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Para os propósitos deste artigo, apresentamos um conjunto de características que, ao nosso ver, conformam um conceito analítico acerca dos movimentos sociais bastante frutífero para pensarmos estes atores coletivos no mundo contemporâneo. Alberto Melucci3,7 constitui-se aqui como referência central, na medida em que suas análises buscam atualizar e apreender este fenômeno a partir de suas múltiplas configurações. Para o autor, os movimentos sociais são, acima de tudo, os profetas do presente: "anunciam a mudança possível, não para um futuro distante, mas para o presente da nossa vida. Obrigam o poder a tornar-se visível e lhe dão, assim, forma e rosto. Falam uma língua que parece unicamente deles, mas dizem alguma coisa que os transcende e, deste modo, falam para todos" 7
Melucci3,7 traz, ao nosso ver, de forma original e profunda, uma abordagem teórica sobre os movimentos sociais que procura romper com perspectivas reducionistas e dicotomizadas. Ao incorporar, para além dos atores propriamente ditos, o contexto, os recursos e as interações sociopolíticas, oferece pistas analíticas inovadoras para a compreensão das inter-relações (objetivas e subjetivas) do agir coletivo.
Assim, uma das características centrais deste quadro analítico diz respeito à compreensão de que os movimentos sociais não se constituem como fenômenos coletivos homogêneos ou como personagens dotados de vontades, projetos e sentidos independentes dos impulsos, pressões e restrições do contexto societal como puras subjetividades. Muito menos constituem-se como reflexos ou efeitos automáticos e necessários da realidade objetiva. Antes de mais nada, os movimentos sociais são ações coletivas de caráter fragmentário e heterogêneo que destinam boa parte de suas energias e recursos para o gerenciamento de sua complexidade.
Diferente de um sujeito dotado de interesses e de racionalidade própria, "a ação coletiva é um sistema de ação multipolar que combina orientações diversas, envolvendo atores múltiplos e implica um sistema de oportunidades e de vínculos que dá forma às suas relações"7. Trata-se de um processo de construção de identidades que depende da inter-relação entre as oportunidades (materiais e simbólicas) e o grau de oposição entre orientações diversas. Os objetivos da ação (o sentido da mesma para o ator), os meios (possibilidades e limites da ação) e o ambiente (o campo em que a ação se realiza) conformam os três eixos básicos que operam na constituição - dinâmica e complexa - das identidades, das escolhas e dos resultados da ação movimentalista.
Além do que, os movimentos sociais, nas sociedades complexas, são redes de ações que desenham uma estrutura submersa, um mosaico formado por indivíduos e grupos que, em estado de latência, gestionam, no cotidiano, as lutas, reflexões e os questionamentos acerca da realidade social. A visibilidade ocorre nas ocasiões de mobilizações coletivas que trazem à esfera pública, a partir de manifestações, protestos, encontros, eventos, a condensação, socialização, os conflitos e recriações deste mundo latente.
Pode-se inferir, seguindo análise de Doimo8, que estas redes conformam um campo ético-político enquanto compartilhamento de relações interpessoais e de atributos culturais, capazes de influir nos padrões culturais e nas formas de organização político-institucional. Dito de outra forma, a idéia de redes vai além de uma dimensão estratégica, caracterizada, entre outros, pela capacidade de articulação, organização e mobilização, na medida em que comporta, de forma nuclear, uma noção de solidariedade pautada no compartilhamento de princípios e valores. Segundo Scherer-Warren a solidariedade apresentará um "caráter emancipatório, ou em direção à realização de uma cidadania plena, à medida que for acompanhada por um pensamento crítico e auto-reflexivo em relação as suas práticas e experiências"9.
