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Gestão social e transformação da sociedade (página 2)

Ladislau Dowb

As mega-empresas que surgem neste fim de século ultrapassaram amplamente a dimensão de unidades micro-econômicas de produção, e passaram a se arvorar em construtoras do sistema macrosocial, e o resultado é calamitoso. A empresa constitui um excelente organizador de produção, e o mercado como um dos reguladores da economia deve ser incorporado no nosso universo de valores. Mas a sociedade de mercado é desastrosa. Não se trata de destruir a empresa, mas de repensar o universo no qual ela se insere.

O relatório da Unctad de 1997, traz uma análise precisa: nas últimas tres décadas, a concentração de renda aumentou dramaticamente no planeta, desequilibrando profundamente a relação entre lucros e salários. No entanto, estes lucros mais elevados não estão levando a maiores investimentos: cada vez mais, são desviados para atividades de intermediação especulativa, particularmente na área das finanças. O resultado prático é que temos mais injustiça econômica, e cada vez mais estagnação: a taxa de crescimento da economia do planeta baixou de uma média geral de 4% nos anos 1970, para 3% nos anos 1980, e 2% nos anos 1990.

Esta articulação perversa é muito importante. Apesar de todos criticarmos as injustiças econômicas, ficava na nossa cabeça, formando um tipo de limbo semi-consciente, a visão de que afinal o luxo dos ricos bem ou mal se transformava em investimentos, logo em empresas, empregos e salários, que em última instância significariam mais bem estar. De certa forma, a desigualdade e os dramas sociais seriam um mal necessário de um processo no conjunto positivo e em última instância (e a longo prazo) gerador de prosperidade. É este tipo de "pacto" que está hoje desfeito. Na análise da Unctad, "é esta associação de aumento de lucros com investimento estagnado, desemprego crescente e salários em queda que constitui a verdadeira causa de preocupação".

Os atingidos não são apenas os pobres, mas todo o sistema produtivo. Um balanço do Le Monde Diplomatique nos mostra como a Peugeot, com 140 mil funcionários, ficou feliz com os lucros de 330 milhões de dólares conseguidos no primeiro semestre de 1998. Mas como se compara este resultado positivo com os lucros do setor de negociação de divisas do Citybank, onde 320 operadores geraram um lucro de 500 milhões de dólares no primeiro semestre de 1997? Entre as vantagens de ser especulador ou produtor, a dúvida já não existe. É interessante encontrar no Financial Times este comentário de Martin Wolf: "o que está em jogo, é a legitimidade da economia capitalista mundial".

O que está se tornando evidente, já não numa visão estreita de crítica sistemática anti-capitalista, mas de bom senso econômico e social, é que um sistema que sabe produzir, mas não sabe distribuir, simplesmente não é suficiente. Sobretudo se, ainda por cima, joga milhões no desemprego, dilapida o meio-ambiente e remunera mais os especuladores do que os produtores.

Não é aqui o lugar de elencar os dramas que se avolumam: não é à toa que tivemos, pela primeira vez na história da humanidade, e concentrados numa década, gigantecos foros mundiais para avaliar o esgotamento ambiental do planeta (Rio-92), o escândalo dos direitos humanos (Viena-93), a explosão demográgfica (Cairo-94), os dramas sociais hoje insustentáveis (Copenhague-95), a tragédia da mulher presa na engrenagem das transformações econômicas e da desestruturação familiar (Beijing-95), o êxodo rural planetário que está gerando cidades explosivas no planeta (Istanbul-96). O Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, das Nações Unidas, qualifica de obscenas as fortunas de pouco mais de quatrocentas pessoas no mundo, que dispõem de mais riqueza pessoal do que a metade mais pobre da humanidade. Esta concentração de renda é considerada tão vergonhosa como a escravidão e o colonialismo, sem lugar numa sociedade civilizada.

O debate sobre as culpas e sobre quem tinha razão continuará sem dúvida a alimentar as nossas discussões, pois a atração do passado é poderosa. Mas a realidade é que a própria realidade mudou. A construção de alternativas envolve um leque de alianças sociais evidentemente mais amplo do que o conceito de classes redentoras, burguesa para uns, proletária para outros, que dominou o século XX. É significativo que a última cúpula mundial, mais discreta do que as citadas acima, organizada pela Unctad (Lyon-98), já trabalhava o tema das parcerias para o desenvolvimento, reunindo formalmente governos, empresas e organizações da sociedade civil, na busca de novas articulações.

Terceira via? Já há candidatos para se apropriar dos eventuais benefícios políticos da idéia, tentando capitalizar o que ainda mal existe. Mas não é isto que nos deve impedir de ver uma realidade cada vez mais patente: o mundo que estamos construindo não está contido nos estreitos limites teóricos que o século XIX definiu, e que utilizamos de maneira tão simplificadora para o século XX: o estatismo comunista e o liberalismo capitalista.

A articulação do social e do produtivo

As simplificações são sempre atraentes, sobretudo numa fase de transformações complexas e aceleradas da sociedade. Basta dizer que estamos evoluindo para a era dos serviços? O conceito, por sua própria generalidade, tende hoje mais a confundir do que ajudar. É fácil dizer que nos Estados Unidos a agricultura ocupa 2,5% da mão de obra. Tal avaliação é possível porque reduzimos a atividade agrícola à lavra da terra. O agricultor americano hoje se apoia em serviços de análise de solos, em serviços de inseminação artificial, em serviços de calagem, serviços de silagem, serviços meteorológicos e outros. Deixou de haver agricultura, ou a agricultura passou a funcionar de outra forma?

