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Isso faz com que haja muitas leituras conflitantes sobre as contribuições de Foucault para a História, incluindo aí muita incompreensão sobre suas reflexões históricas relacionadas às propostas da Análise do Discurso. Estes fatos são pertinentes de se analisar porque não são poucos os que reconhecem nos discursos apenas elementos de uma estrutura lingüística, negando as possibilidades de uma abordagem sobre o acontecimento tratado em sua irrupção histórico-discursiva.
Mas, conforme já destacamos, uma discussão acerca destes encontros e desencontros entre a História e a Análise do Discurso passa por uma noção da concepção de Lingüística que ainda hoje prevalece entre os historiadores. Em primeiro lugar é preciso ter mais clareza sobre o trabalho do lingüista na atualidade. Um estudo da evolução histórica da Lingüística caberia bem neste texto, entretanto, apesar da pertinência, não será nossa intenção fazer tal percurso. Não apenas porque nos consideramos incapazes para tal empreitada, mas porque no momento estamos mais interessados em situar algumas mudanças dentro da Lingüística que a aproximou da História. Algumas destas mudanças foram percebidas desde as décadas de 60/ 70, por representantes dos Annales, que estavam interessados em indicar Novas Abordagens, Novos Objetos e Novos Problemas para a História, sugerindo o estudo da língua como objeto da História tomado numa perspectiva interdisciplinar da História com a lingüística. Tomemos, então, o momento em que Jean-Claude Chevalier começa seu artigo, "Língua: lingüística e história", situando alguns conflitos presentes nos estudos que envolvem as duas ciências, com o seguinte questionamento: "Se vê a lingüística perder-se na - ou apoderar-se da - semiótica, ciência dos signos; vê-se ela apoderar-se dos discursos (discurso político fechado) -e aí o historiador fica de orelha em pé -, mas, trata-se ainda da mesma disciplina que estuda a língua como instrumento social?" 7 .
Passaram-se três décadas e a pergunta de Chevalier se mostra bem atual. Pois, sua preocupação com o trabalho dos lingüistas e em que medida se aproxima de nosso trabalho parece ainda muito presente entre alguns de nós. É interessante salientar que essa preocupação não é apenas dos historiadores, uma vez que também entre os lingüistas há uma grande necessidade de mostrar a historicidade da Lingüística, bem como seu encontro com a História, conforme se pode visualizar com Luiz Antônio Marcuschi. Para este, a discussão das aproximações entre a História e a Lingüística passa necessariamente por uma tomada de consciência por parte de ambos de algumas das posições assumidas pelos lingüistas em relação à linguagem como atividade sócio-interativa sistemática, de caráter cognitivo e instauradora de sentidos. Ainda segundo ele, o funcionamento de uma língua no dia-a-dia é, antes de tudo, um processo de integração social. Língua, cultura e sociedade se pressionam mutuamente de maneira muito dinâmica e integrada, aproximando desta forma os estudos da Lingüística e da História. Para ser mais explícito, ele afirma:
"Com efeito, dominar uma língua sempre foi um imperativo social e cultural. Por isso, nós que trabalhamos com a linguagem lidamos com um dos aspectos fundamentais da vida humana. Pela linguagem constituímos nossos discursos, nossas identidades, formulamos nossas crenças, construímos nossos mundos e, sobretudo, interagimos com nossos semelhantes, construímos nossos argumentos, nossas teorias e visão de mundo. Admitir esses aspectos é estender o estudo da linguagem para muito além da gramática, da fonologia e do léxico." (grifo do autor) 8
A noção acima defendida pelo autor apresenta uma aproximação dos lingüistas que se posicionam dentro desta perspectiva com o campo da História, uma vez que afirmam estarem os estudos da língua para além das estruturas gramaticais formais. Obviamente, não se poderá deixar de localizar entre os lingüistas os que de fato permanecem preocupados com a forma estrutural da língua, mas não se pode mais generalizar esta posição diante das diversas formas de abordagem da lingüística, estando algumas delas muito próximas da História. Essa aproximação é mais decidida quando se trata dos analistas do Discurso. Para estes, o discurso deve ser analisado nas suas condições históricas de produção de sentido, bem como na análise da relação unidade-dispersão inerente aos discursos. Para se ter um exemplo, tomemos Eni P. Orlandi, analista do discurso já conhecida dos historiadores, quando afirma a importância de se conceber não apenas as condições de produção de sentido dos discursos pela contextualização dos mesmos, mas com uma abordagem analítica da dispersão dos sentidos e dos sujeitos como condição de existência dos discursos, mesmo que, para funcionar, ele tome a forma de unidade. Para essa analista do discurso, é nessa relação entre as diferentes formações discursivas e seus jogos discursivos nas tramas da história, que se pode localizar a produção de sentido dos discursos como atividades históricas. Pois, conforme se pode daí inferir, o sentido não está no dito, nem no sujeito, mas na relação entre eles em determinados contextos9.