A articulação em forma de redes e o caráter multipolar dos movimentos sociais são elementos centrais na análise das ações coletivas contemporâneas. Porém, há um conjunto de características que fundamentam - e especificam analiticamente - este tipo de ação coletiva. De acordo com Melucci7, "um movimento social é uma ação coletiva cuja orientação comporta solidariedade, manifesta um conflito e implica a ruptura dos limites de compatibilidade do sistema ao qual a ação se refere"7. É na combinação (convém ressaltar as diferentes combinações e configurações desses [e outros] fatores no plano empírico, já que os diferentes movimentos sociais apresentam diferentes significados quanto aos objetivos, estruturas e mecanismos de organização; assim, apresentam caráter mais ou menos reivindicativo e/ou mais ou menos antagonista, entre outros) dessas três características que está assentada, no plano analítico, a especificidade dos movimentos sociais frente a outros tipos de ação ou organização coletiva.
O caráter conflitante e antagonista está relacionado às alterações nos mecanismos e nas ressignificações do sentido da produção nas sociedades complexas: combatem a dominação e o controle (político, técnico, mercantil) através da defesa do sujeito e de princípios universalistas de liberdade e igualdade10. Assim, produzir não significa mais (e apenas) um processo voltado para a produção e circulação de mercadorias, mas, fundamentalmente o controle de sistemas simbólicos, da produção das informações, dos sentidos e das relações sociais: "Os conflitos se movem, então, rumo à apropriação do sentido contra os aparatos distantes e impessoais que fazem da racionalidade instrumental a sua 'razão' e sobre esta base impõem identificação. As questões antagonistas não se limitam a atingir o processo produtivo em sentido estrito, mas consideram o tempo, o espaço, as relações, o si-mesmo dos indivíduos. Surgem questões relacionadas com o nascimento, com a morte, com a saúde, com a doença, que colocam, em primeiro plano, a relação com a natureza, a identidade sexual e afetiva, do agir individual. Nessas áreas, aumenta a intervenção dos aparatos de controle e de manipulação, mas se manifesta, também, uma reação difusa às definições externas de identidade, surgem questões de reapropriação que reivindicam o direito de ser eles mesmos."7
O que está em jogo, portanto, é a reapropriação do sujeito; do sentido e da motivação humana; reapropriação da capacidade de forjar sua própria identidade, capacidade esta historicamente amputada pelos processos de manipulação e controle dos aparatos de gestão dos sistemas complexos. Esse controle se dramatiza no que diz respeito aos códigos e sentidos dominantes acerca do louco e da loucura e de sua "administração" institucional. É neste campo que entra em cena o movimento da luta antimanicomial.
Louco, loucura e manicômio
Dentre as diferentes práticas e mecanismos de exclusão e controle que vêm operando - e se sofisticando em nossas sociedades, sobressai-se, em seus múltiplos aspectos, a realidade do "louco e da loucura". Transformada, pelos saberes médicos, em doença, alienação, desajuste, irracionalidade e perversão, a loucura carrega um conjunto de práticas, concepções e saberes que, ancorados em uma moralidade ditada pelos bons costumes, pela ordem e pelo trabalho produtivo, faz desligar, de forma explicitamente violenta, os diferentes laços de construção e pertencimento humanos. Legitimado pelo saber, esse desligamento opera através de um discurso que "subtrai a totalidade subjetiva e histórico-social a uma leitura classificatória do limite dado pelo saber médico [...] uma leitura produtora da redução, exclusão e morte social."11
O manicômio é a tradução mais completa dessa exclusão, controle e violência. Seus muros escondem a violência (física e simbólica) através de uma roupagem protetora que desculpabiliza a sociedade e descontextualiza os processos sócio-históricos da produção e reprodução da loucura.
A ruptura com o modelo manicomial significa, para o movimento, muito mais do que o fim do hospital psiquiátrico, pois toma como ponto de partida, de acordo com Abou-Yd & Silva12, a crítica profunda aos olhares e concepções acerca deste fenômeno. Significa a "contraposição à negatividade patológica construída na observação favorecida pela segregação e articuladora de noções e conceitos como a incapacidade, a periculosidade, a invalidez e a inimputabilidade". "Significa ainda mirar a cidade como o lugar da inserção"; a possibilidade de ocupação, produção e compartilhamento do território a partir de uma cidadania ativa e efetiva.