Da mesma forma poderíamos dizer que a secretária ou o engenheiro que trabalham na fábrica não estão na indústria, estão na área de "serviços". Que sentido teria isto? Na realidade trata-se em grande parte de uma transformação do conteúdo das atividades produtivas, e não do desaparecimento destas atividades em proveito de uma nebulosa área de "serviços".

Não é um terceiro "setor" que está surgindo, um "terciário". De certa forma, é o conjunto das atividades humanas que está sendo transformado, ao incorporar mais tecnologias, mais conhecimento e mais trabalho indireto. Adquirem maior conteúdo de pesquisa, de concepção, de planejamento e de organização tanto as atividades produtivas, como as atividades ligadas às infraestruturas econômicas, à intermediação comercial e financeira, e aos serviços sociais. É a dimensão de conhecimento do conjunto das nossas atividades de reprodução social que está se avolumando.

A sociedade realmente existente continua com necessidades prosáicas, de casas, sapatos, arroz e feijão, que devem ser asseguradas pelas atividades de sempre, ainda que de forma diferente.

As atividades produtivas, sem dúvida, continuam essenciais, mas não contêm em si mesmas as condições do seu sucesso. Para que milhões de unidades empresariais da agricultura, da indústria, da construção, sejam produtivas, temos de assegurar, além da própria organização do tecido produtivo e do progresso da gestão empresarial, sólidas infraestruturas de transporte, energia, telecomunicações, bem como água e saneamento, as chamadas "redes" de infraestruturas, sem as quais as empresas enfrentam custos externos insustentáveis e se tornam não-competitivas.

Será demais lembrar que conseguimos encalacrar as cidades com transporte individual, o mais caro, desleixando o transporte coletivo que é dominante em qualquer país desenvolvido? Será inocente em termos de racionalidade da sociedade em seu conjunto o fato de termos optado por transporte rodoviário de carga, em vez do transporte ferroviário e por água? Quanto nos custa em gastos de saúde e desconforto o fato de uma ampla maioria de domicílios do país não terem acesso a um saneamento adequado?

O setor produtivo precisa portanto de infraestruturas adequadas para que a economia no seu conjunto funcione. Mas precisa também se um bom sistema de financiamento e de comercialização, para que os processos de trocas possam fluir de forma ágil: estes serviços de intermediação, no nosso caso, se tornaram um fim em si mesmo, drenando o essencial da riqueza, constituindo-se mais propriamente em atravessadores do que intermediários, esterilizando a poupança do país.

Finalmente, nem a área produtiva, nem as redes de infraestruturas, e nem os serviços de intermediação funcionarão de maneira adequada se não houver investimento no ser humano, na sua formação, na sua saúde, na sua cultura, no seu lazer, na sua informação. Em outros termos, a dimensão social do desenvolvimento deixa de ser um "complemento", uma dimensão humanitária de certa forma externa aos processos econômicos centrais, para se tornar um componente essencial do conjunto da reprodução social.

Não há nada de novo, naturalmente, em se afirmar que para o funcionamento adequado da área empresarial produtiva, são necessárias amplas redes de infraestruturas, serviços eficientes de intermediação, e um forte desenvolvimento da área social. O que há de diferente, é a nova importância relativa da dimensão social do nosso desenvolvimento. A saúde, para ser viável, tem de ser preventiva, permear todo o tecido social, e atingir toda a população. A educação no Brasil envolve hoje, entre alunos e professores, mais de trinta milhões de pessoas. A cultura tornou-se uma dos setores mais importantes no conjunto da ativides econômicas e sociais.

A dimensão e a importância da área social mudaram qualitativamente, exigindo novos equilíbrios nas prioridades da sociedade. E o reequilibramento das várias áreas do desenvolvimento passou a depender de articulações sociais mais complexas, que nos obrigam a deixar de lado as simplificações estatistas ou liberais.

O social: meio ou fim?

O prncipal setor econômico dos Estados Unidos é hoje a saúde, com 14% do Pib. Mais ou menos no mesmo nível, está a chamada entertainment industry, a indústria do entretenimento, que pertence essencialmente à área cultural. A educação também assumiu, se somarmos a educação formal, a formação nas empresas, a explosão dos cursos de atualização tecnológica (da informática à inseminação artificial) e outros, dimensões que a tornaram um gigante tanto em termos de recursos envolvidos como de emprego. A formação de adultos atinge hoje nos Estados Unidos uma massa que não imaginaríamos há uma década ainda: "Os números são estonteantes. Enquanto apenas 23 milhões de pessoas de americanos tomavam parte de programas de educação de adultos em 1984, de acordo com o National Center for Educational Statistics, o número tinha chegado a 76 milhões em 1995, e segundo certos prognósticos poderia ultrapassar 100 milhões em 2004".

A saúde já não é mais um complemento onde pessoas com preocupações sociais vêm colocar um bandaid nas feridas das vítimas do progresso, como a cultura já não é o verniz chique de uma pessoa com dinheiro. A área social, hoje, é o negócio.

A transformação é profunda. No decorrer de meio século, passamos de uma visão filantrópica, de generosidade assistencial, de caridade, de um tipo de bálsamo tranquilizador para as consciências capitalistas, para a compreensão de que a área social se tornou essencial para as próprias atividades econômicas. Esta mudança profunda de enfoque foi positiva. As áreas empresariais, com suporte de numerosos estudos do Banco Mundial, passaram a entender que não se trata de simples cosmética social, mas das condições indispensáveis para a própria produtividade empresarial. É a visão que leva, em numerosos paises, a que as próprias empresas dêm forte sustento político ao ensino público universal, a sistemas de saúde abrangentes e eficientes e assim por diante.