Também Cleudemar Fernandes, em seu trabalho "Lingüística e História: formação e funcionamentos discursivos", localiza pontos de cruzamento que se instauram entre a História e a Lingüística com "certos questionamentos e contestações à lingüística imanente, à lingüística do significante, e ampliação do conteúdo semântico em movências integrantes ao processo histórico resultante das transformações sociais"10. Para ele, isto se dá especialmente no contexto dos anos 60 com a Análise do Discurso, em decorrência do entrecruzamento de três áreas de conhecimento: a Lingüística, o Materialismo Histórico e a Psicanálise11. Fernandes nos lembra que, para os próprios lingüistas e analistas do discurso, discurso não é apenas língua e nem fala, é também silenciamento e se realiza com a exterioridade, "realiza-se por meio de uma materialidade lingüística" 12.
Entre alguns historiadores, há alguns consensos com o dito acima. Andréia Silva, professora de História da UFRJ, por exemplo, concorda que os discursos "fazem-se presentes e constituem as práticas, as relações sociais, as instituições e as representações", ou seja, o social como um conjunto múltiplo de discursos13. Lembrando que entre nós, historiadores, não importa apenas buscar a produção dos discursos e os sentidos enquanto ditos historicamente situados, mas em que medida tais discursos se consubstanciam como práticas ou acontecimentos histórico-discursivos. Para aprofundar estas questões vejamos, em seguida, o estatuto da Lingüística dentro da Escola dos Annales retomando a perspectiva de Chevalier, para depois levantar alguns pontos da contribuição de Michel Foucault para os estudos do discurso na história, de modo a cumprir nossos propósitos de destacar aspectos positivos da aproximação da História com a Lingüística no campo da Análise do Discurso em nossos dias.
Tomemos como ponto de partida de nossas reflexões algumas das principais questões que nortearam as aproximações da História com a Lingüística na década de 60/ 70 na perspectiva da Escola dos Annales. Segundo a maioria dos historiadores, as novas questões que foram colocadas para a história são provenientes da Nova História. Antes, porém, é importante lembrar que a proposta interdisciplinar dos Annales, desde o começo da escola, enfrentou vários problemas para se fazer aceitar, com conseqüências até nossos dias.
Para começar, é preciso ter em mente que a relação da História com outras ciências defendida pelos Annales foi um dos pontos mais debatidos no contexto que se seguiu à crise dos paradigmas da História, especialmente entre os que viam nesta proposta um caminho escorregadio para o ofício do historiador. Sobre este aspecto, é preciso lembrar também que essa não é uma escola que vai atrair a simpatia de todos os historiadores, especialmente se considerarmos a perspectiva histórica assumida por alguns historiadores no contexto entre guerras em diferentes partes do mundo. Nem mesmo dentro da França, onde a escola vai imperar, se pode falar em uma unanimidade de apoio à proposta interdisciplinar dos Annales.
