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Direitos humanos e cidadania no Brasil: algumas reflexões preliminares (página 2)

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

É este quadro que me faz pensar em processos de privatização do espaço público cujas implicações eu gostaria de começar a discutir agora, e cuja identificação já teria sido sugerida pelo próprio DaMatta em sua contribuição ao ciclo de debates sobre cidadania recentemente promovido pelo Bamerindus:

"...as relações pessoais...têm muito mais peso que as leis. Assim, entre a lei impessoal que diz não pode e o amigo do peito que diz 'eu quero`, ficamos com o amigo do peito e damos um jeito na lei. Entre nós, é o conjunto das relações pessoais, nascidas na família e na casa, que tende a englobar -- em geral perverter o mundo público e não o contrário... (1991b:17).

Ao dar "um jeito na lei" invertemos a situação de subcidadãos para a condição de supercidadãos e, freqüentemente, transformamos direitos em privilégios. Isto é, garantimos o acesso a serviços, benefícios ou oportunidades através de mecanismos que não são passíveis de legitimação no âmbito da lógica universalista e niveladora da cidadania e dos direitos iguais, característica da esfera pública. Nestas circunstâncias, a realização de nossos objetivos requer a utilização da lógica da relação e da distinção para substantivar a condição especial (superior e privilegiada) que reivindicamos no processo.

A utilização de tais mecanismos pode ser identificada em praticamente todas as esferas da vida social e poderíamos dar inúmeros exemplos de situações onde a lógica da distinção prevalece. Desde situações sem maiores conseqüências em termos de justiça social -- como aquelas em que "furamos" a fila no banco utilizando-nos dos favores de um amigo bem localizado na fila para fazer nossas transações bancárias, ou quando recorremos a um parente que trabalha numa repartição pública para agilizar o processo de resolução de nosso problema3 -- até aquelas circunstâncias onde uma relação é acionada para a obtenção de benefícios cujo acesso privilegiado pode resultar em maiores iniqüidades sociais: e.g., o empreguismo, o nepotismo, os subsídios não justificados, a contratação de obras públicas através de laços pessoais com o empreiteiro etc...

É interessante notar, a luz destes exemplos, que idéia de troca de favores e de reciprocidade, presente em todos os casos, e que tem respaldo na tradição (pois está ancorada na lógica da relação), se transveste muitas vezes em casos de corrupção stricto sensu, quando, por exemplo, é efetivada a contratação de serviços públicos com custos superdimensionados sem a realização de concorrência pública. E, uma vez tendo sido definido como um caso de corrupção, as práticas nele envolvidas passam a configurar uma situação decididamente criminosa, não encontrando mais respaldo ou justificativa na tradição. Da mesma maneira, vale a pena indicar que os vários mecanismos legais e burocráticos previstos em lei para coibir os atos de corrupção, como a exigência de concurso público e concorrência pública, têm sido freqüentemente insuficientes para deter aqueles que se envolvem nestes atos (vide os casos recentes do escândalo das bicicletas no Ministério da Saúde e do último concurso para o Banco do Brasil realizado em Brasília)4.

É neste contexto que se pode falar no clientelismo como um valor no caso brasileiro (DaMatta, 1991a), assim como da chamada cartorialização da nossa economia, do corporativismo de alguns sindicatos e de todos os demais ismos mencionados até aqui, que, guardadas as devidas proporções, são parte e parcela do mesmo fenômeno. É o apelo do privilégio e da distinção que, entre nós, têm se mostrado irresistível. Para dar uma idéia da amplitude do fenômeno apenas no âmbito da economia, onde, pelo menos em tempos de crise o impacto parece ser sentido mais rápido, gostaria de mencionar os seguintes exemplos (todos muito bem conhecidos):

- empresários que disputam subsídios para ampliar o lucro e/ou para não investir em empreendimentos que não dependem de mecanismos extra-mercado para serem viabilizados (e.g., refino de combustíveis, parte dos usineiros do nordeste);

- empresários que reivindicam reserva de mercado com os mesmos objetivos daqueles que disputam subsídios indevidamente (e.g., informática);

- líderes sindicais que não abrem mão do imposto sindical apesar de vários sindicalistas eminentes já terem se pronunciado contra esta prática;

- associações de classe profissional que insistem na regulamentação das respectivas profissões, que por si mesma não seria imperativa, como no caso dos jornalistas cujas demandas não conseguem ser dissociadas da idéia de uma estratégia de reserva de mercado;

- políticos e servidores públicos em posições de direção e/ou prestígio nos três poderes que se utilizam destas posições para contratar parentes e amigos, extendendo indevidamente o universo de atualização da lógica de reciprocidades vigente na esfera privada etc...