Uma coisa é reconhecer que a área social é indispensável para o bom andamento das atividades produtivas. Outra coisa é colocar esta área a serviço das empresas. Neste sentido, estamos assistindo a uma segunda mudança importante, que podemos constatar por exemplo nos Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano das Nações Unidas: Pensando bem, uma vida com saúde, educação, cultura, lazer, informação, é exatamente o que queremos da vida. Em outros termos, o enfoque correto não é que devemos melhorar a educação porque as empresas irão funcionar melhor: a educação, o lazer, a saúde, constituem os objetivos últimos da sociedade, e não um mero instrumento de desenvolvimento empresarial. A atividade econômica é um meio, o bem-estar social é o fim.

A mudança de enfoque contribuiu para nos dar um choque de realismo. Enquanto colocávamos as atividades produtivas no centro, na visão do Banco Mundial centrada no produto interno bruto, podíamos nos vangloriar de sermos a oitava ou nona economia mundial. Quando olhamos o Brasil pelo prisma da qualidade de vida, nos critérios definidos nos Indicadores de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, o nosso lugar no ranking planetário é 79º.

De certa forma, aparecem claramente duas idéias chave: primeiro, a área social tornou-se central para o desenvolvimento, em qualquer parte do planeta. Segundo, os resultados nesta área constituem o principal critério de avaliação da política de desenvolvimento em geral. Em termos de Brasil, constatamos que deste ponto de vista atingiu-se um desequilíbrio dramático entre as dimensões produtivas e a dimensão social.

Não se trata portanto, para sairmos do trágico impasse que vive o país, de atrair mais uma Renault para produzir mais carros, com tecnologias mais avançadas, e com algumas centenas de empregos. Trata-se de pensar e organizar o reequilibramento social. Este sim abrirá o espaço real para o desenvolvimento. Trata-se de inverter a equação.

O social: um setor ou uma dimensão?

Colocar o desenvolvimento social e a qualidade de vida como objetivo, como finalidade mais ampla da sociedade, tem repercussões profundas, na medida em que o social deixa de ser apenas um setor de atividades, para se tornar uma dimensão de todas as nossas atividades.

Quando um grande produtor de soja nos afirma que é capaz de suprir as nossas necesidades agrícolas em geral, visualiza dezenas de milhares de hectares de plantações numa ponta, e consumidores felizes na outra. Em outra visão, esta opção representa êxodo rural, familias sem emprego penduradas nas periferias urbanas, gigantescos custos humanos, e enormes custos financeiros em termos de segurança, saúde e outros, além de um fluxo de renda insuficiente para consumir o produto.

Existe outra opção, que é por exemplo a da criação de cinturões verdes em torno das regiões urbanas. Quem já viajou pela Europa, lembrará dos milhares de pequenas unidades agrícolas em torno das cidades, assegurando abastecimento em produtos hortícolas, promovendo o lazer divertido e produtivo de fim de semana, contribuindo para absorver a mão de obra, abrindo oportunidades de terceira-idade e assim por diante.

Pode-se elencar centenas de opções deste tipo, entre a produtividade da macro-empresa e o bem-estar social. Não há dúvida que, na ponta do lápis, mil hectares de tomate permitirão uma produção a custo unitário mais baixo. É a lógica micro-econômica. No entanto, se somarmos os custos do êxodo rural, do desemprego, da criminalidade, da poluição química, dos desequilíbrios políticos gerados pela presença de mega-poderes econômicos, não há dúvida que a sociedade como um todo terá uma produtividade menor. Em outros termos, a melhor produtividade social não é a que resulta da simples maximização e soma das produtividades micro-econômicas.

Não se trata de finezas teóricas. Milhares de empresas poluem os rios. Os empresários e os seus economistas explicam que jogar os dejeitos no rio é mais barato, que os ambientalistas são uns exagerados, que a produtividade e competitividade é mais importante, pois assegura mais empregos, e em última instância mais bem-estar via salários. No entanto, o dinheiro economizado pelas empresas, ao não se equiparem para a proteção do meio ambiente, resulta em rios poluidos. Estes por sua vez geram doenças e enormes gastos em saúde curativa, além de perda de lazer e prejuizo de outras atividades como pesca ou turismo. Pagando com os nossos impostos, as prefeituras terão de proceder à recuperação da água poluída, com custos dezenas de vezes superiores ao que teria sido o custo da prevenção. O resultado prático é uma sociedade que perde dinheiro, além de perder qualidade de vida.

Visitando um supermercado em Toronto, encontrei uma sala repleta de livros. Explicaram-me que se tratava de uma seção da biblioteca municipal, que funciona dentro do supermercado. A lógica é simples: quando uma pessoa vai fazer compras, aproveita para pegar um livro para a semana, devolvendo o da semana anterior. Em termos micro-econômicos, de faturamento, não há dúvida que o supermercado preferiria ter uma seção de cremes de beleza. Mas em termos de qualidade de vida e de cidadania, ter essa facilidade de acesso aos livros, poder folheá-los com as crianças, gerando interesse pela cultura, aumenta indiscutivelmente a produtividade social.

A essencia do enfoque é que não se trata de optar pelo supermercado ou pelo livro, pelo interesse econômico ou pelo social: tata-se de articulá-los. E em numerosos países, a articulação destes interesses já foi incorporada nas práticas correntes de gestão da sociedade, na chamada governança.

