Este artigo interpreta parcialmente os símbolos que compõem o imaginário do "Cruzeiro", "Livro Sagrado" da religião daimista. O Santo Daime é um culto essencialmente musical. Um de seus ritos denomina-se "bailado" porque nele os adeptos (fardados) bailam em formação quadrilátera organizada por gênero, entoando hinos cujos compassos são marcados pelo toque dos maracás. Esses instrumentos cumprem, ainda, a função de "arma espiritual".
O hinário "O Cruzeiro", de Raimundo Irineu Serra, começou a ser "recebido" do "astral" (região "divinal") quando ele principiava, desde 1912, sua iniciação com o uso ritual de ayahuasca, conduzida por ayahuasqueros mais experientes, a partir das trocas culturais estabelecidas entre índios e seringueiros nas selvas acreanas. Mudando-se para Rio Branco, em 1930, Irineu organizou uma comunidade agrícola e deu continuidade ao seu trabalho com a ayahuasca. Ao longo do processo de constituição de sua pessoa como líder religioso e "curador" seu hinário foi sendo recebido (até próximo de sua morte, em 1971), assinalando o seu percurso e constituindo o modelo para os que o acompanhavam e para os que viriam depois. Deste modo, todos os hinários da religião daimista têm por referência o "Cruzeiro".
O recebimento de hinos independe da posição do adepto na estrutura organizacional do culto. Desse modo, é possível que algum líder não seja dono de hinário. Os hinos são recebidos e organizados seqüencialmente, dizendo respeito à "passagens" (acontecimentos) na vida do adepto e da coletividade, podendo ainda referir-se a questões que afetam o país, o mundo ou o cosmos. Ao serem recebidos, são avaliados pelo dirigente, que verifica se ele é oriundo da "linha de trabalho do "Mestre", mestre Irineu, "Chefe Império Rei Juramidã". Na avaliação leva-se em conta a linha temática - a mensagem dos hinos - e a linha melódica que, deve corresponder a um dos três gêneros musicais: valsa, mazurca ou marcha. Gêneros que coincidentemente com o "astral", tinham a preferência do Mestre Irineu.
O "Cruzeiro" é vivenciado pelos adeptos, tanto do ponto de vista teológico quanto ritual, como terceiro "evangelho" que (junto ao Velho e ao Novo Testamento) dá continuidade aos ensinamentos do "Pai Eterno", de "Jesus Cristo" e da "Virgem Mãe" na pessoa de Juramidã. Ele também é conhecido como "Evangelho da Floresta" (Silva,1996). Estes dados desenham nossa questão: trata-se de texto sagrado que contém ensinamentos de conduta moral e ritual. É obra do "produtor de religião", no dizer de Otto (1985), do mestre fundador de uma escola espiritual. Essa condição é exposta, entre outros, no hino dezesseis, terceira estrofe, que diz: "Ó minha/ Ó mãe do coração/ eu vivo nesta escola/ para ensinar os meus irmãos". A dimensão religiosa é vivenciada como espaço de aprendizagem e de ensino. Considera-se que toda a doutrina está contida nesse hinário, cuja origem é o "astral".
O confronto com o astral proporciona mergulho em realidades ontológicas perenes, processo de reencontro com o ser, sua "essência", seu destino, confronto com o mistério. Através dele é possível auto-examinar ações, estados e sentimentos. De fato, a importância do "livro santo" na "provisão de hormônios simbólicos" foi assinalada por Durand (1995:45).
O Cruzeiro, constituindo-se em modelo dos processos de descoberta do "ser verdadeiro", movimento que inclui identificação e subordinação ao ser divino, contém, de forma nítida o processo de constituição da identidade e legitimidade do "Mestre Ensinador", modo de ser "essencial" do Mestre Irineu. Seu hinário, portanto, mostra os desdobramentos e os temas principais de seu processo de auto-descoberta e, de legitimação dessa "verdade" frente ao grupo de adeptos e à sociedade envolvente.
O hino número um, "Lua Branca", é o registro ontológico do "Cruzeiro" e, consequentemente, do culto ao Santo Daime. Esse hino permite ver a similitude do culto com a estrutura recorrente das religiões estudadas de um ponto de vista histórico-comparativo por Eliade (1992): trata-se de processo de substituição ou fusão de sacralidades mais distantes por sacralidades próximas. O hino "Lua Branca" registra a hierofania que funda "O Cruzeiro", ao mesmo tempo que seu simbolismo prolonga hierofanias anteriores onde, a partir da "Lua Branca", desdobra-se a epifania da "Deusa Universal", "Nossa Senhora da Conceição", "Rainha da Floresta".
Estabeleceremos para a análise do "Cruzeiro", não a leitura seqüencial, como o fato de começarmos pelo hino número um, "Lua Branca", poderia sugerir. Segundo o ponto de vista formado por nossa pesquisa, esse hinário, como os outros do culto ao Santo Daime, mostram-se heurísticos se abordados não apenas evolutivamente mas, considerados também, em suas interrelações temáticas. Durand (1988) também assinalou o "isotopismo" das imagens chamando-o de "constelações de imagens".
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