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O ser que envelhece: técnica, ciência e saber (página 2)

Shirley Donizete Prado

Gerontologia. Ciência e técnica.

A Epistemologia de Gaston Bachelard – em seus estudos que percorrem os campos das "ciências da natureza ou da matéria": a Física e a Química – busca constituir reflexões sobre a produção de conhecimento científico dentro da perspectiva de analisar sua cientificidade. Para tanto, elege a história como instrumento privilegiado de análise, buscando o estabelecimento da historicidade própria de cada região da ciência. E situa-se numa perspectiva filosófica, pois vê na análise histórica de cada campo da ciência a colocação de uma questão fundamental para a Filosofia: a questão da racionalidade científica; conforme Machado6, exige uma criticidade que confere à história das ciências sua dimensão filosófica ao

analisar a superação de obstáculos, o desaparecimento dos preconceitos, o abandono dos mitos, o que torna possível o progressivo acesso à racionalidade; ela é um instrumento filosófico de clarificação do conhecimento que tem como norma a própria racionalidade científica em seu mais elevado grau de elaboração. A epistemologia é, portanto, uma filosofia que tematiza a questão da racionalidade através da ciência, por ela considerada como atividade racionalista por excelência.

Georges Canguilhem7, utilizando a estrutura metodológica que identifica a epistemologia bachelardiana, volta-se para a análise das "ciências da vida" – Biologia, Fisiologia – a partir da discussão dos conceitos de normal e de patológico.

A Fisiologia é tratada de forma distinta da Medicina no que se refere ao estabelecimento do que seja científico, da total aplicabilidade de procedimentos científicos como características desses campos. A Fisiologia é uma ciência "autenticamente por sua procura de constantes e de invariantes, por seus processos métricos, por sua atitude analítica geral" e seu objeto "os ritmos estabilizados da vida". A Fisiologia, em seus pensamentos, corresponde a uma certa derivação da Medicina, clínica e terapêutica, construída a partir do sofrimento, da doença de um ser, de obstáculos patológicos.

[...] é o pathos que condiciona o logos porque é ele que o chama. É o anormal que desperta o interesse teórico pelo normal. As normas só são reconhecidas como tal nas infrações. As funções só são reveladas por suas falhas. A vida só se eleva à consciência e à ciência de si mesma pela inadaptação, pelo fracasso, pela dor (grifos do autor).

Assim, a Medicina encontra-se situada em outro campo que não o da ciência, mas o das técnicas de alívio do sofrimento, da cura, um campo de subjetividades, de valores, de construção incessante de novas normalidades.

Em matéria de patologia, a primeira palavra, historicamente falando, e a última palavra, logicamente falando, cabem à clínica. Ora, a clínica não é uma ciência e jamais o será, mesmo que utilize meios cuja eficácia seja cada vez mais garantida cientificamente. A clínica é inseparável da terapêutica, e a terapêutica é uma técnica de instauração e restauração no normal, cujo fim escapa do saber objetivo, pois é a satisfação subjetiva de saber que uma norma está instaurada. Não se ditam normas à vida, cientificamente. Mas a vida é essa atividade polarizada de conflito com o meio, e que se sente ou não normal, conforme se sinta ou não em posição normativa. O médico optou pela vida. A ciência lhe é útil no cumprimento dos deveres decorrentes dessa escolha. O apelo ao médico parte do doente. É o caso desse apelo patético que faz chamar de patológicas todas as ciências que a técnica médica utiliza em socorro da vida. [...] Sua qualidade de patológica, porém é uma noção de origem técnica e, por isso, de origem subjetiva. Não há patologia objetiva. Pode-se descrever objetivamente estruturas ou comportamentos, mas não se pode chamá-los de "patológicos" com base em nenhum critério puramente objetivo. Objetivamente, só se pode definir variedades ou diferenças, sem valor vital positivo ou negativo (grifos do autor).

Conforme assinalamos em estudos anteriores8,9,10, entre os grupos de pesquisa que se voltam para questões relativas a envelhecimento há, no Brasil, larga predominância daqueles situados no campo das Ciências da Vida (Tabela 1), com especial destaque para as Ciências da Saúde, e, em seu interior, para a Medicina, a Saúde Coletiva, a Enfermagem. Se considerarmos, por hipótese, que esse perfil mantém correspondência com o conjunto das atividades desenvolvidas em Gerontologia, de um modo geral, teremos que esta se caracteriza por um predomínio das atividades profissionais situadas no campo da saúde.