Ao apresentar no Brasil a discussão escandinava sobre a reforma do Estado, Ove Pedersen explica: "É minha asserção que os países escandinavos estão crescentemente assumindo o caráter de uma economia negociada. Uma parte essencial, e inclusive crescente, da alocação de recursos produtivos, bem como a (re)distribuição do produto é determinada nem no mercado, nem através de tomadas de decisão autônomas das autoridades públicas. Em vez disto, o processo de tomada de decisão é conduzido através de negociações institucionalizadas entre os agentes interessados relevantes, que chegam a decisões vinculantes tipicamente sobre a base de imperativos discursivos, políticos ou morais, mais do que sobre a base de ameaças e incentivos econômicos"

Em outros termos, busca-se inteligentemente, entre os diversos atores econômicso e sociais interessados, as soluções negociadas que permitirão maximizar o interesse social, econômico e ambiental. Quem olha a Suécia, país pequeno, congelado sete meses por ano, com todas as dificuldades econômicas que isto implica, deve-se perguntar a razão da simultânea prosperidade econômica e qualidade de vida. A razão reside, em grande parte, no fato de se zelar não só pelo capital da empresa, mas crescentemente pelo capital social do país.

No Canadá, as pessoas se acostumaram a lavar, para dar um exemplo, a latinha de massa de tomate que utilizaram, e a depositá-la em recipiente adquado. É o chamado lixo limpo, conceito que já está penetrando em várias cidades brasileiras. Se multiplicarmos, para dar um exemplo, cinco pequenas ações ambientais deste tipo por dia, pelos 30 milhões que conta a população do Canadá, teremos 150 milhões de ações ambientais por dia.

Em São Paulo, o programa de reciclagem foi cancelado por Paulo Maluf, pois não é econômicamente viável. O raciocínio é correto do ponto de vista microeconômico, alimenta os raciocínios do seu colega Roberto Campos: custa mais a reciclagem doméstica do que o valor de venda do produto reciclado. No Canadá, no entanto, uma vez generalizada a atitude, ou a cultura, do não desperdício, constatou-se que o lixo orgânico que sobra é muito pouco. A prefeitura de Toronto forneceu latas de lixo padronizadas e herméticas, para o este tipo de lixo. Como é pouco e está vedado, não provocando mau cheiro, foi possível passar a recolha do lixo de todo dia para uma vez por semana. Isto significa evidentemente uma redução dramática dos custos de limpeza da cidade. A mudança cultural, e a correspondente mudança da forma de organização das atividades, provocam assim uma grande melhoria da produtividade social.

É facil dizer que se trata de sociedades ricas, onde há cultura e espaço para atividades do gênero. Mas podemos inverter o raciocínio. A sociedade do Canadá é muito menos rica do que a dos Estados Unidos, e no entanto a qualidade de vida é muito superior. Vendo por outro ângulo, podemos nos perguntar se Canadá consegue promover ete tipo de iniciativas porque é rico, ou se tornou rico por optar pelos caminhos socialmente mais produtivos? É muito impressionante ver a que ponto a cultura do bom senso econômico e social, e que poderíamos chamar de capital social, gera economias e racionalidades em cadeia: as escolas abrem à noite e aos fins de semana as suas instalações esportivas para a vizinhança, o que aumenta a infraestrutura de lazer disponível, com vários impactos conhecidos em termos de saúde, contenção de droga e assim por diante. A disponibilidade de lazer social reduz por exemplo o absurdo de famílias ricas construirem piscinas individuais, que passam mais de 90% do tempo sem uso, com grande custo e produtividade quase nula.

Não é o caso de multiplicar exemplos de uma tendência que já se tornou evidente no plano internacional. O que isto implica, em termos de melhoria da gestão social, é que o avanço social não significa necessariamente destinar por lei uma maior parcela de recursos para a educação. Significa também incorporar nas decisões empresariais, ministeriais, comunitárias ou individuais, as diversas dimensões e os diversos impactos que cada ação pode ter em termos de qualidade de vida. Além de uma área, -- com os seus setores evidentes como saúde, educação, habitação, lazer, cultura, informação, esporte, -- o social constitui portanto também uma dimensão de todas as outras atividades, uma forma de fazer indústria, uma forma de pensar desenvolvimento urbano, uma forma de tratar os rios, uma forma de organizar o comércio.

O conceito micro-econômico de produtividade só consegue provar a sua superioridade ao isolar o impacto lucro de uma unidade produtiva, do conjunto das externalidades, do impacto social gerado. A cada parque que fecha para abrigar um supermercado ou um estacionamento, temos maior lucro em termos empresariais, e maior prejuizo em termos econômicos, pelos custos adicionais gerados para a sociedade, além da perda de qualidade de vida, que afinal é o objetivo mais amplo.

A opção liberal centrada no lucro imediato da unidade empresarial, não é apenas socialmente injusta: é econômicamente burra. É natural que uma sociedade perplexa ante o ritmo das mudanças, assustada com o desemprego, angustiada com a violência, busque soluções simples. A grande simplificação ideológica do liberalismo representa neste sentido o extremismo ideológico simétrico do que foram as grandes simplificações da esquerda estatista. Com todo o peso das heranças extremas do século XX, temos de aprender a construir sistemas mais complexos, onde a palavra chave não é a opção, mas a articulação.

