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Vemos então, que fazer uma coisa é trabalho, atributo masculino, cuidar de uma coisa é serviço, atributo feminino.
As categorias trabalho e serviço designam diferença e oposição, mas também complementaridade. Diz do serviço que ele é uma atividade leve e portanto, compatível com a suposta condição biológica da mulher, e que o trabalho é uma atividade pesada. Mas nossas observações mostram que na prática, o argumento naturalista não se sustenta porque "leve" passa a ser tudo aquilo que a resultante da tensão entre oposição e complementaridade conseguir designar por serviço.
Deste modo, não é apenas a comparação objetiva de dispêndio de energia física empregada em determinada tarefa, o determinante do caráter leve ou pesado da mesma. O elemento determinante resulta da oposição e da complementaridade. Cada gênero opõe-se ao outro, esperando obter maior espaço para a realização de si mesmo, buscando na oposição a complementação de si, e dos processos de criação necessária à reprodução da unidade familiar de produção. Nesse contexto é necessário analisar o contra-imaginário feminino.
Ou seja, se há um imaginário masculino que nega à mulher o reconhecimento de seu trabalho tornando-a socialmente um ser dependente e incompleto; o contra-imaginário feminino procura garantir a "especificidade feminina", visando proteger-se da dupla jornada de trabalho – casa/roçado. Deste modo, há um confronto explícito ou implícito para determinar o limite entre o "trabalho" e o "serviço". Quando o imaginário masculino nega o trabalho feminino ele não o faz apenas para reproduzir o esquema da autoridade masculina, mas também por considerar o trabalho feminino insuficiente.
Isto me pareceu claro ao avaliar a introdução de tecnologias, mesmo que simples, como é o caso da "plantadeira" manual. As mulheres foram quase unânimes em afirmar que haviam deixado de participar do plantio – trabalho feminino – a partir da aquisição da plantadeira manual porque "não entende o jeito de batê ela". E aí temos dois dados importantes: o primeiro diz respeito aos processos de socialização da mulher que reproduzem continuamente a interiorização do sentimento de inferioridade e incapacidade para tarefas ditas complexas. O segundo aspecto é o uso que a mulher faz dessa condição de ser "inepto", visando preservar-se da extração de sobre-trabalho, advindo da intensificação do trabalho na roça provocada pelo uso da plantadeira, agravando o esforço da dupla jornada casa-roçado.
O problema da inserção da mulher em novos processos produtivos não é técnico, é cognitivo, ou seja, é de entendimento, e portanto, é social. Sendo assim, a discussão sobre mulher, trabalho e desenvolvimento, implica em postura crítica das mulheres diante de seu próprio modo de conhecer e conceber o mundo, e o modo pelo qual os homens de sua relação conhecem e concebem o mundo. Isto implica estar atento para a relação de oposição mas também para a complementação que se estabelece no interior da luta social entre o homem e a mulher em todas as relações de produção das condições de suas existências, e que aparece aguda nos processos de divisão social do trabalho. Enquanto a mulher não romper com os obstáculos epistemológicos para a construção dos saberes necessários para a reprodução ampliada de seu mundo, teremos a percepção masculina da insuficiência do trabalho feminino e a resistência feminina em transitar os espaços técnicos sociais ditos complexos, porque nessa recusa o que se encontra é um precário e inadequado sistema de defesa contra aquilo que lhe parece, de modo acertado, ser um aumento e intensificação de sua jornada de trabalho, aumento de extração de sobre-trabalho.
Parece, então, que algumas dimensões dessa problemática devem ser consideradas:
Desse modo, se, como nossa pesquisa indica, a relação homem/mulher não é apenas de oposição, mas é de oposição/complementar, a idéia não é anular a oposição, tarefa que me parece impossível, mas ter lucidez acerca de suas motivações e interesses, potencializando esse componente estrutural, através de diferentes níveis de diálogos que, envolvendo as polaridades masculino/feminino, elucidem a mediação dos desejos de união e fusão necessários ao estabelecimento da reprodução biológica da espécie, que é sempre produção social, em condições que tornem a vida mais justa e digna de ser vivida.
Tendo claro que justiça e dignidade não deve
ser entendidas apenas em sua dimensão simbólica, ou como uma palavra
a ser dita meio que obrigatoriamente, mas concretizada na luta social pelo reconhecimento
do trabalho doméstico e pela sustentabilidade da união social
e biologicamente fecunda entre homens e mulheres.
É nesse panorama que vemos a relação entre homem e mulher
enquanto polaridades dialéticas. Ou seja, partindo de uma discussão
sobre as relações sociais de poder entre mulheres e homens, atinjam
as esferas dos poderes decisórios e das instâncias de formulação
e execução de políticas públicas municipais, estaduais
e federais. Ao mesmo tempo ao discutirmos desenvolvimento, devemos considerar
a especificidade da mulher na Amazônia:
Ao mesmo tempo, é necessário trabalhar os movimentos e as organizações sociais definindo plataformas de trabalho que viabilizem a inserção feminina em meios tecnoeconômico, rompendo os obstáculos epistemológicos que impedem tal inserção. Para tanto, é preciso enfrentar a questão da divisão social e técnica do trabalho nas unidades domésticas e realizar a crítica do imaginário social que inferioriza a mulher para o desempenho de tarefas que envolvem conjuntos sociotécnicos complexos.
CANTARELLI, Jonnhy. Construindo a vida: homens e mulheres em família
e a qualidade de vida de camponeses em uma reserva ecológica. In:
SCOTT, Parry e CORDEIRO. Agricultura familiar e Gênero: práticas,
movimentos e políticas públicas. Recife, Editora Universitária
da UFPE, 2006.
CEMIN, Arneide Bandeira. Colonização e Natureza: análise
da relação social do homem com a natureza na colonização
agrícola em Rondônia. (Dissertação de Mestrado
em Sociologia). Porto Alegre, UFRGS, 1992.
GARCIA JR. Afrânio Raul. Sul: o caminho do roçado – estratégias
de reprodução camponesa e transformação social.
Rio de Janeiro, Marco Zero, Brasília, CNPq, 1989.
HEREDIA, Beatriz Maria Alasia de. A morada da vida: trabalho familiar
de pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1979.
Arneide Bandeira Cemin
Professora do Departamento de Sociologia e Filosofia, Curso de Ciências Sociais e do Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente, da Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Pesquisadora do Centro de Estudos do Imaginário (CEI/UNIR).
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