Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 


Dois pequenos ensaios sobre cultura, política e demandas de reconhecimento no Quebec (página 2)

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

A Noção de Cultura Pública Comum

Em parte para responder às críticas dos comunitaristas quanto a importância da identidade de grupo ou da percepção de pertencimento ao grupo, do ponto de vista do cidadão, e dos laços de solidariedade dai advindos, os liberais desenvolveram noções como cultura pública ou cultura política comum para poder incorporar de alguma maneira a dimensão dos valores, tida como importante na articulação da motivação dos atores para participar da vida política e exercer a cidadania característica das democracias deliberativas.

As duas noções têm sido utilizadas pelos defensores de um nacionalismo cívico no Quebec e são associadas aos trabalhos de autores como Rawls (razão pública, forum de princípios, pluralismo razoável) e Habermas (patriotismo constitucional).

Além de representar uma mudança de ênfase da filosofia para a política, como em Rawls (1993), a noção de cultura pública/política comum permite aos liberais uma certa re- contextualização social do sujeito que, assim, deixaria de se constituir no chamado unemcumbered self: a ficção liberal do indivíduo (independente, autônomo, auto-suficiente) totalmente desprovido de laços sociais e que só tem obrigações para consigo mesmo. De qualquer forma, esta noção de cultura pública/política se refere normalmente, e com exclusividade, àqueles valores vinculados aos princípios jurídico-políticos formais que dão fundamento a democracias liberais (igualdade e liberdade, respeito aos direitos do homem e ao estado de direito, ou às "essências constitucionais" e às questões básicas de justiça como em Rawls). Ainda que alguns autores queiram resgatar aspectos substantivos da cultura em pauta, como valores nacionais específicos (Miller 1993), sua argumentação é considerada incompatível com situações pluriétnicas ou multiculturais (Leydet 1995:118), fazendo com que a noção de cultura pública/política comum não chegue a responder plenamente às demandas de contextualização dos comunitaristas.

Tanto em Rawls, como em Habermas, é difícil visualizar como os cidadãos das democracias liberais modernas podem se sentir representados nas instituições políticas das sociedades a que pertencem, ou como podem internalizar alguma concepção de dever cívico, exclusivamente através de uma cultura política ou de uma constituição que se mantém absolutamente impermeáveis aos valores cultivados nos grupos ou comunidades de referência, onde os cidadãos se reconhecem não apenas como indivíduos, mas também enquanto pessoas dignas e merecedoras de consideração, portadoras de uma substância moral e de uma identidade própria.4 Embora a noção de cultura política ou de razão pública em Rawls procure estabelecer limites precisos entre, de um lado, os valores políticos vinculados à estrutura básica da sociedade e com pretensões de legitimidade sustentáveis no plano da cidadania, e de outro lado, os valores situados no background cultural e associados a visões de mundo abrangentes (religiosas, filosóficas, ou morais), ainda que proponha alguma articulação entre eles da perspectiva dos atores, não me parece que esta articulação possa se dar de maneira satisfatória se os valores políticos ou a cultura política respectiva não permitirem algum tipo de conexão direta com a visão de mundo abrangente, a ponto desta última se ver representada na primeira. Isto é, a visão de mundo abrangente e a forma de vida substantiva do grupo em pauta têm que se ver reconhecidas como constituindo uma alternativa valorizada e plenamente aceita no âmbito da comunidade política.5 Caso contrário, o grupo pode não se sentir ameaçado mas dificilmente se identificará com a comunidade política mais ampla, e não terá como desenvolver o sentimento de pertença ou os laços de solidariedade que a noção de unidade política demanda.