Em termos práticos, temos de aprender a construir uma sociedade economicamente viável, socialmente justa, e ambientalmente sustentável. E temos de fazê-lo articulando Estado e empresa no quadro de uma sociedade civil organizada. A palavra chave, uma vez mais, não é a opção entre um ou outro, é a articulação do conjunto.

Soluções individuais e soluções sociais

É interessante colocar a questão seguinte: por que razão, com décadas de discurso anti-estado, e com as grandes vitórias liberais, o Estado continuou aumentando? E aumentou na fase Thatcher na Inglaterra, na fase Reagan e Bush nos Estados Unidos, quando a redução do Estado estava no cerne dos discursos políticos?

A realidade é que o Estado aumentou porque aumentou a demanda por bens públicos. Ainda que seja muito óbvio, é necessário lembar que a problemática social mudou radicalmente com a urbanização. Uma familia no campo resolve os seus problemas individualmente, seja no caso do lixo, da água, da lenha, do transporte ou outro. Na cidade, a residência só é viável quando integrada na rede de energia elétrica, telefonia, água, esgoto, calçamento, redes de ruas e assim por diante. É por falta de solução adequada para um bem de consumo coletivo como o transporte, que o paulistano se desloca numa velocidade média de 14 quilómetros por hora, ainda que tenha de pagar por um possante carro. Uma cidade conseguir se paralizar por excesso de meios de transporte, quando as alternativas baratas e funcionais são amplamente conhecidas, revela a que ponto a nossa capacidade de planejamento e de gestão social ficou parada no tempo, enquanto surgiam desafios dramáticos que exigem soluções renovadas. E os bens públicos exigem forte presença do Estado. Ou iremos até o absurdo de colocar pedágios nas ruas? E porque não para pedestres?

A urbanização também mudou a forma de organização da solidariedade social. Na familia ampla do mundo rural, as crianças e os idosos, ou um eventual deficiente, eram sustentados pela parte ativa da familia. Assim a redistribuição necessária entre a fase em que o indivíduo é ativo e as fases não-ativas, se fazia através da solidariedade da familia. Com a urbanização, a familia tornou-se nuclear, rompendo o sistema. Com as novas tecnologias, os mini-apartamentos e a atomização social, a própria familia nuclear se desintegra. Nos Estados Unidos, apenas 26% dos domicílios, no início dos anos 90, tinham pai, mãe e filho, ou seja, uma familia.

No caso brasileiro, o processo é dramático, pois nos urbanizamos em apenas tres décadas, criamos cidades e sobretudo periferias sem infraestruturas, sem escolas, sem ssneamento, sem segurança. Perdeu-se o pouco que havia de redes tradicionais, e ainda estão nas fraldas os sistemas modernos de solidariedade pública. Discutimos amplamente os possíveis defeitos Estado de Bem-Estar, quando sequer chegamos a desenvolvê-lo.

Chegamos assim ao absurdo das doutas bobagens à la Roberto Campos, sobre se o princípio de ajuda pública aos vulneráveis da sociedade não constituiria por acaso um certo paternalismo -- pecado mortal na visão de pessoas ricas -- enquanto crianças inocentes morrem de fome e de causas ridículas, e a sociedade explode com desemprego, ciminalidade, corrupção generalizada.

Outra tendência que muda o contexto, são as novas tecnologias, que constituem, junto com a urbanização, os dois eixos fundamentais de transformação da gestão social. Curiosamente, sentimos a tecnologia como ameaça. Em vez de aproveitar a oportunidade que ela oferece de fazer mais coisas com menos esforços, geramos o pânico do desemprego, e em vez de organizar a redistribuição do trabalho, aderimos com entusiasmo à nova indústria de bens e serviços de segurança, de condomínios fechados.

A tendência é nos dividirmos entre os que são a favor e contra as tecnologias. Primeiro, é útil indagar se alguém está pedindo a nossa opinião a respeito. Segundo, é essencial entender que a mudança tecnológica segmenta a sociedade em incluídos e excluidos. Não se trata portanto de negar a utilidade geral da tecnologia, mas de entender que, junto com o progresso tecnológico, temos de construir as redes de apoio para os excluídos na fase de transição. O fato de exitirem robôs nas empresas automobilísticas, não significa que deixamos de ter 20 milhões de pessoas que ainda trabalham no campo, dezenas de milhões de trabalhadores sem carteira assinada, outros tantos em atividades precárias e informais, e um crescente contingente em atividades ilegais.

Podemos imaginar no futuro uma sociedade em rede, crianças com computadores no bolso, a explosão do lazer. E o que construimos no país realmente existente são as fortalezas isoladas nos condomínios, enquanto a sociedade degenera gradualmente para a barbárie. É o que um americano chamou apropriadamente de "slow motion catastrophy", catástrofe em câmara lenta.

Sonhos a parte, portanto, o desafio que temos pela frente, em termos de gestão social, é a construção de uma transição ordenada, mínimamente viável em termos políticos, sociais e econômicos, para o admirável mundo novo que se delinea no horizonte. As pessoas frequentemente esquecem que a transição para a era industrial jogou milhões de pessoas no desemprego e no desespero, provocando a gigantescas migrações para os Estados Unidos e para o Brasil, entre outros. Repetir este drama em escala planetária, com bilhões de pessoas excluidas do processo de transformação, neste pequeno e exausto planeta, levaria a tragédias insustentáveis.

É fácil, sem dúvida, dizer que no futuro outros empregos virão substituir os que perdemos, e que outras formas de organização virão resolver os problemas. O que gostaríamos, naturalmente, é de sobreviver até lá. Articular o social, com realismo, flexibilidade e eficiência, e não mais com ideologias do século passado, tornou-se um imperativo central para as nossas sociedades.