Tomemos aqui dois exemplos dessa questão. O primeiro pode ser localizado na postura de E. H. Carr, que se posiciona cauteloso acerca da tendência dos Annales de procurar abrigo nas ciências sociais, vendo em suas relações vantagens unilaterais. Para este, "a história não é mera servidora das ciências sociais, que vai a elas pela teoria e as supre de materiais". O importante, diz Carr, é assumir uma posição de mão-dupla entre a História e as ciências14. Um segundo exemplo pode
vir da própria França, onde estava inserida a Escola. Tomemos a posição de François Dosse que vai se colocar contra as inovações dos Annales, apontando essa escola como um "cartel" que na sua ânsia de destruir a escola positivista tentara agrupar outras ciências em torno da História em nome de uma inovação que teria fragmentado os objetos e objetivos da História15. Para Dosse, atualmente se pode observar a falência da intenção de uma história global dos Annales, que tentou "apoderar-se das roupagens dos outros para desestabilizar a história historicizante hegemônica", ficando os Annales nos limites dessa ambição16. Entretanto, não aprofundaremos essas questões ligadas aos críticos dos Annales, considerando-se que nosso interesse é destacar alguns aspectos da proposta dos Annales que nos levam a pensar nas possibilidades das aproximações entre a História e a Lingüística.
Como diz Peter Burke, as aproximações entre a História e outras ciências têm provocado alguns problemas de definição, de método, de fontes, de explicação que têm resultado numa má adequação dessa abordagem, mas que se trata muitas vezes de uma má interpretação das intenções dos Annales. Para o autor, um dos problemas apontados é a questão de se avançar em território não familiar seja com relação aos novos objetos, novos problemas ou às novas abordagens sem procurar adquirir conhecimento adequado para tal, conforme defendem os Annales. Com esse autor, temos uma leitura mais interessante acerca das influências benéficas dessa Escola que se aproximam mais dos nossos interesses17.
As influências positivas dessa escola são tantas, para Burke, que ele considera que seria melhor falar de um movimento contra a História positivista do século XIX. Lembrando, ainda, que dentro da Escola temos alguns que não descartam as conquistas técnicas da Escola Metódica, considerando algumas delas ainda muito válidas, como as ligadas à crítica interna e externa do documento. Para esse autor, a contribuição dos Annales para a História, ligada à proposta interdisciplinar com outras ciências, vai além da simples ampliação dos métodos da História para métodos de outras disciplinas. A proposta dos Annales representa muito mais o resultado de uma nova forma de ver, estudar e escrever a História; de uma nova forma de selecionar quais os objetos da História, bem como as abordagens possíveis e os problemas que se podem levantar. A questão central está na nova forma com que os Annales se propõem considerar uma história-problema, associada a uma história de todas as atividades humanas, extrapolando a história voltada apenas para a política até então considerada a mais importante18.
Essa proposta de ampliação do ofício do historiador se consolida com Le Goff e Nora em Novos Objetos, Novos Problemas, Novas Abordagens, que representam as principais preocupações de um trabalho publicado por Jacques Le Goff na década de 1970, com o título "A Nova História". Esses trabalhos são lugares por onde podemos visualizar as aproximações de Michel Foucault com alguns representantes dos Annales, visto que todos vão defender uma concepção de "história-problema" com alguns pontos em comum, pois, tanto Le Goff quanto Foucault vão considerar o documento como uma escolha e tratamento do historiador guiado pelos interesses do seu tempo. O documento como um Monumento, onde o historiador passa a trabalhar e a recriar os discursos da História com as visões do seu tempo19.