A noção de patriotismo constitucional em Habermas parece suscitar dificuldades similares. A idéia, definida a partir de uma observação de Sternberger de que os cidadãos teriam uma disposição para se identificar [prioritariamente] com a ordem política e com princípios básicos de direito (Habermas 1989:256-57), também parece demandar mediações não articuladas na argumentação do autor. Assim como no caso de Rawls, Habermas lista alguns fatores que contribuiriam para a assunção de identidades pós-nacionais e para a identificação dos atores com os princípios constitucionais das democracias modernas, mas não discute as dificuldades potenciais que a internalização de uma identidade cívica, dissociada de valores locais, teria que enfrentar na passagem do plano jurídico-constitucional para o da sociabilidade existencial.6 Isto é, na passagem para a plano onde o direito ao exercício de práticas ou de identidades culturalmente definidas, e legalmente garantido pela constituição, tem que se transformar em manifestações de reconhecimento. Pois, para que uma identidade se institua como tal, mesmo que tenha um caráter abrangente como aquela associada à noção de patriotismo constitucional, é necessário que aqueles que com ela se identificam tenham a legitimidade de suas identidades locais (culturais, regionais, étnicas etc.) mutuamente reconhecidas. Não é por outra razão que autores como Lamoureux vêem no imperativo do "igual respeito" à identidade do outro a maior dificuldade para o "desenvolvimento de um patriotismo constitucional pan-canadense" (1995:138).

Neste sentido, é difícil imaginar como uma idéia de cultura que não admite a incorporação de valores substantivos, não universalizáveis, nem permite uma articulação mais palpável com formas de vida específicas, possa contemplar as demandas de reconhecimento de que fala Taylor ou o resgate/reposição dos "significados perdidos" de que nos falava Weber, como ilustra bem o caso quebequense discutido adiante.

Como assinala Taylor (1994), com a transformação da noção de honra em dignidade na modernidade desenvolveu-se um movimento de universalização de direitos, mais ou menos nos termos propostos pelo liberalismo, imediatamente seguido por outro movimento caracterizado pela demanda de reconhecimento de uma identidade autêntica que, no plano coletivo, tem se manifestado através de reivindicações de reconhecimento de identidades nacionais ou culturais, no âmbito das sociedades pluri ou multiculturais. Um dos problemas deste processo é que, enquanto o primeiro movimento se caracteriza pela valorização de condições uniformes, e portanto facilmente universalizáveis, o segundo movimento se caracteriza pela valorização de diferenças, cuja legitimação tem encontrado forte resistência onde prevalece a ideologia individualista, e onde é difícil distinguir as idéias de eqüidade, igualdade e uniformidade. Talvez o crítico mais contumaz das limitações da ideologia individualista seja o antropólogo Louis Dumont, que também se inspira em Weber para formular a diferença entre a noção de indivíduo enquanto "agente empírico, presente em todas as sociedades", e a noção de indivíduo como "sujeito normativo das instituições", que seria peculiar a nossa sociedade (Dumont 1992:57).

Neste contexto a discussão do caso do Quebec é particularmente interessante na medida em que conjuga a afirmação de valores não universalizáveis interculturalmente, com uma preocupação aguda em relação ao respeito de grupos multiculturais, as chamadas comunidades culturais.

O Caso Quebequense

"Il ne revient pas, en effet, ni à l’État ni à une théorie de la citoyenneté de prétendre prescrire des sentiments d’allégeance, de solidarité, ou encore de concitoyenneté particuliers. Ceux-ci ne peuvent que naître de la pratique, de l’expérience commune que font les citoyens de leurs institutions. Reconnaître cela, c’est reconnaître simplement la limite de toute théorie vis-àvis de la pratique qu’il serait présomptueux et futile d’espérer dépasser." (Leydet 1995:129).

Embora a epígrafe de Leydet assinale com propriedade que sentimentos de lealdade ou de solidariedade não podem ser prescritos pelo Estado nem por uma teoria da cidadania, na medida em que sentimentos assim produzidos seriam necessáriamente artificiais e não viabilizariam a formação de uma identidade que lhes desse sentido, também não me parece razoável exigir que o Estado mantenha uma distancia radical dos valores associados a estes sentimentos. Como veremos na discussão do caso quebequence, a dificuldade de articulação entre os símbolos do Estado e os valores de solidariedade e de lealdade vigentes também colocam problemas para a cidadania e para a integração social.

