

O tempo, essa "coisa" que nos atravessa, se transmuta, mas não se dá ao encarceramento, não se contém às amarras disso ou daquilo e nem tão pouco amarra-nos, porque não somos os mesmos de um instante atrás, não se limita nas pretensões desta ou daquela ciência.

O tempo morto dos hospitais psiquiátricos, por exemplo, neste início de século XXI, já não é mais "natural", ou seja, em vias de desinstitucionalização, o objetivo é recuperar não só o "tempo perdido" mas o próprio sentido de tempo. As experiências neste âmbito vêm imprimindo outras formas de lidar. E na tendência compreensiva-inclusiva, Nise da Silveira foi precursora e mantém-se com extraordinária atualidade.

Nise sintetizou a necessidade da consideração do tempo versus afeto nos transtornos psiquiátricos, processos responsáveis por grande número de pacientes institucionalizados de longa internação. Sem reservas para com as susceptibilidades de um saber médico, buscava além de um esquadrinhamento "científico" à condição humana da pessoa com sofrimento psíquico. Reportando-se da vida ao sofrimento, Nise ventilou a perspectiva de entendimento e compreensão acerca do tempo da loucura. O tempo no hospital psiquiátrico, o "tempo morto", porém passível de sustentação para os que vivem institucionalizados e passível de compreensão para os que desejem conhecê-lo.

Em uma perspectiva de atenção psicossocial, a compreensão de Nise acerca do tempo da loucura traz uma contribuição que compete para o êxito da substituição dos hospitais e das formas arcaicas de abordagem do paciente psiquiátrico, favorecendo a satifação na emoção de lidar.

Colaboradores

J Guimarães trabalhou na concepção teórica, elaboração e redação final do texto; T Saeki trabalhou na concepção teórica e na organização do texto.

Referências

1. Moffatt A. Terapia de crise: teoria temporal do psiquismo. 3ª. ed. São Paulo: Cortez; 1987.       

2. Elias N. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1998.       

3. Bloch M. Introdução à história. Portugal: Publicações Europa-América Ltda; 1997.        

4. Whitrow GJ. O tempo na história: concepções do tempo da pré-história aos nossos dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1993.        

5. Silveira N. O Mundo das imagens. São Paulo: Ática; 2001.        

6. Moffatt A. Psicoterapia do oprimido: ideologia e técnica da psiquiatria popular. 5ª. ed. São Paulo: Cortez; 1984.       

7. Minzoni MA. Assistência de enfermagem ao doente mental internado: análise de uma experiência de treinamento de atendentes em hospital psiquiátrico [tese de livre-docência]. Ribeirão Preto (SP): Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo; 1975.       

8. Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva; 1974.        

9. Le Goff J, Nora P. História: novos problemas. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1995.        

10. Reis JC. Nouvelle histoire e tempo histórico: a contribuição de Febvre, Bloch e Braudel. São Paulo: Ática; 1994.        

11. Le Goff J. A história nova. In: Le Goff J, Chartier R, Revel J, organizadores. A história nova. 4ª. ed. São Paulo: Martins Fontes; 1998. p.25-64.        

12. Schmitt J-C. A história dos marginais. In: Le Goff J, Chartier R, Revel J, organizadores. A história nova. 4ª. ed. São Paulo: Martins Fontes; 1998. p. 261-290.         

13. Foucault M. História da loucura na Idade Clássica. 3ª. ed. São Paulo: Perspectiva; 1993.       

14. Silveira N. Gatos, a emoção de lidar. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial; 1998.        

15. Silveira N. Carta para Arnaldo Alves da Motta. In: Motta AA. Nise da Silveira, 100 anos de emoções de lidar. Junguiana 2005; 23: 7-21.       

16. Motta AA. Nise da Silveira, 100 anos de emoções de lidar. Junguiana 2005; 23, 2005, p. 7-21.         

17. Valcazaras L. Anjo duro: um salto em queda livre [ peça de teatro]; 1998.         

18. Aguiar J. Dossiê Jung: Nise, no Brasil a pioneira. EntreLivros 2006; 15:42-43.        

19. Hirata RA. O complexo de chronos e o descompasso emocional. Junguiana 2005;. 23: 67-77.        

20. Nise da Silveira - vida e obra [vídeo]. Disponível em: http://www.ccs.saude.gov.br/nise_da_silveira        

21. Memória da loucura [vídeo]. Disponível em: http://www.ccs.saude.gov.br         

22. Pellegrino PG. Um bilhete às cartas. In: Silveira N. Cartas a Spinoza. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1999.         

Jacileide Guimarães;

Toyoko Saeki

jaciguim@yahoo.com.br

Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, EERP/USP. Avenida do Café 1695, A-301. 14050-230. Ribeirão Preto-SP.

 Ciência & Saúde Coletiva v.12 n.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2007



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