Daí, se tomarmos as referências da Epistemologia de Bachelard e de Canguilhem, teremos que a Medicina, voltada para a pessoa idosa com a perspectiva da cura – a Geriatria, a Psicogeriatria etc. –, como também todas aquelas atividades profissionais que têm por objetivo o cuidado, a atenção para com a saúde, a ação sobre a vida dos velhos – a Enfermagem Geriátrica, a Nutrição Geriátrica, a Odontogeriatria etc. – , devem ser tratadas de forma distinta daqueles campos de produção de conhecimentos científicos, como a Fisiologia do Envelhecimento ou a Genética do Envelhecimento, ou a Biologia do Envelhecimento, que buscam conhecer o processo de envelhecimento humano em suas constantes, suas invariantes, via procedimentos analíticos. Observa-se largo predomínio das atividades de natureza técnica sobre as de cunho científico nesse espaço geronto-geriátrico.

Então, tomando não mais a Gerontologia como um todo, mas apenas os grupos de pesquisa com o propósito declarado de produzir conhecimento sobre questões afins ao envelhecimento e saúde, aí sim, caberia uma abordagem epistemológica, uma reflexão histórico-filosófica, uma análise da cientificidade de seus procedimentos. Isto exige o exame profundo dos conceitos – elemento privilegiado que melhor exprime a racionalidade científica – de velhice e de envelhecimento, problemática que, como discutimos também em nossos estudos anteriores, vem sendo abordada de modo frágil, ao menos no cenário nacional.

Gerontologia. Ciência e saber.

Construindo um certo deslocamento em relação à Epistemologia, encontramos, em Michel Foucault11, a Arqueologia do Saber, cujas análises estão centradas na questão do homem, na constituição histórica das "ciências do homem" na modernidade: uma nova região ao lado das regiões "da natureza" e "da vida". Trata-se de uma nova abordagem analítica que guarda em comum com a Epistemologia a exigência de realizar uma análise conceitual profunda e que tem a Filosofia e a História como elementos-chave para seu desenvolvimento, mas que se distingue pelo abandono à questão da cientificidade, cerne do projeto epistemológico. As palavras sintéticas de Machado6 são esclarecedoras em relação a essas distinções:

Parece-nos mesmo que a riqueza do método arqueológico é ser um instrumento capaz de refletir sobre as ciências do homem enquanto saberes – investigando suas condições de existência através da análise do que dizem, como dizem e porque dizem – neutralizando a questão da cientificidade e escapando assim ao desafio impossível da recorrência, sem, no entanto, abandonar a exigência de realizar uma análise conceitual capaz de estabelecer descontinuidades, não certamente epistemológicas, mas arqueológicas, isto é, situadas ao nível dos saberes.

Essencialmente, o trabalho de Foucault implica um deslocamento metodológico da Epistemologia para a Arqueologia, que coloca, em lugar do conhecimento, um novo objeto, o saber. Enquanto que as análises epistemológicas não são aplicáveis para formações discursivas não científicas, a Arqueologia é tomada para dar conta de disciplinas (formações discursivas) não propriamente científicas, o que se dá por meio da análise da positividade do que foi efetivamente dito. Enquanto que a positividade em epistemologia mantém correspondência com a cientificidade, em arqueologia ela é capaz de caracterizar e individualizar um discurso como saber, como portador de verdade. Nas palavras de Machado6:

A epistemologia subordina a verdade à ciência. A ciência é o lugar específico da verdade no sentido em que ela não tem que se adequar a uma verdade que lhe seria anterior, pois só seus procedimentos são capazes de produzi-la; a questão da verdade se reduz à dos critérios do conhecimento verdadeiro, critérios esses definidos pela ciência em sua atualidade. A arqueologia desloca radicalmente essa problemática. Privilegiando em sua análise não mais a ciência, mas o saber, a história arqueológica também neutraliza a questão da verdade. Ou melhor, desvincula a reflexão histórico-filosófica sobre a verdade da ciência e sua atualidade, eliminando a utilização de qualquer critério externo de verdade para julgar o que é dito nos discursos. A arqueologia aceita a verdade como uma configuração histórica e examina seu modo de produção unicamente a partir das normas internas dos saberes de determinada época.