Estes representantes dos Annales defendem que a história não é mais concebida como um fato que está pronto em algum lugar dos arquivos, museus ou bibliotecas, nos quais bastaria o historiador recuperar por levantamento e coleta dos dados (fontes) e expor ao público leitor tal qual registrado nos documentos como forma de garantir a objetividade da História. Desde o começo do século XX, Marc Bloch insiste na defesa de um novo papel para o historiador, declarando a necessidade da interação desse com seus documentos. Sobre esse empenho de Bloch, já há um consenso entre os estudiosos atuais da área de que a produção historiográfica é resultado da escolha e posicionamento do historiador em relação aos seus objetos, fontes, abordagens e métodos. Considera-se, aqui, a subjetividade tão importante quanto a objetividade na produção historiográfica sem prejuízo para a cientificidade da História. Dentro dessa perspectiva, Bloch defende que a aproximação com outras ciências constitui muito mais uma conseqüência necessária do reconhecimento dessa nova postura do historiador na compreensão de uma "história-problema"; de uma "história mais consciente das múltiplas dimensões das atividades humanas; deuma história que ele sabe ter um papel crucial na narrativa dos eventos" 20.
Concordando com Bloch, retomemos Chevalier para continuar o debate sobre as aproximações da História com a Lingüística, ao sugerir que uma reflexão para além destas questões que envolvem uma posição de resistência contra os Annales seria pensar a forma de abordar esse novo objeto da História: a língua. Para ele, um olhar mais profundo sobre a língua mostrará que a mesma funciona em dois níveis interdependentes que se condicionam mutuamente e que a aproximam da História: a) língua como objeto que apresenta regularidades e que podem ser formalizadas e estudadas na especificidade da Lingüística (numa perspectiva estruturalista) e b) língua como produção e utilização dos homens em sociedade que pode ser ampliada para o campo da História. Numa ou noutra não é possível separar a relação linguagem-sociedade21.
Apesar de estar mais preocupado em destacar um tipo de historiador naquele contexto, o historiador-lingüista sobre o qual iremos tratar mais adiante, as propostas de Chevalier são instigantes para algumas questões dos dias atuais. Afinal, há sérios indícios de que os historiadores ainda pensam que os lingüistas da atualidade estão presos ao projeto de Saussure, isto é, presos à idéia de que os lingüistas estão apenas preocupados com as estruturas formais da língua. Já na década de 70, Chevalier afirmava que o ponto crucial para uma melhor compreensão dos aspectos positivos acerca de uma aproximação entre a Lingüística e a História deveria ser localizado no contexto dos anos 1960, momento de rompimento do estudo da língua fechada em si mesma, na qual não lhe era permitido exceder o "grupo de palavras" proposto por Saussure para uma nova forma de estudar a língua numa perspectiva interligada ao social22. Neste ponto, Chevalier certamente se reportava à idéia saussuriana de que a língua devia ser estudada "em si e por si mesma", como objeto autônomo. Esta visão mudaria radicalmente dos anos 80 para cá e hoje essa não é a corrente hegemônica entre os lingüistas.
Foi naquele contexto, segundo Chevalier, que surgiram novos estatutos para a Lingüística aproximando-a positivamente das outras ciências humanas e sociais, entre elas a História. A questão central, conforme nos diz Chevalier, é que as transformações operadas no interior da Lingüística não são tão simples, nem visíveis para outras áreas. E, ainda segundo o autor, é neste ponto que têm origem alguns dos problemas epistemológicos do estatuto da Lingüística no campo da História, e que o autor identifica como: "o problema da legitimidade do corpo de conceitos estabelecidos, sempre indo buscar na sua base tradicional saussuriana os fundamentos dessa ciência" 23 . Essa necessidade de recorrência às bases da Lingüística é um dos pontos fundamentais do afastamento de alguns historiadores da Lingüística. É importante lembrar que, desde o contexto de crise dos paradigmas do começo do século XX, alguns historiadores vinham assumindo uma postura bastante decidida para se afastar das idéias positivistas que definiram o campo da História desde o século passado e não viam com bons olhos a proposta estruturalista dos Lingüistas.