Os exemplos acima não devem ser entendidos como uma acusação aos grupos ou categorias sociais mencionados, mas como uma tentativa de demonstrar o caráter englobador do fenômeno cuja motivação, é verdade, tem sido estimulada pelo Estado quando concede os respectivos benefícios sem fazer uma análise de mérito adequada, agravada pela implementação de políticas que sistematicamente beneficiam o infrator; cujo principal exemplo seria o perdão indiscriminado da dívida dos devedores inadimplentes sem se preocupar em compensar de alguma maneira os bons pagadores (vide o recente refinanciamento da dívida dos Estados). Além disso, gostaria de chamar a atenção para o fato de que embora estas distorções de nosso universo econômico sejam normalmente atacadas, mesmo por políticos de esquerda, como provocadoras de distúrbios no funcionamento do mercado, limitando o potencial de aumento de produtividade e de eficácia econômica, no que eles não deixam de ter razão, minha intenção aqui é assinalar a iniqüidade social que aquelas distorções revelam e estimulam. Isto é, o que está jogo é antes de tudo um problema ético onde enquanto uns tem "direitos" (e deveres), outros têm privilégios.

Embora venha enfatizando a dimensão sócio-cultural do problema, o que nem sempre é compartilhado por outros analistas sociais e/ou políticos do "dilema brasileiro", os exemplos de agressão à cidadania ou aos direitos discutidos por mim até agora, notadamente os casos do nepotismo e da corrupção em geral, são amplamente consensuais na literatura. Para assumir uma posição um pouco mais polêmica, assim como para trazer o problema para um contexto mais próximo e, portanto, mais desafiador, gostaria de concluir estas reflexões com a discussão de uma reivindicação publicamente defendida como uma demanda por direitos e justiça social mas cuja eventual implementação, a meu ver, teria como conseqüência a institucionalização de privilégios e configuraria um bom exemplo do que estou chamando de privatização do espaço ou da esfera pública.

A Questão da Paridade na Universidade

A idéia ou princípio da paridade ganhou visibilidade durante o processo de democratização da Universidade, e diz respeito a um modelo de organização política que deveria pautar as relações entre os três segmentos que compõem a chamada "comunidade universitária": professores, alunos e funcionários técnico-administrativos. De acordo com este modelo, as eleições para os cargos de administração acadêmica (e.g., Reitor, Diretor de Instituto ou Faculdade e Chefe de Departamento), assim como a composição dos Órgãos colegiados com função deliberativa sobre a política universitária (Conselho Universitário, Conselhos e Colegiados Departamentais), deveriam ser definidas paritariamente. Isto é, nas eleições para os cargos executivos os votos deveriam ser computados por segmento, onde cada segmento contribuiria com um terço destes votos, e a mesma proporção seria adotada na distribuição dos assentos nos Órgãos colegiados, que também seriam divididos irmãmente entre os segmentos, configurando-se assim o que se convencionou chamar de estrutura de representação paritária.

Embora os argumentos quanto à adequabilidade da paridade nas eleições para os respectivos cargos administrativos sejam muito pouco convincentes5, a demanda pela paridade tem se mostrado particularmente problemática no âmbito da composição dos colegiados deliberativos da Universidade e é com ênfase nesta última situação que os comentários que se seguem foram elaborados. Por outro lado, gostaria de deixar claro que minhas críticas não são contra qualquer tipo de participação de estudantes e funcionários na política acadêmico-administrativa da Universidade, mas sim contra a forma paritária desta participação.

Como tive a oportunidade de indicar em outro lugar (Cardoso de Oliveira, 1989), talvez o maior problema com o argumento em prol da paridade esteja na ausência de uma preocupação em justificar ou sustentar a posição com argumentos que levem em consideração a especificidade da instituição. Ou seja, argumentos que tenham o compromisso de defender a posição sem deixar de levar em consideração as atividades-fim da Universidade e/ou os serviços que esta presta à sociedade. A meu ver, a ausência desta preocupação tem como implicação necessária a concepção inadequada de que a "comunidade universitária" reproduz a sociedade em miniatura (Idem) e tem, como conseqüência, igualmente necessária, a transformação do significado das reivindicações (ou das eventuais conquistas) dos segmentos, que perderiam o status de direitos para assumir a identidade de privilégios.