Como tem sido apontado por vários autores as diversas posições políticas em defesa dos interesses do Quebec na federação Canadense têm como ponto comum a preocupação com a sobrevivência do "fato francês" na América do Norte, e os conflitos com anglófonos (dentro e fora do Quebec) e alófonos (os imigrantes não identificados imediatamente com nenhum dos dois grupos lingüísticos dominantes do Canadá) têm encontrado no chamado debate lingüístico seu principal canal de expressão.

São conhecidos os conflitos gerados pela aprovação da lei 101, que (1) impede o acesso à escola de língua inglesa de 1º e 2º graus aos imigrantes e francófonos; (2) institui um processo de "afrancesamento" das empresas com mais de 40 empregados; e (3) impedia que o comércio utilizasse letreiros ou cartazes escritos em outra língua que não o francês. Este último ponto é até hoje o mais polêmico da lei 101 e, depois que a Suprema Corte do Canadá decidiu pela inconstitucionalidade deste aspecto da lei em 1988, a Assembléia Nacional do Quebec adotou a projeto de lei 178, que relativiza esta proibição, permitindo a colocação de letreiros em outras línguas no interior das lojas, desde que o francês também esteja presente e de maneira claramente predominante.

Embora o debate sobre a lei 101, e seus desdobramentos, aponte para uma série de questões interessantes em relação aos limites do liberalismo e à problemática das demandas ou da "política do reconhecimento", gostaria de me deter aqui na análise da discussão proposta por Dominique Leydet sobre a compatibilidade do "Enunciado da política em matéria de imigração e de integração", publicado pelo ministério das Comunidades Culturais e da Imigração em 1990, com a noção liberal de cultura pública comum e, portanto, com a instituição de uma ordem política moralmente legítima.

Como assinala Leydet, o "Enunciado..." tinha três pontos que identificavam para os imigrantes as características essenciais da sociedade quebequence e as condições de sua integração a ela:

1. "uma sociedade na qual o francês é a língua comum da vida pública;
2. "uma sociedade democrática onde a participação e a contribuição de todos é esperada e favorecida;
3. "uma sociedade pluralista aberta aos aportes múltiplos dentro dos limites impostos pelo respeito aos valores democráticos fundamentais e à necessidade de troca intercomunitária". (1995:122)

Segundo Carens, citado por Leydet, a diferença entre o modo de justificação dos dois últimos princípios (democracia e pluralismo) são diferentes do primeiro. Pois, enquanto os princípios dois e três podem ser vistos como parte não negociável de uma ordem política moralmente legítima, o primeiro se constitui numa escolha da sociedade cuja eventual modificação no futuro não teria conseqüências para a manutenção do caráter legítimo da ordem política Quebequense (Leydet 1995:123).7

Leydet chama atenção ainda para o fato de que o "Enunciado..." define claramente a posição do governo, para quem "a língua é não só um instrumento essencial que permite a participação, a comunicação e a interação com os outros Quebequenses, mas ela é igualmente um símbolo de identificação..." (Idem:124). Para Leydet este último aspecto é que seria inaceitável, a partir de uma perspectiva liberal e moralmente legítima sobre a ordem política.

Pois, ainda que a idéia da língua enquanto instrumento de comunicação seja plenamente resgatável na medida em que uma democracia deliberativa vigorosa depende da existência de uma língua pública comum para se desenvolver, tomá-la como símbolo de identificação seria uma exigência descabida, uma vez que significaria a imposição da assunção de uma fidelidade à língua enquanto expressão de identidade, que não pode fazer sentido para alguém que tem uma origem cultural diferente.8

Neste sentido, Leydet cita Jeremy Webber para indicar que se deve fazer uma diferença entre condições de entrada e condições de fidelidade a uma sociedade democrática determinada. Enquanto as primeiras "devem ser constituídas por princípios generalizáveis, legitimamente aceitos por todos, qualquer que seja a comunidade de origem, as condições de fidelidade (as razões pelas quais este ou aquele indivíduo reconhece uma obrigação de lealdade à sociedade da qual ele é membro), variam necessáriamente de um grupo sociológico a outro, e mesmo de um indivíduo a outro" (Leydet:126). Uma vez que as condições de fidelidade não podem ser generalizadas, também não podem se transformar em exigências de um estado democrático. Mas, poder-se-ia perguntar: seria possível desenvolver um sentimento de pertença e uma identidade cívica sem que se faça uso de valores ou de símbolos substantivos, que sejam generalizáveis no âmbito da unidade política em pauta? De qualquer forma, Leydet aponta três condições mínimas para a legitimação de princípios ou de valores políticos característicos de qualquer democracia liberal, e de acordo com a noção de cultura pública comum:

1) "estes princípios devem ser generalizáveis, isto é, eles devem poder ser legitimamente aceitos por todos os membros da sociedade em questão, qualquer que seja a sua comunidade de origem; 2) "estes princípios devem poder se justificar de acordo com os princípios jurídicopolíticos que fundamentam a democracia liberal; 3) "eles devem ser suscetíveis de uma adesão voluntária, em outros termos de uma escolha racional." (1995:127).

Pois são exatamente estas condições que me parecem demasiadamente restritivas para dar conta da experiência de cidadania, onde quer que esta tenha lugar. Isto é, na medida em que definem, a priori, a exclusão de valores, tais como a preocupação quebequense com a sobrevivência do fato francês na América do Norte, do processo de legitimação dos princípios e valores que constituem a cultura pública/política comum nas democracias liberais. Assim, gostaria de concluir meu argumento apontando três dificuldades básicas desta maneira de equacionar o problema no caso do Quebec.

1) A possibilidade de visualizar a inserção plena do cidadão numa comunidade política determinada, em que a língua de comunicação pública seja vista como apenas um instrumento, sem que haja qualquer identidade da língua com a forma de vida ou com os valores compartilhados entre os demais concidadãos, não me parece factível. Uma tal visão é particularmente significativa vindo de uma autora francófona. Como já tive a oportunidade de indicar noutro lugar, esta é a visão que prevalece no chamado Resto do Canadá ou Canadá Inglês,9 cuja colonização foi culturalmente muito mais diversificada do que no Quebec (com exceção de Montreal), e onde a língua de comunicação pública (o inglês) é vista como estando inteiramente dissociada da cultura. De qualquer forma, se esta visão corresponde, em alguma medida, à experiência dos anglófonos das mais diversas origens culturais no Resto do Canadá, não pode fazer sentido no Quebec, onde a influência da cultura anglo-americana é recebida e percebida junto com a exposição ao idioma inglês.

2) Isto não quer dizer que os imigrantes ou os seus descendentes tenham que desenvolver exatamente a mesma relação com o francês que a população quebequence de souche10 cultiva. Por outro lado, é muito difícil falar em integração a uma sociedade na qual se é sempre visto como um estranho. Ainda que possa haver grande diversidade cultural entre os membros dos vários grupos sociais que compõem uma comunidade política, como de fato há em Montreal, é importante que haja símbolos identitários a serem minimamente compartilhados de maneira abrangente para que a idéia de comunidade política continue fazendo sentido.

3) Deste modo, se é verdade que o Estado não pode impor democraticamente uma declaração de lealdade aos símbolos culturais específicos que o representam, de fato, também é verdade que a recusa do cidadão em se identificar com os símbolos da comunidade não é muito diferente da recusa em se integrar. Se a diferença entre condições de entrada e condições de fidelidade faz algum sentido em relação ao trabalhador temporário e ao imigrante de primeira geração, especialmente aqueles que tiveram sua educação escolar na sociedade de origem, essa diferença me parece absolutamente artificial no caso dos descendentes de imigrantes ou no caso dos que gostariam de se integrar na comunidade da melhor maneira possível.