Por meio da análise arqueológica, Foucault discute o estatuto desse conjunto de discursos sobre o homem constituído no pensamento moderno – as "Ciências Humanas" – abordando a constituição da Biologia, da Economia, da Lingüística, da Sociologia, da Psicologia, da Antropologia, da Psicanálise e da Etnologia, num complexo movimento de redistribuição geral da epistémê, em que, pela primeira vez, seres humanos se tornaram objetos da ciência. Nas palavras de Foucault11, "um acontecimento da ordem do saber [...] um dos mais decisivos progressos realizados, na história da cultura européia, pela racionalidade empírica." O resultado dessa reorganização foi expresso na forma do Triedro dos Saberes, conforme discutimos em estudos implementados anteriormente12.

Nessa concepção, o homem, o ser humano individual ou em grupo, escapa à objetividade do conhecimento, transbordando para o campo da positividade do saber dada, não apenas, a sua imensa complexidade como objeto de estudo científico ou a impossibilidade de sua matematização, mas, essencialmente, a sua condição de representar empiricidades e de poder pensar sobre essas suas próprias representações conscientes ou inconscientes. Ou, como nos diz Foucault11:

Elas [as ciências humanas] desenham quando se lhes faz a análise arqueológica, configurações perfeitamente positivas; mas desde que se determinam essas configurações e a maneira como estão dispostas na epistémê moderna, compreende-se porque não podem ser ciências: o que as torna possíveis, com efeito,, é uma certa situação de 'vizinhança' em relação à biologia, à economia, à filologia (ou à lingüística); elas só existem na medida em que se alojam ao lado destas ou antes, debaixo delas, no espaço de sua projeção. Com elas mantêm, entretanto, uma relação que é radicalmente diferente daquela que se pode estabelecer entre duas ciências 'conexas' ou 'afins': essa relação, com efeito, supõe a transferência de modelos exteriores na dimensão do inconsciente e da consciência e o refluxo da reflexão crítica em direção ao próprio lugar donde vêm esses modelos. Inútil pois, dizer que as 'ciências humanas' são falsas ciências; simplesmente não são ciências; a configuração que define sua positividade e as enraíza na epistémê moderna coloca-as, ao mesmo tempo, fora da situação de serem ciências; e se se perguntar então porque assumiram esse título, bastará lembrar que pertence à definição arqueológica de seu enraizamento o fato de que elas requerem e acolhem a transferência de modelos tomados de empréstimo a ciências. Não é, pois, a irredutibilidade do homem, aquilo que se designa como sua invencível transcendência, nem mesmo sua complexidade demasiado grande que o impede de tornar-se objeto de ciência. A cultura ocidental constituiu, sob o nome de homem, um ser que, por um único e mesmo jogo de razões, deve ser domínio do saber e não pode ser objeto de ciência (grifos do autor).

Nossos estudos indicam que entre os grupos de pesquisa brasileiros que contam com linhas de pesquisa voltadas em algum grau para o ser humano em seu envelhecer predominam aqueles situados no campo das Ciências da Vida (Saúde e Biológicas); em seguida, vêm os que se identificam com as chamadas Ciências Humanas, com destaque para a Psicologia, o Serviço Social, a Sociologia, a Antropologia. Projetamos composição similar para a Gerontologia, em sua concepção mais geral, incluindo atividades profissionais (de natureza técnica) voltadas centralmente para o cuidado, para a atenção, para a ação sobre a vida das pessoas idosas – como o Serviço Social, por exemplo.

Da mesma forma, considerando não mais a Gerontologia como um todo, mas apenas os grupos de pesquisa, caberiam aí abordagens epistemológica e arqueológica, reflexões histórico-filosóficas, análises da cientificidade e da positividade na produção desses conhecimentos e saberes. Permanecendo a exigência do exame profundo dos conceitos de velhice e de envelhecimento nos campos do Serviço Social, da Psicologia etc.