Seguindo concepção de Foucault, militantes do movimento, a exemplo de Paulo Amarante, utilizam os termos louco e loucura numa perspectiva mais ampla e geral:
Talvez sem definição precisa, mas que se opõe à doença mental, conceito construído pela psiquiatria que reduz a complexidade daquela concepção mais geral, inespecífica, inexplicável em sua totalidade, que é a de loucura, e que a reduz a apenas um distúrbio biológico ou psicossocial (ou ambos). Então loucura se refere a esta experiência humana de estar no mundo de uma forma diversa daquela que o homem, ideológica e idealisticamente, considera como normal. E louco é o sujeito destas vivências ("erlebenis") e destas experiências. (Depoimento pessoal. Paulo Amarante, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz - FIOCRUZ)
Este início está detalhado no livro Loucos pela Vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil11.
Seguindo a trajetória de muitos outros movimentos sociais do país, é no contexto da abertura do regime militar que surgem as primeiras manifestações no setor de saúde, principalmente através da constituição, em 1976, do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e do movimento de Renovação Médica (REME) enquanto espaços de discussão e produção do pensamento crítico na área. É basicamente no interior destes setores que surge o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, movimento este que assume papel relevante nas denúncias e acusações ao governo militar, principalmente sobre o sistema nacional de assistência psiquiátrica, que inclui práticas de tortura, fraudes e corrupção. As reivindicações giram em torno de aumento salarial, redução de número excessivo de consultas por turno de trabalho, críticas à cronificação do manicômio e ao uso do eletrochoque, melhores condições de assistência à população e pela humanização dos serviços. Este movimento dá início a uma greve (durante oito meses no ano de 1978) que alcança importante repercussão na imprensa.
Com a realização do V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em outubro de 1978, testemunha-se o início de uma discussão política que não se limita ao campo da saúde mental, estendendo-se para o debate sobre o regime político nacional. Importante se faz destacar, neste processo, a vinda ao Brasil de Franco Basaglia, Felix Guattari, Robert Castel e Erving Goffman para o I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições no Rio de Janeiro. Em 1979 ocorre, em São Paulo, o I Encontro Nacional do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, cujas discussões centraram na necessidade de um estreitamento mais articulado com outros movimentos sociais, e (em Belo Horizonte), o III Congresso Mineiro de Psiquiatria que, afinado com o MTSM11, propõe a realização de trabalhos "alternativos" de assistência psiquiátrica. O ano de 1987 se destaca pela realização de dois eventos importantes: a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Congresso Nacional do MTSM11 (em Bauru/SP). Este segundo evento vai registrar a presença de associações de usuários e familiares, como a "Loucos pela Vida" de São Paulo e a Sociedade de Serviços Gerais para a Integração Social pelo Trabalho (SOSINTRA) do Rio de Janeiro, entre outras. Com a participação de novas associações, passa a se constituir em um movimento mais amplo, na medida em que não apenas trabalhadores, mas outros atores se incorporam à luta pela transformação das políticas e práticas psiquiátricas11.
Esse momento marca uma renovação teórica e política do MTSM11, através de um processo de distanciamento do movimento em relação ao Estado e de aproximação com as entidades de usuários e familiares que passaram a participar das discussões. Instala-se o lema do movimento: por uma sociedade sem manicômios. Este lema sinaliza um movimento orientado para a discussão da questão da loucura para além do limite assistencial, concretizando a criação de uma utopia que passa a demarcar um campo de crítica à realidade do "campo" da saúde mental, principalmente do tratamento dado aos "loucos". Atualmente, esta discussão é retomada, principalmente em Santa Catarina, sob a égide "por uma vida sem manicômios", já que a sociedade pode também ser o manicômio.
Tendo em vista uma significativa aproximação dos usuários e dos familiares, é criado, neste II Congresso, o Manifesto de Bauru que, segundo Silva14, constitui-se como uma espécie de documento de fundação do movimento antimanicomial que marca a afirmação do laço social entre os profissionais com a sociedade para o enfrentamento da questão da loucura e suas formas de tratamento.