Finalmente, creio que as restrições feitas pela noção de cultura pública comum à incorporação de valores substantivos que representem símbolos de identidade de comunidades políticas determinadas é uma distorção da democracia, e do processo de racionalização da política na nossa contemporaneidade. Neste contexto, me parece também que se, por um lado, a idéia de patriotismo constitucional, enquanto símbolo de identidade moralmente legítima para com a comunidade política nas sociedades multiétnicas atuais, seria em princípio interessante na medida em que acentua a importância do respeito aos direitos do homem (ou as liberdades básicas) e à idéia de tolerância; por outro lado, o artificialismo dos vínculos identitários assim construídos sugere a idéia de alienação e de perda de significado mencionada acima. De uma certa maneira, creio que o patriotismo constitucional quando dissociado de quaisquer outros símbolos de identidade com repercussão em formas de vida específicas, representa uma manifestação do que gostaria de chamar, inspirado em Gadamer, de alienação da consciência cívica. Pois, assim como nos casos da alienação das consciências estética e histórica assinalada por Gadamer, a idéia de patriotismo constitucional sugere que a condição de identificação do cidadão com a comunidade política a que pertence está na neutralização da manifestação de sua identidade enquanto ator. Estou me reportando aqui as objeções de Gadamer quanto a pretensão do crítico de arte ou do historiador, que acredita ser possível colocar em parênteses a sua subjetividade, alienando sua individualidade enquanto ator, para produzir um julgamento objetivo da qualidade artística de uma obra, ou para compreender objetivamente as testemunhas do passado. Como bem argumenta Gadamer (1980:128-140), tanto num caso como noutro a condição para a apreensão do significado da obra ou do passado está na possibilidade de conseguirmos relacionar aquilo que tentamos compreender com a nossa experiência, produzindo assim uma fusão de horizontes. Me parece que as mesmas objeções seriam válidas em relação à noção de patriotismo constitucional, se esta sugerir que a identidade com a constituição não depende de mediações bem articuladas com as formas de vida específicas que dão sentido à vida dos atores-cidadãos. Isto é, a noção de cultura pública comum ou de patriotismo constitucional, assim como proposta no quadro do liberalismo, não permite a satisfação das demandas de reconhecimento discutidas por Taylor —que permanecem enquanto problema político—, nem a diminuição do déficit de significado que preocupava Weber.

Notas

1. Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no Seminário Internacional Max Weber, realizado entre 22 e 27 de setembro de 1997 na Universidade de Brasília, sob o título: "Comunidades Políticas e os Limites do Racionalismo Ocidental". Gostaria de agradecer aos comentários de Roberto Cardoso de Oliveira, lembrando que o argumento aqui desenvolvido é de responsabilidade exclusivamente minha.

2. É bastante conhecida a influência deste diagnóstico weberiano entre os frankfurtianos. Seja através da noção de reificação desenvolvida por Luckács e acionada pelos membros da primeira geração da Escola de Frankfurt, como Horkheimer e Adorno, ou através da noção de colonização do mundo da vida pelo sistema, articulada por Habermas.

3. Não é por mera coincidência que o capítulo que se segue ao de "Comunidades Políticas" em Economia e Sociedade tem como título "Dominação e Legitimidade" (capítulo X).

4 Sobre a relação entre indivíduo/pessoa, direito/dignidade e reconhecimento/desconsideração no plano da cidadania veja dois artigos que publiquei recentemente sobre o tema (Cardoso de Oliveira 1996 e 1997).

5 Segundo Rawls, a cultura política representaria o cerne constitucional das democracias liberais e seria produto de um "consenso parcial" (overlapping consensus) entre os diversos grupos que fazem parte da sociedade política. Apesar deste "consenso parcial" ser apresentado como um acordo no qual todas as partes se sentem minimamente contempladas, e moralmente motivadas a defender os princípios e os valores que dão suporte à cultura política assim compartilhada (Rawls 1993:133-172), parece-me que a articulação entre os valores políticos e as visões de mundo abrangentes aqui presentes está equacionada num plano excessivamente abstrato. Pois, ainda que as partes possam se identificar com a consistência desta articulação no plano teórico, parece que a motivação para o suporte político deste consenso parcial ou do cerne constitucional vai depender do reconhecimento factual que as partes serão capazes de manifestar em relação às pretensões de legitimação de umas e de outras.

6. É verdade que Habermas discute a noção de patriotismo constitucional no contexto do debate sobre a rearticulação de uma identidade nacional alemã, onde a crítica ao passado nacional-socialista não pode deixar de estar presente, e onde o desenvolvimento de uma identidade privilegiada com os princípios constitucionais que caracterizam as democracias liberais modernas tem uma história específica e um significado particular.