Além destas questões, as aproximações da Lingüística para o campo da História buscam, naquele momento, muito mais compreender algumas de suas questões para percorrer a história dos grandes sistemas lingüísticos, a fim de compreender antigas bases epistemológicas da Lingüística, do que uma perspectiva interdisciplinar tal qual pensada pelos Annales nos anos 60/ 70. Estes estavam mais preocupados em aprofundar as propostas dos fundadores da Escola, que desde os anos 20/ 30 defendiam a ampliação dos objetos, abordagens e métodos da História, buscando em outras ciências um diálogo que permita viabilizar essas novas propostas que será também a preocupação da chamada Nova História nos anos 60/ 70.
Considerando-se tais questões, vamos observar, então, uma aproximação, ainda bastante precária e limitada, devido aos interesses de cada um desses lados naquele momento. Entretanto, apesar dos limites aqui apontados, foi possível identificar aspectos positivos da aproximação entre as duas ciências. Ainda segundo Chevalier, a História ganhou com essa aproximação, pois foi a partir daí que o historiador, na figura do "historiador-lingüista" trouxe alguns conhecimentos para o campo da História. Como resultado dessa aproximação, o historiador passou a tomar contato com algumas das categorias de análise da Língua, viabilizando um olhar sobre a mesma como um novo objeto para a História. Paralelamente, para lidar com esse novo objeto, ele sentiu a necessidade de se aproximar da Lingüística em busca de novos métodos e novas formas de abordagem que lhes permitissem lidar com este novo objeto da História 24.
Paulatinamente, também os discursos passam a fazer parte dos interesses dos historiadores, não apenas como discursos políticos dos grandes personagens, mas na sua intrincada rede de relações de saber e poder, tal qual apontado por Michel Foucault. Nos anos 60/ 70, no entanto, a entrada da Análise do Discurso na História vai se dar muito mais para atender a um tipo de História que privilegiava a História Política, de onde se afastam alguns historiadores que se distanciam do positivismo.
Segundo Luiz Antônio Marcuschi, Denise Maldidier25 situa o início da Análise do Discurso francesa nos anos 68-70 sob a dupla paternidade de Jean Dubois e Michel Pêcheux. O primeiro propôs uma Análise de Conteúdo, na qual Regine Robin26 vai identificar uma aproximação com a História para um tipo de estudo lexical em que o conteúdo representava tudo, predominando o factual. Já Pêcheux, por ser um filósofo que vem da psicologia social e recebe influências decisivas de Michel Foucault e de L. Althusser, vai se aproximar mais do marxismo27. Ou seja, enquanto Dubois vai ficar preso ao conteúdo da política, Pêcheux transita para a dinâmica da história política numa perspectiva marxista28.
Ainda segundo Marcuschi, é importante dizer que até os anos 60 o estruturalismo esteve no auge na França, sofrendo a partir daí um processo de esgotamento com o avanço do gerativismo chomskyano, com o qual se passa a ter novas alternativas teóricas para a Lingüística. Contudo, como já se disse, muitos são seus problemas e neste campo, recorrendo sempre aos modelos anteriores para se afirmar o novo.
É neste contexto que surge a Análise do Discurso Francesa (ADF) como um "novo modo de leitura" diante do esgotamento dos demais métodos. Mas, com uma série de questões que se chocam com o novo momento da História. Pois, enquanto para Dubois, os textos políticos são o objeto legítimo da AD e não mais as obras literárias, aproximando-a dos positivistas, Michel Pêcheux vai pensar a AD como uma ruptura epistemológica com a ideologia dominante nas ciências humanas; como uma espécie de metodologia alternativa em relação à perspectiva saussuriana. Neste lugar, Pêcheux faz uma articulação entre sujeito e ideologia (veja-se seu Análise Automática do Discurso, de 1969) que o aproxima de uma noção de língua atrelada ao movimento da história 29.