A partir deste manifesto, surge a Articulação Nacional da Luta Antimanicomial que, segundo Lobosque15, significa: "Movimento - não um partido, uma nova instituição ou entidade, mas um modo político peculiar de organização da sociedade em prol de uma causa; Nacional - não algo que ocorre isoladamente num determinado ponto do país, e sim um conjunto de práticas vigentes em pontos mais diversos do nosso território; Luta - não uma solicitação, mas um enfrentamento, não um consenso, mas algo que põe em questão poderes e privilégios; Antimanicomial - uma posição clara então escolhida, juntamente com a palavra de ordem indispensável a um combate político, e que desde então nos reúne: por uma sociedade sem manicômios".
Para a autora15, abre-se e publiciza-se o debate em direção à ruptura radical com uma perspectiva tecnificista sobre a loucura.
No espaço de seis anos, compreendidos entre 1987 e 1993, várias articulações foram realizadas, diversos núcleos do movimento foram se constituindo e, no ano de 1993, consolidando o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA)13, foi realizado o I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial em Salvador/BA (neste encontro, é elaborada a carta sobre os direitos dos usuários e familiares dos serviços de saúde mental), cujo eixo principal das discussões girava em torno da organização do movimento. De acordo com o Relatório Final do I Encontro do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial13: "O movimento da luta antimanicomial é um movimento social, plural, independente, autônomo que deve manter parcerias com outros movimentos sociais. É necessário um fortalecimento através de novos espaços de reflexões para que a sociedade se aproprie desta luta. Sua representação nos conselhos municipais e estaduais de saúde, nos fóruns sociais, entidades de categorias, movimentos populares e setores políticos seriam algumas formas de fortalecimento".
A busca por uma radical transformação nas relações sociedade/louco/loucura é desenhada pelo MLA com base em várias dimensões do processo da Reforma Psiquiátrica. Amarante17 conceitua Reforma Psiquiátrica (RP) como um processo social complexo que se configura na e pela articulação de várias dimensões que são simultâneas e inter-relacionadas, que envolvem movimentos, atores, conflitos e uma transcendência do objeto de conhecimento que nenhum método cognitivo ou teoria podem captar e compreender em sua complexidade e totalidade. O processo da RP, só pode ser discutido dentro de quatro dimensões: dimensão epistemológica ou teórico-conceitual - referente a novas categorias para pensar o fazer e dar-lhe suporte: "Uma prática a espera de teoria", como dizia Saraceno18 . Neste campo, não há uma teoria produzida pelo MLA, mas teorias que se aproximam deste e que o instrumentalizam, a exemplo dos livros: Princípios para uma clínica antimanicomial19; Experiências da Loucura15; Clínica em Movimento20; Loucura, ética e Política: escritos militantes21; Dialética dos Movimentos sociais no Brasil: Por que Reforma Psiquiátrica?22; dimensão técnico-assistencial o cuidado em saúde mental é o elemento motivador para esta dimensão23; dimensão jurídico-politico ênfase nos direitos24; e dimensão sociocultural - modificar a concepção e o estereótipo que se mantém sobre o louco e a loucura.
Os atores sociais da reforma psiquiátrica nas décadas de 1970 e 1980 vêm constituindo um campo de ações e lutas sociais, a partir de um conjunto de sujeitos e setores11, quais sejam: o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, hoje MLA, por se constituírem em um sujeito político privilegiado na conceituação, divulgação, mobilização e implantação de práticas transformadoras, na fundação de uma reflexão profunda e crítica ao modelo da psiquiatria, fazendo surgir, desta forma, uma nova política de saúde mental; a Associação Brasileira de Psiquiatria, por esta entidade estar preocupada com aspectos de aprimoramento científico no campo da psiquiatria; o setor privado, representado pela Federação Brasileira de Hospitais, que disputa verbas da previdência social; a indústria farmacêutica, que divulga a ideologia do medicamento como recurso fundamental, senão único, no tratamento dos transtornos mentais; as associações de usuários e familiares, que deixam de ser objeto de intervenção psiquiátrica para tornarem-se agentes de transformação da realidade. Assim, são estes atores que, com suas ideologias, perspectivas e práticas diferentes constituem um cenário conflitante, de enfrentamento e que conferem o principal campo das tensões na área da saúde mental e psiquiátrica no Brasil.