Neste sentido, o argumento pró paridade deixa de levar em conta três pontos fundamentais:

1) Que as atividades-fim da Universidade são o ensino, a pesquisa e a extensão, e que ao professor cabe a maior carga de responsabilidade pelo bom desenvolvimento das mesmas: é o professor que seleciona/avalia os alunos e que os orienta ao longo de sua formação, da mesma forma que a qualidade das atividades fim depende, fundamentalmente da competência acadêmica do corpo docente da Universidade. Em suma, o professor é o principal responsável pela produção característica da Universidade e através da qual ela presta sua contribuição para com a sociedade: (a) formação de profissionais/técnicos de qualidade, (b) produção de conhecimento (pesquisas/publicações) que vise a melhoria das condições de vida da população e/ou um melhor entendimento destas condições;

2) Que, embora os estudantes também tenham um compromisso direto para com a instituição, este é normalmente transitório, pois apenas uma parcela ínfima deste segmento faz sua opção pela docência universitária. Além disto, os alunos dependem da orientação do professor para se transformarem em profissionais e/ou pesquisadores autônomos. Da mesma maneira, se é legítimo argumentar que a responsabilidade de cada aluno no que diz respeito a sua própria formação é igual ou mesmo maior que a do professor, este, por seu turno, é responsável pelo treinamento de "turmas" inteiras de alunos que freqüentam a Universidade;

3) Que as funções dos funcionários se restringem as atividades meio da instituição e, portanto, guardariam uma posição mais distante no que concerne à contribuição da categoria para a formação/elaboração do produto gerado na Universidade, prevalecendo a idéia de que, pelo menos na grande maioria dos casos, o trabalho dos funcionários poderia ser exercido em qualquer outro tipo de instituição com necessidades administrativas similares. Esta característica marcaria o tipo de compromisso (direto) do segmento, enquanto tal, para com a instituição, o qual, deste modo, estaria ligado às condições imediatas de trabalho e a preocupações de cunho sindical-corporativista de maneira geral.

Tendo como referência a especificidade ou o papel da instituição na sociedade para definir as melhores alternativas de gestão da Universidade, e pensando na contribuição potencial que cada segmento pode dar para o bom funcionamento das atividades fim da Universidade, a paridade se revela imediatamente como uma solução inadequada. Por outro lado, ao não atentar para as implicações do lugar da Universidade na sociedade, e ao insistir no equacionamento da gestão universitária exclusivamente através da ótica da cidadania, estudantes e funcionários, especialmente estes últimos, entendem o discurso da competência acadêmica como a contrapartida de uma acusação de incompetência política.

Entretanto, se a legitimidade da paridade é justificada exclusivamente através da condição de cidadãos, comum a funcionários, professores e estudantes, o fato desta condição ser compartilhada com os demais membros da sociedade traz novas complicações para o argumento defendido pelos funcionários. Pois, se a contribuição que os funcionários afirmam poder dar à gestão universitária se deve à condição de cidadãos dos mesmos, o segmento não deveria reivindicar oportunidades de participação que não pudessem ser extendidas, na mesma medida, aos demais membros da sociedade. Isto é, se quiserem continuar formulando suas demandas enquanto direitos em oposição a privilégios.

Ao contrário da noção de privilégio, a idéia de direito(s) é constituída por um compromisso com esforços elucidativos calcados na possibilidade de apresentação de justificativas que estão permanentemente abertas a questões de validade, em termos da correção normativa dos respectivos direitos. Por outro lado, tomando como referência as discussões travadas no âmbito da Universidade de Brasília (UnB), os problemas e as reivindicações apontados como exemplos de situações cuja avaliação requeriria um forum de decisão composto paritariamente se limitam a assinalar que estas reivindicações não teriam possibilidade de serem aprovadas noutro forum devido ao caráter particularista das mesmas6. Isto é, demandas que, ao não levar em consideração a especificidade da instituição e o papel diferenciado dos segmentos no interior desta, só podem encontrar respaldo no contexto dos princípios e direitos mais gerais que garantem o exercício pleno da cidadania a todos os membros da sociedade. Acontece que, como a aplicabilidade destes princípios e direitos supõe a possibilidade de generalização (ou universalização) democrática dos interesses que (aceitas as demandas) estariam assim sendo garantidos, e como este processo implica na avaliação de como as demandas respectivas afetariam os interesses dos demais membros da sociedade, a consideração da especificidade da instituição torna-se a condição necessária para o sucesso do empreendimento. De outra maneira, aquilo que aparecia inicialmente como um direito só pode fazer sentido quando entendido como um privilégio.