Uma área à procura do seu paradigma organizacional

As áreas sociais adquiriram esta importância apenas nos últimos anos. Ainda não se formou realmente uma cultura setorial. E a grande realidade, é que não sabemos como gerir estas novas áreas, pois os instrumentos de gestão correspondentes ainda estão engatinhando. Os paradigmas de gestão que herdamos -- basta folhear qualquer revista de administração -- têm todos sólidas raizes indústriais. Só se fala em taylorismo, fordismo, toyotismo, just-in-time e assim por diante. Como é que se faz um parto just-in-time? Ou educação em cadeia de montagem? Um Cad-Cam cultural?

Seria relativamente simples considerarmos o social como sendo naturalmente da órbita do Estado. Aí, temos outros paradigmas, correspondentes à administração pública: Weber, a Prússia, as pirâmides de autoridade estatal. Há no entanto cada vez menos espaço para simplificações deste tipo. Como se atinge 165 milhões de habitantes a partir de uma cadeia de comando central? As áreas sociais são necessariamente capilares: a saúde deve atingir cada criança, cada família, em condições extremamente diferenciadas. A gestão centralizada de mega-sistemas deste porte é viável?

Em termos práticos, sabemos que quando se ultrapassa 5 ou 6 níveis hierárquicos, os dirigentes vivem na ilusão de que alguém lá em baixo da hierarquia executa efetivamente os seus desejos, enquanto na base se imagina que alguém está realmente no comando. A agilidade e flexibilidade que exigem situações sociais muito diferenciadas não podem mais depender de intermináveis hierarquias estatais que paralizam as decisões e esgotam os recursos.

Na realidade, os paradigmas da gestão social ainda estão por ser definidos, ou construidos. É uma gigantesca área em termos econômicos, de primeira importância em termos políticos e sociais, mas com pontos de referência organizacionais ainda em elaboração.

O mundo do lucro já há tempos descobriu a nova mina de ouro que o social representa. Que pessoa recusará gastar todo o seu dinheiro, se se trata de salvar um filho? E que informação alternativa tem o paciente, se o médico lhe recomenda um tratamento? Hoje nos Estados Unidos um hospital está sendo processado porque pagava 100 dólares a qualquer médico que encaminhasse um paciente aos seus serviços. Paciente é mercadoria? A Nature mostra como dezenas de pesquisadores publicavam como cartas pessoais em revistas científicas opiniões favoráveis ao fumo: descobriu-se que receberam em média dez mil dólares das empresas de cigarros. Um cientista se defende, dizendo que esta é a sua opinião sincera, e porque não fazê-la render? Para regular a cultura, basta a cultura do dinheiro?

Empresas hoje fornecem software educacional para escolas, com publicidade já embutida, martelando a cabeça das crianças dentro da sala de aula. A televisão submete as nossas crianças (e nós) ao circo de quarta categoria que são os ratinhos de diversos tipos, explicando que está apenas apenas seguindo as tendências do mercado, dando ao povo o que o povo gosta. Se o argumento é válido, porque um professor também não passar a ensinar o que os alunos gostam, sem preocupação com a verdade e o nível cultural? Na India hoje se encontram vilas com inúmeros jóvens ostentando a cicatriz de um rim extraido: sólidas empresas de saúde de países desenvolvidos compram rins baratos no terceiro mundo para equipar cidadãos do primeiro. Aqui, as intermédicas geridas por empresas financeiras de seguro estão transformando a saúde em pesadelo. Qual é o limite?

No Brasil a excessiva rigidez das tradicionais estruturas centralizadas do Estado, e a trágica inadequação do setor privado na gestão do social têm levado a uma situação cada vez mais caótica. Uma avaliação recente não deixa dúvidas quanto à origem essencialmente institucional do estado caótico das políticas sociais no Brasil: "Ao longo das últimas décadas, o aparato institucional das políticas sociais pode ser caracterizado, em todos os níveis de poder, como um somatório desarticulado de instituições responsáveis por políticas setoriais extremamente segmentadas, que sobrepõem clientelas e competências, e pulverizam e desperdiçam os recursos, provenientes de uma diversidade desordenada de fontes. Isto redunda num sistema de proteção social altamente centralizado na esfera federal, ineficiente e iníquo, regido por um conjunto confuso e ambíguo de regulamentos e regras." Estamos falando de uma área cuja importância relativa no conjunto da reprodução social tende a se tornar central.

Em termos de recursos, é importante lembrar que o social, no Brasil, envolve, como ordem de grandeza, 25% do Pib do país. O Brasil não é um país que gasta pouco com o social. Essencialmente, gasta mal. O apoio aos flagelados do Nordeste se transformou em indústria da seca, o complemento alimentar nas escolas em indústria da merenda, a saúde na indústria da doença, a educação está rapidamente caminhando para se tornar um tipo de indústria do diploma. A área social precisa, sem dúvida, de mais recursos. Mas precisa hoje, muito mais ainda, de uma reformulação político-administrativa.

O social: um poderoso articulador social

Um caminho renovado vem sendo construido através de parcerias envolvendo o setor estatal, organizações não-governamentais e empresas.privadas. Surgem com força conceitos como responsabilidade social e ambiental do setor privado. O chamado terceiro-setor aparece como uma alternativa de organização que pode, ao se articular com o Estado e assegurar a participação cidadã, trazer respostas inovadoras. As empresas privadas ultrapassam a visão do assistencialismo, para assumir a responsabilidade que lhe confere o poder político efetivo que têm. Passa-se assim do simples marketing social, frequentemente com objetivos cosméticos, para uma atitude construtiva onde o setor privado pode ajudar a construir o interesse público.