Em um plano geral, os conflitos referentes à questão do louco e da loucura se tornam mais evidentes entre os setores que estão localizados em campos antagônicos: os antimanicomialistas versus os manicomialistas.
Além desses conflitos, percebe-se importantes diferenças e disputas no interior do próprio movimento de luta antimanicomial. Exemplo disso foram os desgastes que ocorreram no V Encontro Nacional. Para Lobosque25, o limite do insuportável atingiu sua extremidade no V encontro do MLA, já que o crescimento numérico de participantes torna-se inversamente proporcional a sua preparação e formação política que emana pobreza de debates e propostas sem reflexão.
Tendo em vista os conflitos e impasses - entre os impasses, destaca-se: a constituição de um colegiado nacional com dois representantes de cada Estado, o espaçamento dos encontros de dois para três anos, a continuidade dos encontros de usuários e familiares, também para três anos, e a realização de feiras culturais, nos espaços vagos, para pessoas a fim de conhecer e participar das atividades do movimento - o encontro terminou sem que se conseguissem deliberar a composição da próxima Secretaria Executiva Nacional e os representantes para a Comissão Intersetorial de Saúde Mental. Após este V encontro, e devido a sua inconclusão, houve duas plenárias nacionais26, sendo que da participação da I plenária nacional para a II, houve uma ruptura, ou um desmembramento de algumas lideranças do MLA, resultando na configuração de uma outra forma organizativa em virtude dos conflitos acerca das formas organizativas e estruturantes do MLA. "O comparecimento à plenária de São Paulo, em 2002, foi nosso derradeiro esforço no sentido de solucionar tais problemas: lamentavelmente, sequer conseguimos pautar sua discussão. A partir daí, decidimos não comparecer ao último Encontro de Usuários e Familiares, ocorrido em Xerém, em setembro deste ano" (este trecho faz parte do manifesto intitulado: Fundação da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial Manifesto pela luta antimanicomial em boa companhia, enviado ao Conselho Nacional de Saúde em março de 2003). Segue ainda: "Não permaneceremos como reféns em nosso próprio campo, imobilizados em nome de uma unidade suposta, ou de uma falsa aparência: retiramo-nos, pois, de um espaço organizativo que já rompeu há muito, a nosso ver, com o pacto de Fundação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, em Salvador".
Constituiu-se, a partir de março de 2003, a Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial, que realizou o seu primeiro encontro nacional em dezembro de 2004 no estado do Ceará (CE). Este novo movimento no campo antimanicomial reúne lideranças expressivas de profissionais, usuários e familiares organizados em vários estados do país através de associações que reúnem estes segmentos. Possuem espaços e fóruns organizados que visam discutir a clinica antimanicomial, a Reforma Psiquiátrica e a militância política, entre outros.
O mais antigo destes atores, o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial realizou sua segunda plenária em Outubro de 2002 em São Paulo e teve como pautas: avaliação da conjuntura nacional e sua relação com o Movimento da Luta Antimanicomial; formato da Secretaria Executiva Nacional colegiada gestão 2002/2004; VI encontro de usuários e familiares; participação do MLA no Fórum Social Mundial/2003, em Porto Alegre.
As diferenças de propostas no interior do movimento expressam algumas divergências e conflitos neste campo. A existência de três segmentos - usuários, familiares e profissionais - é um ingrediente importante no aumento da complexidade identitária e na formulação de interesses.
Apresentando um perfil mais cuidadoso acerca do quadro associativo que atua no campo da saúde mental no Brasil, Vasconcelos27 analisa algumas dificuldades e conflitos no interior deste campo. Interessa aqui destacar:
a) As divergências acerca da constituição identitária do movimento. Se para alguns tornou-se cada vez mais necessária a autonomização dos segmentos, para outros, essa autonomização implicaria em polarizar artificialmente e de forma desnecessária conflitos dentro dos serviços e grupos, como também no risco de aumentar a já frágil situação econômica do movimento para bancar a própria organização e os encontros. Além disso, aumentaria a fragmentação e isolamento político do movimento como um todo, em um contexto (neoliberal) de forte competição por recursos escassos entre os diversos ramos das políticas sociais e de saúde27.