Desta perspectiva, todos os direitos e princípios básicos para o exercício da cidadania partem da premissa de que os mesmos têm, pelo menos ao nível teórico, a possibilidade de beneficiar igualmente a todos os cidadãos. Neste sentido, para que a sustentação das demandas dos segmentos que requerem avaliação (ou processos de deliberação) paritária fosse contemplada, seria necessário que a satisfação dos interesses envolvidos também trouxesse benefícios (ou pelo menos não trouxesse prejuízos) para os interesses dos demais membros da sociedade no contexto dos serviços prestados pela instituição que está concedendo os benefícios reivindicados pelo grupo diretamente atingido. Como os defensores da paridade, uma vez contestados, não conseguiram articular qualquer argumento nesta direção, e dada a consolidação do caráter de privilégio de suas demandas, não há como deixar de identificá-las como uma tentativa de privatização indevida do espaço público.

Finalmente, não posso deixar de assinalar o caráter sintomático da opção pela paridade, ao invés de, por exemplo, a demanda pelo "voto universal", no âmbito da Universidade, devido ao seu potencial de fortalecimento dos segmentos enquanto grupos corporados e, portanto, de viabilização dos interesses não generalizáveis das partes envolvidas. Assim, a demanda de paridade se apresenta como um exemplo particularmente dramático e significativo das nossas dificuldades de superação dos efeitos perversos da lógica da relação ou do apelo da distinção, na medida em que tem lugar no âmbito de grupos sociais cuja identidade e projeto político se definem em torno da bandeira de justiça social, diametralmente oposta aos princípios sintonizados com as conseqüências "privatistas" da demanda por eles defendida.

Referências

CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís R. 1989 - "Competência e Justiça Social: A Questão da Paridade na Gestão Universitária". Manuscrito distribuído durante a segunda etapa do Congresso Universitário realizado na UnB.

DaMatta, Roberto 1991a - "Cidadania: A questão da cidadania num universo relacional", in A Casa e a Rua, Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A.

—1991b - "Reflexões Sobre a Cidadania no Brasil". Palestra proferida em 12 de agosto de 1991 na abertura de Brasileiro: Cidadão?, ciclo de debates sobre o brasileiro e a cidadania, promovido pelo Bamerindus.

DOWNING, Theodore & KUSHNER, G. (Org.) 1988 - Human Rights and Anthropology, Cambridge, Mass.: Cultural Survival, Inc.

DUMONT, Louis 1986 - Essays on Individualism, Chicago e Londres: University of Chicago Press.

Notas

1. Trabalho apresentado no VII Encontro Nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos, realizado de 26 a 31 de janeiro de 1992, em Brasília. Gostaria de agradecer ao apoio do CNPq para a realização deste trabalho através da concessão de uma bolsa de pesquisador.

2. Ver o ciclo de debates Brasileiro: Cidadão? recentemente promovido pelo Bamerindus e que contou com a participação de representantes eminentes da classe política, da intelectualidade, do empresariado e do movimento sindical.

3. Como DaMatta (1991a) chama a atenção, uma das perversidades do sistema é que, dado o sentido negativo da condição de cidadão, muitas vezes a utilização destes recursos pessoais é a única possibilidade de termos nosso problema resolvido em tempo hábil.

4. DaMatta (1991a) chama a atenção para a preocupação brasileira de fazer leis não burláveis. Entretanto, como a amplitude da corrupção parece ser proporcional a esta preocupação, talvez pudéssemos falar num ciclo vicioso onde uma coisa alimenta a outra. O mesmo pode ser dito em relação à norma do direito adquirido, que, tendo sido estabelecida para defender os direitos do cidadão contra as arbitrariedades do Estado, é muitas vezes transformada num mecanismo de garantia ou manutenção de privilégios.

5. É interessante notar que depois de uma experiência de eleições paritárias em todos os níveis na UnB, muitas unidades da Universidade optaram por outras modalidades de equacionamento dos votos dos segmentos nas últimas eleições para Diretores de Instituto (ou Faculdade) e Chefes de Departamento. A maioria das alternativas então implementadas procuravam contemplar o papel diferencial de cada segmento no planejamento e execução das atividades fim da instituição.

6. Durante a primeira etapa do Congresso Universitário da UnB, realizada em novembro/dezembro de 1988, foram apresentadas como exemplos deste tipo de reivindicação a demanda pela construção de moradias para funcionários no campus, assim como a necessidade de se evitar decisões como a que culminou com a punição de um grupo de "vigilantes" numa das greves da categoria.

 

Luís Roberto Cardoso de Oliveira
lcardoso[arroba]unb.br

Brasília, 1992



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