A partir desse tratamento mais ampliado, ou seja, da consideração de referências teóricas mais abrangentes, poderemos partir para análises mais profundas e, inclusive, mais solidamente propositivas, acerca do que seja a Gerontologia e de suas possibilidades futuras.

Considerações finais

A Gerontologia, hoje, busca estabelecer-se como ciência do envelhecimento. Por tudo o que expusemos, consideramos que "Ciência" talvez não seja o mais preciso termo. Em sua concepção mais ampla, a Gerontologia é marcada por atividades de natureza técnica, como a Geriatria, e demais campos da saúde, como Enfermagem Geriátrica etc., o que inclui sensibilidades particulares, artes presentes no diagnóstico e na cura; da mesma forma, o Serviço Social. A Gerontologia relaciona-se com a pesquisa científica, com a produção de conhecimento por meio das ciências que têm o homem que envelhece como seu objeto empírico de estudo, como a Biologia do Envelhecimento (em desenvolvimento ao lado da Fisiologia, da Genética), a Economia e a Lingüística. E a Gerontologia inclui os saberes, quando estamos nesse domínio quase intangível das Humanidades na reflexão sobre o envelhecimento deste ser único que pensa sobre si mesmo e sobre suas próprias representações.

Quanto ao fato de a Gerontologia ter por objeto o envelhecimento, entendemos que se trata de um projeto absolutamente ambicioso, que praticamente coincide com as Ciências Humanas e da Vida, quando se tematizam a juventude e o envelhecer, ainda muito distante do que se pratica e se estuda nos dias atuais. Hoje, parece-nos, a Gerontologia encontra-se voltada para a velhice, enquanto que o processo de envelhecimento do ser humano corresponde apenas a uma pequena parcela de suas iniciativas.

O que nos leva a afirmar que a Gerontologia, hoje, corresponde a um conjunto de ciências, técnicas e saberes voltados, principalmente, para esse ainda nebuloso domínio que é a velhice.

Colaboradores

SD Prado e JD Sayd participaram da concepção e desenvolvimento do artigo e da aprovação da versão a ser publicada.

Referências

1. Stengers I. Da racionalidade científica (capturas, eventos, interesses). In: Quem tem medo da ciência: ciências e poderes. São Paulo: Siciliano; 1990. p. 77-109.  

2. Luz MT. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro: Campus; 1988.        

3. Lopes A. Os desafios da gerontologia no Brasil. Campinas: Alínea; 2000

4. Debert GG. A reinvenção da velhice. São Paulo: Edusp; 1999.        

5. Sá JLM. Gerontologia e interdisciplinaridade: fundamentos epistemológicos. In: Neri AL, Debert GG. Velhice e sociedade. Campinas: Papirus; 1999.        

6. Machado R. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Foucault. Rio de Janeiro: Graal; 1988. p.9-10, 11 e 185.        

7. Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; 1982. p. 164, 166, 169 e 185.        

8. Prado SD, Sayd JD. Gerontologia como campo do conhecimento científico: conceito, interesses e projeto político. Rev C S Col 2006; 11 (2):211-221

9. Prado SD, Sayd JD. A pesquisa sobre envelhecimento humano no Brasil: pesquisadores, temas e tendências. Rev C S Col 2004; 9(3):763-772 .        

10. Prado SD, Sayd JD. A pesquisa sobre envelhecimento humano no Brasil: grupos e linhas de pesquisa. Rev C S Col 2004; 9(1):57-67.        

11. Foucault M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes; 1990. p. 11, 362 e 384.        

12. Prado SD. Envelhecimento, ciência e saber: a pesquisa sobre envelhecimento no Brasil [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2004.        

 

Shirley Donizete PradoI;

Jane Dutra SaydII

IDepartamento de Nutrição Social, Instituto de Nutrição, UERJ. Rua São Francisco Xavier, 524, 12º andar, Bloco D, Pavilhão João Lyra Filho, Maracanã. 20559-900 Rio de Janeiro RJ shirley_prado@terra.com.br
IIDepartamento de Planejamento e Administração em Saúde do Instituto de Medicina Social da UERJ

Ciência& Saúde Coletiva v.12 n.1 Rio de Janeiro jan./mar. 2007



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