Vasconcelos28 mostra como estas diferenças se dão também nos movimentos de usuários em saúde mental dos países do norte europeu e dos Estados Unidos. Nestes, há muita discussão sobre a representação e a organização autônoma dos usuários em relação a familiares e trabalhadores. Por exemplo, conforme Vasconcelos28, uma grande liderança sueca chamada Maths Jesperson defende o movimento próprio dos usuários "para não misturar profissionais e famílias falando em nosso nome. Há interesses diferentes. O diálogo entre os três deve se iniciar com este reconhecimento e nós temos de lutar para afirmar nossa experiência e pontos de vista próprios"
b) Os embates acerca da polarização entre prática institucional versus mobilização social. Seguindo orientação mais geral do associativismo no país em direção a um processo de institucionalização29, tais embates vêm pautando os debates no interior da sociedade civil brasileira30 e estão marcados não apenas pelo contexto democrático, que abriu diferentes canais de participação e controle social, como também pela hegemonia de uma política de reforma do Estado caracterizada por medidas de privatização, terceirização e redução dos direitos sociais.
c) As diferenças de recursos, de interesses e de poder entre os diferentes segmentos que compõem o movimento antimanicomial. De acordo com Vasconcelos27, [o MLA vem] "reivindicando um reconhecimento das características particulares dos usuários e familiares enquanto atores políticos. Seria necessário, por exemplo, reconhecer os parcos recursos econômicos e culturais da maioria dos militantes usuários e familiares para a plena participação na vida associativa e política". Há que se ressaltar a importância de medidas e estratégias de ampliação da qualificação dos militantes.
Assim, parece oportuno apresentarmos aquilo que nos parece constituir alguns dos principais desafios do movimento:
1. A relação ou articulação entre os diferentes atores, interesses e identidades. Em vez de nos perguntarmos se o movimento deve ser autônomo, de usuários, de familiares e /ou de trabalhadores, já que os usuários e familiares vêm realizando seus encontros nacionais, parece mais oportuno refletirmos acerca do reconhecimento da pluralidade e das diferenças e da constituição de um campo ético político comum. Para Lobosque25, a ética diz respeito à constituição de um coletivo político capaz de falar em seu próprio nome. Assim, reconhecer as diferentes identidades pode, ao invés de implicar em fragmentações, fazer valer o princípio da pluralidade e da construção de espaços públicos que respeitem as diferentes falas e lugares dos diferentes sujeitos. O tratamento igual dos diferentes requer um conjunto de ações direcionadas para o "empoderamento"31 dos segmentos e o respeito às suas especificidades. Trata-se, de maneira geral, do reconhecimento das diferenças e do combate às desigualdades, no fortalecimento de um campo ético-político pautado nos valores da solidariedade, democracia e justiça social.
2. A combinação de diferentes estratégias de organização e luta, rompendo com perspectivas maniqueístas que optam ou pela inserção institucional ou pela mobilização social. Afinal, estas dimensões constituem diferentes espaços da vida social que se impactam mutuamente. Quanto aos conflitos sobre a organização do movimento o modo como está estruturado e organizado (a secretaria executiva, sua composição, suas subsecretarias) - parece que ainda não se tem uma forma organizativa que contemple uma ação "mais" conjunta e articulada.
3. Além da luta institucional (no interior das instituições de saúde, a ocupação de espaços conselhistas, a articulação com a política partidária e com os atores governamentais, etc.) e da ação sociocultural (tendo em vista transformar as representações sociais), há que se preocupar com a formação política dos militantes e com a ampliação de seus quadros. A articulação em forma de redes, a utilização da mídia, a realização de cursos e projetos de qualificação são, entre outros, importantes medidas neste sentido. Além disso, problema também recorrente nos movimentos sociais de maneira geral, a questão do financiamento requer a discussão de como captar recursos para campanhas, encontros e realização de projetos, entre outros. E, por último, a necessidade de estabelecer um processo de avaliação da ação coletiva, já que os rumos do movimento necessitam ser mais discutidos entre si, suas perspectivas e suas responsabilidades.