Onde funciona, como por exemplo no Canadá ou nos países escandinavos, a área social é gerida como bem público, de forma descentralizada e intensamente participativa. A razão é simples: o cidadão associado à gestão da saúde do seu bairro está interessado em não ficar doente, e está consciente de que trata da sua vida. Um pai, associado à gestão da escola do seu bairro, não vai brincar com futuro dos seus filhos. De certa forma, o interesse direto do cidadão pode ser capitalizado para se desenhar uma forma desburocratizada e flexível de gestão social, apontando para novos paradigmas que ultrapassam tanto a pirâmide estatal como o vale-tudo do mercado.

Outro eixo renovador surge com as políticas municipais, o chamado desenvolvimento local. A urbanização permite articular o social, o político e o econômico em políticas integradas e coerentes, a partir de ações de escala local, viabilizando -- mas não garantindo, e isto é importante para entender o embate político -- a participação direta do cidadão, e a articulação dos parceiros. O surgimento de políticas inovadoras nesta área é muito impressionante. Peter Spink e um grupo de pesquisadores na Fundação Getúlio Vargas em São Paulo têm hoje um banco de 640 descrições de experiências exitosas. A Secretaria de Assuntos Institucionais do Partido dos Trabalhadores tem um banco de dados com algumas centenas de experiências. A Pólis publica excelentes resumos no quadro das Dicas Municipais. A Fundação Abrinq está ajudando a dinamizar um conjunto de atividades no quadro do movimento Prefeito-Criança. De Istanbul para cá, assistimos a uma aceleração de iniciativas locais que está transformando o contexto político da gestão social.

O cruzamento entre a gestão social e a descentralização política oferece portanto perspectivas particularmente interessantes.

Uma vantagem muito significativa das políticas locais é o fato de poderem integrar os diferentes setores, e articular os diversos atores. Um ponto de referência prático para esta visão pode ser encontrado nas atividades da Câmara Regional do Grande ABC, onde 7 municípios se articularam para dinamizar as atividades locais da indústria de plásticos: a formação dos trabalhadores é coordenada pelo sindicato dos químicos, em parceria com as empresas, Senai, Sebrae, empresas, faculdades e colégios locais, com apoio financeiro do FAT e outros que se articularam no processo. Programas de alfabetização como o Mova e de formação de jóvens e adultos como o Seja criam um processo mais amplo de mobilização. O IPT aderiu ao projeto criando um sistema móvel de apoio tecnológico à pequena e média empresa (projeto Prumo). A Unicamp participou com a realização de um diagnóstico do setor plástico regional, e as pequenas e médias empresas se articulam por meio de reuniões periódicas da região. O conjunto das iniciativas, estas e outras, encontra a sua lógica e coerência através da Câmara Regional, que reune as administrações municipais da região, além de representantes de outras instâncias do governo e da sociedade civil. As diferenças do espectro político das prefeituras da região não impediram a articulação desta rede onde as diversas iniciativas -- educação, emprego, renda, produção -- se tornam sinérgicas em vez de dispersivas.

Não há fórmula universal na área social. Como demostra a riqueza do projeto médico de família, por exemplo, a dimensão diferenciada de relações humanas é fundamental nas políticas sociais. Uma das mais significativas riquezas do desenvolvimento local, resulta justamente do fato de se poder adequar as ações às condições extremamente diferenciadas que as populações enfrentam.

Isto não implica, naturalmente, que as políticas sociais possam se resumir à ação local, às parcerias com o setor privado, e à dinâmica do terceiro setor. A reformulação atinge diretamente a forma como está concebida a política nacional nas diversas áreas de gestão social, colocando em questão a presente hierarquização das esferas de governo, e nos obriga a repensar o processo de domínio das macroestruturas privadas que dominam a indústria da saúde, os meios de informação, os instrumentos de cultura.

As tendências recentes da gestão social nos obrigam a repensar formas de organização social, a redefinir a relação entre o político, o econômico e o social, a desenvolver pesquisas cruzando as diversas disciplinas, a escutar de forma sistemática os atores estatais, empresariais e comunitários. Trata-se hoje, realmente, de um universo em construção.

Mais uma vez, não se trata aqui de redescobrir coisas óbvias. Mas devemos nos colocar uma pergunta elementar: se as atividades da área social estão se tornando o setor mais importante, que tipo de relações sociais de produção o seu surgimento traz no seu bojo? Seguramente, serão diferentes das que foram geradas com o desenvolvimento industrial. Apontam para uma sociedade mais horizontalizada, mais participativa, mais organizada em rede do que as tradicionais pirâmides de autoridade. Ou podem ainda gerar um tipo de capitalismo de pedágio centrado na indústria da doença, na indústria do diploma, na manipulação cultural através da publicidade e do controle da mídia.

A universidade frente ao novo continente: primeiros passos

Não há dúvida que no Brasil a discussão ainda é muito recente, sobretudo se considerarmos que se trata de uma revisão profunda dos nossos paradigmas de como a sociedade se gere. Ainda estamos impregnados da visão de que a empresa só se interessa pelo lucro e será portanto inacessível a uma visão social ou ambiental, de que organizar a participação da sociedade civil é apenas uma forma de desresponsabilizar o Estado e assim por diante, e que a dominação política da sociedade se dá essencialmente através do controle das empresas.