Neste mesmo ano, em que Pêcheux vai discutir aspectos da ADF que têm ampla repercussão no campo da História, temos Michel Foucault polemizando o fazer dos analistas do discurso em relação a algumas questões que os ligam a determinadas formas de ver e escrever a história. Foucault sugere que uma das preocupações dos historiadores deveria ser no sentido de se afastar das análises das grandes unidades, descritas como épocas ou séculos para uma compreensão dos fenômenos de rupturas. Para Foucault o importante é ver as incidências das interrupções, devendo o historiador sair dessa metodologia de regressão sem fim em direção aos primeiros precursores, mas identificar um novo tipo de racionalidade e de seus múltiplos efeitos30. Nesta perspectiva de quebrar com a visão linear, continuísta, Foucault também expressa algumas críticas aos analistas do discurso, sugerindo a necessidade destes saírem desse lugar em que se considera o discurso em sua condição manifesta de um já-dito, que não seria apenas "uma frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um jamais-dito"31. Para Foucault é preciso acolher o discurso em sua irrupção de acontecimentos, na dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido ou esquecido. Neste sentido, ele vai afirmar que não é preciso assumir uma forma regressiva para buscar a origem dos discursos, mas que é preciso considerá-los no jogo de suas instâncias32.
Michel Foucault como lugar de debate da Análise do Discurso na História Conforme já destacamos nas considerações iniciais, segundo Maria do Rosário Gregolin, será com Foucault e com os analistas do discurso, que com ele se posicionam, que poderemos localizar uma ponte estabelecendo uma profunda relação da Análise do Discurso com a História. Para a autora, este engajamento de Foucault se dá num contexto criado pela perspectiva da história-problema dos Annales, quando os representantes desta escola assumem uma postura crítica em relação à concepção positivista e tradicional da História33. Posicionado com alguns aspectos desta escola, Foucault considera a impossibilidade de objetividade do ofício do historiador, visto que é ele quem escolhe e faz os recortes da sua história, tratando os documentos como monumentos que manipula em seu tempo. Em contrapartida, sugere uma abordagem crítica não apenas sobre os discursos dos documentos, mas uma análise crítica sobre os discursos contidos na escrita da história, nos discursos do próprio historiador. Estes estariam presos às condições de produção e sentido de sua época.
Com isto, ele não apenas destaca uma nova forma de ver e escrever a história, mas promove um diálogo frutífero entre analistas do discurso e historiadores. Pois, conforme diz Gregolin, Foucault ajudou a pensar um lugar epistemológico para o discurso no qual defende que este (que não está no mesmo plano da língua, mas no campo do enunciado) deve ser visto em sua função enunciativa, no qual o importante é considerar não apenas o sujeito que o produziu, mas de que lugar institucional e sob que regras sócio-históricas produziu34.
No campo da Análise do Discurso, as principais contribuições de Michel Foucault estão em seu trabalho A arqueologia do saber, no qual define algumas categorias que estão no cotidiano de trabalho do analista do discurso, especialmente o que ele define como formação discursiva e enunciado. Aqui traremos apenas um tópico de debate sobre a posição de Foucault em relação à Análise do Discurso. Porém, deixemos claro que há alguns pontos de divergência entre Foucault e algumas posições da Análise do Discurso, especialmente a francesa.