Para Lobosque15, o movimento nacional da luta antimanicomial é uma instância política inscrita num processo mais amplo de transformações sociais, cujo front consiste no combate às formas de exclusão que tomam a loucura como objeto - front radical, na medida em que estas formas de exclusão relativas à loucura resumem formas muito poderosas de exclusão operantes em nosso cultura. Para Soalheiro16, o movimento antimanicomial é "um conjunto de estratégias que exigem iniciativas políticas, jurídicas, culturais que criam, possibilitam e marcam a presença da loucura na cidade".
O MLA constitui-se como um importante movimento social na sociedade brasileira, na medida em que se organiza e se articula tendo em vista transformar as condições, relações e representações acerca da loucura em nossa sociedade. Suas ações e lutas estão direcionadas e vêm impactando as diferentes dimensões da vida social.
Como vimos, os movimentos sociais não se constituem como fenômenos coletivos homogêneos ou como personagens dotados de vontades, projetos e sentidos independentes dos impulsos, pressões e restrições do contexto societal - como puras subjetividades. Muito menos constituem-se como reflexos ou efeitos automáticos e necessários da realidade objetiva. Antes de mais nada, os movimentos sociais são ações coletivas de caráter fragmentário e heterogêneo que destinam boa parte de suas energias e recursos para o gerenciamento de sua complexidade.
Resgatando análise de Melucci7, pode-se dizer que o [Movimento de Luta Antimanicomial] é uma ação coletiva cuja orientação comporta solidariedade, manifesta conflitos e implica a ruptura dos limites de compatibilidade do sistema de saúde mental no país. A configuração dos atores e instituições (trabalhadores, profissionais, políticos, empresários, usuários e familiares) conforma um quadro multipolar deste campo que, embora atravessado por diversos conflitos e ambigüidades, vem promovendo alterações significativas nas quatro dimensões apontadas, quais sejam: epistemológica, técnico-assistencial, político-jurídica e sociocultural.
Colaboradores
LHH Lüchmann e J Rodrigues participaram igualmente de todas as etapas da elaboração do artigo.
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2. Scherer-Warren I, Lüchmann LHH. Situando o debate sobre movimentos sociais e sociedade civil no Brasil Introdução. Revista Política & Sociedade 2004; 1(5).
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4. Chauí M. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Moderna; 1981.
5. Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática [GECD]. Os movimentos sociais e a construção democrática: sociedade civil, esfera pública e gestão participativa. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade de Campinas. Idéias 1999; 5:2.
6. Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática [GECD]. Os movimentos sociais e a construção democrática: sociedade civil, esfera pública e gestão participativa. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade de Campinas. Idéias 1999; 6:1.
7. Melucci A. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas.Petrópolis: Vozes; 2001.
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24. Vasconcelos EM. Do hospício a comunidade: mudança sim; negligência não. Belo Horizonte: Segrac; 1992.
25. Lobosque AM. Loucura, ética e política: algumas questões de ordem da luta antimanicomial. In: Conselho Federal de Psicologia, organizadores. Loucura, ética e política: escritos militantes. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2003.
26. Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA). Relatório Final do V Encontro Nacional do Movimento da Luta Antimanicomial - Luta Antimanicomial 2001: Como estamos? O que queremos? Para onde Vamos? Rio de Janeiro: Miguel Pereira; 2004.
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31. Vasconcelos EM. O poder que brota da dor e opressão: empowerment, sua história, teorias e estratégias. São Paulo: Paulus; 2003.
Lígia Helena Hahn LüchmannI;
ligia@cfh.ufsc.br
Jefferson RodriguesII
ICentro de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia e Ciência Política, Universidade Federal de Santa Catarina. Campus Universitário Trindade, Trindade. 88040-900 Florianopolis SC. IIUniversidade Federal de Santa Catarina
Ciência& Saúde Coletiva v.12 n.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2007
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