É muito significativo constatarmos que uma série de conceitos básicos da reformulação política e social que está ocorrendo em muitos países sequer encontram tradução em português: é o caso de empowerment, que os hispano-americanos já traduzem de empoderamiento, no sentido de resgate do poder político pela sociedade; de stakeholder, ou seja, de ator social que tem um interesse numa determinada decisão; de advocacy, que representa o original etimológico de ad-vocare, de criar capacidade de voz e defesa a uma causa, a um grupo social; de accountability, ou seja, da responsabilização dos representantes da sociedade em termos de prestação de contas; de devolution, recuperação da capacidade política de decisão pelas comunidades, como contraposição ao conceito de privatização; trata-se também de entitlement, de self-reliance e tantos outros. Além do conceito chave de governance, que envolve capacidade de governo do conjunto dos atores sociais, públicos e privados, onde o conceito tradicional de governança, tal como existe no Aurélio, tem de ser reconstruido.

A articulação que temos pela frente envolve uma aproximação articulada de empresários, de administradores públicos, de políticos, de organizações não governamentais, de sindicatos, de pesquisadores acadêmicos, de representantes comunitários. O potencial de um centro de referência em gestão social, que a Puc/Iee está dinamizando, mas que envolve participação equilibrada dos diversos segmentos sociais, resulta justamente do fato de abrir um espaço de arquitetura de decisões sociais, um entre outros, provavelmente com maior participação acadêmica neste caso, e maior preocupação com a dimensão de pesquisa, mas onde a palavra chave é justamente o conceito de articulação.

É igualmente interessante a PUC-SP, como a FGVSP e a USP, terem criados centros de estudos do Terceiro Setor. É significativo a pós-graduação em Economia da PUC ter criado um Laboratório de Economia Social. De certa forma, se trata da superação de uma separação acadêmica tradicional no Brasil, onde Economia e Administração tratavam de como maximizar lucros, enquanto o Serviço Social tratava de encontrar muletas para as vítimas do processo. Hoje quem estuda gestão social se preocupa com as novas formas participativas de elaboração do orçamento, com um imposto de renda negativo (renda-mínima), com novas formas de representação política e o novo potencial da comunicação. A gestão social está buscando novos espaços em termos políticos, econômicos e administrativos. Não é mais apenas um setor, é uma dimensão humana do próprio desenvolvimento, que envolve tanto o empresário como o pesquisador, ou o ativista do Movimento dos Sem Terra.

Os avanços não devem ser subestimados. A visão de uma política social de primeira dama, com cházinhos de caridade, data de ontem ainda, e ainda permeia grande parte da nossa sociedade. Na já mencionada cúpula das Nações Unidas Parceiros pelo Desenvolvimento, (Lyon-98), o representante de uma grande multinacional descrevia com entusiasmo as suas realizações em termos de oferecer melhores produtos para os clientes. Foi interrompido por uma senhora que lhe explicou que ele não tinha entendido o espírito da reunião: estava falando com pessoas, gente interessada nos impactos sociais, ambientais e econômicos dos diversos processos, e não apenas em encontrar, em clima de Papai Noel, presentes cheirosos e vistosos nas vitrines. Estava tratando com pessoas como ele, com cidadãos à procura de novas soluções, e não com clientes. A receptividade da interrupção foi impressionante. São mudanças profundas, de clima social, ou de cultura política, que dificilmente se colocam em números, mas que são muito reais.

Viemos de um século de grandes simplificações. Cansados da simplificação liberal, da qual herdamos 3,5 bilhões de habitantes do planeta que vivem com uma média de 350 dólares por ano, e não circulam na internet nem em espaço econômico algum, ou da simplificação estatista que buscou as soluções na mega-burocratização generalizada e no engessamento social através de leis e regulamentos, estamos buscando novos rumos.

Bibliografia

Banco Mundial, Brasil: Despesas do Setor Público com Programas de Assistência Social - Washington, 1998
Emerson Kapaz, A importância do Pacto Político, Folha de são Paulo, 22 de dezembro de 1998
Frank McGilly, Canada's Public Social Services, Oxford University Press, Toronto 1998
Fundação Abrinq - boletim Prefeito Criança, São Paulo, vários números.
Ladislau Dowbor - A Reprodução Social - Vozes, Petrópolis 1998
Le Monde Diplomatique, Paris, Novembre 1998
Maria Marcela Petrantonio (org.) - Herramientas Locales para Generar Empleo y Ocupación, Mar del Plata, Mercociudades, 1998
Martin Wolf, Países ricos terão de jogar com as cartas na mesa, Gazeta Mercantil de 21 de setembro de 1998, p. A-16
Peter Spink e Roberta Clemente, 20 Experiências de Gestão Pública e Cidadania, FGV, São Paulo 1997
Pnud/Ipea - Relatório sobre o Desenvolovimento Humano no Brasil 1996 - Brasilia, Pnud/Ipea 1996
Pólis - número especial, 50 experiências de gestão municipal
Unctad - Trade and Development Report 1997, Unctad, New York, Geneva 1997
Unesco - World Information Report 1997/98I, Paris, Unesco 1997

Ladislau Dowbor, 59, é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e da Universidade Metodista de São Paulo, e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de "A Reprodução Social", editora Vozes 1998, e de numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social. Foi Secretário de Negócios Extraordinários da Prefeitura de São Paulo. Fone: (011) 3872-9877; FAX: (011) 3871-2911;

Ladislau Dowbor

URL: http://dowbor.org

ladislau@dowbor.org

Novembro 1999



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