Enquanto alguns analistas do discurso desta escola destacam a importância do interdiscurso, como um processo incessante de reconfiguração, na qual uma formação discursiva incorpora elementos pré-construídos, produzidos fora dela, seja como repetição, apagamento, esquecimento ou degeneração de determinados elementos, como nos diz Maingueneau35, Foucault propõe um olhar sobre um novo tipo de racionalidade, seus deslocamentos e transformações; sobre as várias formas de encadeamento dos discursos à medida que seu presente se modifica. E, neste processo, não deixam de romper com elas mesmas. Para ele, a noção de descontinuidade, de ruptura, quebra com qualquer idéia de continuidade, porque procura a dispersão; porque põe em questão os agrupamentos. O que Foucault afirma é a necessidade de quebrar com a noção de interligação dos discursos dos homens, mas tratá-los como acontecimentos dispersos em suas historicidades. A crítica de Foucault recai sobre a noção de interdiscurso, pois para ele, para além da identificação de um já-dito numa relação incessante de unidade e dispersão, "é preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimento, nessa pontualidade em que aparece a nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado, apagado até nos menores traços, escondido bem longe de todos os olhares, na poeira dos livros. Não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo no jogo de sua instância." 36
Com isto, Foucault não quer dispensar estas posturas, mas provocar inquietudes; chamar a atenção para o campo dos fatos do discurso a partir do qual são constituídos. Um dos pontos é não esquecer a questão da autoridade relacionada à enunciação presente na formulação de Foucault. Tomemos aqui, como exemplo desta abordagem, o "Putsh Integralista" de 1938 contra Getúlio Vargas como lócus de análise dos discursos que, produzidos sobre um já-dito (a "Intentona Comunista de 1935") são repetidos para legitimar a repressão aos integralistas em 1938, denominando o ataque armado dos integralistas ao palácio Guanabara, na noite de 10 de maio de 1938, de "Intentona Integralista". Os discursos de repressão contra os integralistas não produzem sentido exclusivamente porque tenham sido atrelados a um já-dito sobre os comunistas e que repetidos em relação aos integralistas reacenderiam na memória discursiva os mesmos sentimentos. É importante considerar o novo contexto de 1938, marcado por novos elementos que são articulados à repetição de alguns discursos já pronunciados contra os comunistas. Há neste novo momento uma série de fatores que vão compor a fala de autoridade de Getúlio Vargas, agora legitimado pelas ações atentatórias de dois inimigos materializados em suas ações armadas contra o governo: esquerda e direita. Cada um, em sua posição de ofensiva contra o governo, se relaciona nos discursos de repressão de Getúlio Vargas a partir de suas instâncias de formulações discursivas, historicamente situadas.
Com as contribuições de Foucault e da Análise do Discurso, aprendemos que, não é apenas a identificação da presença do interdiscurso nos discursos de Getúlio Vargas 1938, reacendendo na memória discursiva o atentado dos comunistas em 1935 que garante o consentimento ao processo de repressão contra os novos inimigos, mas, um conjunto de fatores que permite a repetição dos discursos. Tratase de considerar os fatos ligados às ações governamentais de Getúlio Vargas de 1935 até 1938; as atitudes dos comunistas antes e depois de 1935; bem como as práticas discursivas e não-discursivas dos próprios integralistas entre estes períodoschave37.
Estes pontos devem ser mais bem aprofundados em outros momentos, pois trata-se de uma abordagem merecedora de mais atenção por parte dos historiadores que tratam deste período e temática. No momento, esperamos ter conseguido destacar alguns pontos de debate que incentivem tal abordagem aos estudos históricos em sua relação com a Lingüística, especialmente no campo da Análise do Discurso.
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2 CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Editora Contexto, 2004, p. 264. ROBIN, Regine. História e lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977.
3 ROBIN, Regine. História...
4 KOSELLECK, R. L'expérience de l'histoire. Paris: Gallimard/ Seuil, 1997.
5 De acordo com Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau esta é uma noção empregada desde os anos 60 entre o vocabulário marxista e o de Foucault. Quando se diz prática discursiva em vez de "discurso" efetua-se um posicionamento teórico que considera o discurso como uma forma de ação sobre o mundo produzida nas relações de forças sociais. Em Foucault (1969b: 153), é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço as condições de exercico da função enunciativa. Com isto, Foucault põe em primeiro plano a historicidade radical do discurso e as condições institucionais da enunciação. Cf. CHARAUDEAU & MAINGUEGENEAU, Dicionário..., p. 396. Sobre isso vide também FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 57, quando trata de definir "acontecimento discursivo" e COSTA, Eleonora Z. Sobre o acontecimento discursivo. In: SWAIN, Tânia Navarro (org.). História no plural. Brasília: UnB,
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6 GREGOLIN, Maria do Rosário V. Michel Foucault: o discurso nas tramas da história. In: FERNANDES, Cleudemar Alves & SANTOS, João Bosco Cabral dos (orgs.). Análise do Discurso: unidade e dispersão. Uberlândia: Entremeios, 2004, p. 19-20.
7 CHEVALIER, Jean-Claude. A Língua: lingüística e história. In: LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre
(orgs.) História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 84-98.
8 MARCUSCHI , Luis Antônio. O papel da heterogeneidade cultural nos materiais didáticos. Texto apresentado no IV Seminário Internacional em Letras: linguagem, ensino e inclusão social. Santa Maria, Centro Universitário Franciscano - UNIFRA, setembro de 2004.
9 ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2002, p. 18.
10 FERNANDES, Cleudemar A. Lingüística e História: formação e funcionamentos discursivos. In:
FERNANDES & SANTOS, Análise..., p. 43.
11 FERNANDES, Lingüística..., p. 43.
12 FERNANDES, Lingüística..., p. 45.
13 SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva. Reflexões metodológicas sobre a Análise do Discurso em perspectiva histórica: paternidade, maternidade e gênero. Cronos - Revista de História. Pedro Leopoldo, n. 6, 2002, p. 194-223.
14 CARR, Edward Hallet. Que é história? 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. XXI.
15 DOSSE, François. A História em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Ensaios; Campinas: Editora da Unicamp, 1992, p. 58.
16 DOSSE, A História..., p. 15.
17 BURKE, Peter. A Escola dos Annales 1929-1989: a revolução francesa da historiografia. São Paulo: Editora da Unesp, 1992, p. 20-22.
18 BURKE, A Escola..., p. 12-15.
19 Sobre essas questões são indicadas as leituras de Michel de Certeau, especialmente A Escrita da História (2002) e Jacques Le Goff, com seu importante trabalho sobre a relação História e Memória (1994) e os trabalhos do próprio Foucault entre outros. Os textos de Michel Foucault que fazem referências a estas questões estão indicados na bibliografia.
20 BLOCH, Marc. Introdução à história. 4. ed. Lisboa: Europa-América, s.d.
21 CHEVALIER, A Língua..., p. 86.
22 CHEVALIER, A Língua..., p. 86.
23 CHEVALIER, A Língua..., p. 86.
24 CHEVALIER, A Língua..., p. 86.
25 MALDIDIER, Denise. Elementos para uma história da Análise do Discurso na França. In: ORLANDI, E.P. Gestos da Leitura: da História no Discurso. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.
26 ROBIN, História...
27 Segundo os lingüistas, uma boa contribuição de Michel Pêcheux para o campo da História estaria em seu trabalho Semântica e Discursos: uma crítica à afirmação do óbvio, editado pela Editora da Unicamp em 1988.
28 MARCUSCHI, Luiz Antônio. Perspectivas teóricas na Análise do Discurso. Texto utilizado no Curso de Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística. Recife: CACUFPE, 2° Semestre de 1999.
29 MARCUSCHI, Perspectivas...
30 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p.4.
31 FOUCAULT, A arqueologia..., p. 28.
32 FOUCAULT, A arqueologia..., p. 28.
33 GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise. Michel Foucault: o discurso nas tramas da história. In: FERNANDES, & SANTOS, Análise ..., p. 21.
34 GREGOLIN, Michel Foucault..., p. 31.
35 MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. 3 ed. Campinas: Pontes, 1997, p. 113.
36 FOUCAULT, A arqueologia..., p. 28.
37 Para mais dados sobre estes acontecimentos e abordagem, ver SILVA, Giselda Brito. A Lógica da suspeição contra a força do Sigma: discursos e polícia na repressão aos integralistas. Recife: CFC UFPE, 2002 (Tese de Doutorado em História).
Giselda Brito Silva
1 Professora Adjunta do Curso de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Pesquisadora do CNPq. Doutora em História pela UFPE. Este texto é resultado de parte das leituras teóricometodológicas do Projeto "Estudos Históricos da relação entre o político e o religioso", que recebe apoio financeiro do CNPq. gibrs@uol.com.br
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