Apesar deste enquadramento do problema não responder adequadamente algumas das questões que argumento aqui, torna mais palpável a fecundidade da noção de patriotismo constitucional para a compreensão de pelo menos algumas unidades políticas contemporâneas. De qualquer forma, Habermas cita quatro fatores que teriam estimulado o desenvolvimento de identidades pós-nacionais: (1) o caráter paradoxal do dever de defender a nação à luz do potencial de destruição de uma guerra nuclear que se constitui numa ameaça para todos; (2) a relativização de formas de vida particulares e o desafio de refletir sobre a base universalista da própria tradição, que teria se desenvolvido ao lado dos mecanismos de defesa detonados na confrontação com o outro; (3) os efeitos da comunicação de massa e da massificação do turismo, acostumando o olhar à heterogeneidade das formas de vida e induzindo uma extensão da consciência moral em direção ao universalismo; e, (4) a integração internacional das ciências humanas, tornando as tradições nacionais acessíveis umas as outras e que, ao lado da falibilidade do conhecimento e do conflito de interpretações, teria promovido a problematização da consciência histórica (Habermas 1989:257-59).

7. De fato, apesar de Carens fazer a diferença indicada por Leydet entre o modo de justificação do primeiro e dos dois últimos princípios, o autor assinala que, em conjunto, o "Enunciado..." não fere "os padrões mínimos de moralidade que uma sociedade democrática liberal deve seguir" (1995:57).

8. Mais uma vez, Carens (1995:20-81) assinala que a peculiaridade do Quebec a este respeito se deve a sua inserção no Canadá, país onde o bilingüismo é institucionalizado. Isto é, se o Quebec fosse uma nação independente, do ponto de vista de Carens o problema não se colocaria.

9. Veja Cardoso de Oliveira (1997), onde assinalo algumas diferenças de perspectiva entre frnncófonos e anglófonos associadas a experiências diversas em relação a aspectos significativos do problema, e indico que: "A expressão "Resto do Canadá" é corrente no país para se referir ao território canadense majoritariamente anglófono e engloba todas as províncias e territórios com excessão do Quebec..." (p. 3).

10. Quebequense de souche (de cepa) ou pure laine (de lã pura) é a expressão quebequense para se referir aos francófonos descendentes dos colonos franceses que se estabeleceram no Canadá antes do domínio britânico.

Referências

CARDOSO DE OLIVEIRA, L. 1996 "Entre o Justo e o Solidário: Os Dilemas dos Direitos de Cidadania no Brasil e nos EUA".RBCS, nº 31, ano 11, pp. 67-81.Também publicado em R. Cardoso de Oliveira e L. R. Cardoso de Oliveira Ensaios Antropológicos Sobre Moral e Ética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

—1997 "Democracia, Hierarquia e Cultura no Quebec". Série Antropologia nº 232. Brasília: UnB/Departamento de Antropologia.

CARENS, J. 1995 "Immigration, Political Community, and the Transformation of Identity: Quebec’s Immigration Politics in Critical Perspective", em J. Carens (org.) Is Quebec Nationalism Just? Perspectives from Anglophone Canada. Montreal: McGill-Queen’s University Press, pp. 20-81.

DUMONT, L. 1992 Homo Hierarchicus: O Sistema das Castas e suas Implicações. São Paulo: EDUSP.

GADAMER, H-G. 1980 "The universality of the hermeneutical problem", em J. Bleicher (org.) Contemporary Hermeneutics: Hermeneutics as Method, Philosophy and Critique. London: Routledge & Kegan Paul, pp. 128-140.

HABERMAS, J. 1984 The Theory of Communicative Action (volume 1), Boston: Beacon Press.

—1989 "Historical Consciousness and Post-Traditional Identity: The Federal Republic’s Orientation to the West", em J. Habermas (org. por S. Nicholsen) The New Conservatism: Cultural Criticism and the Historians’ Debate. Cambridge, Mass.: The MIT Press, pp. 249-267.

LAMOUREUX, D. 1995 "Le patriotisme constitutionnel et les États multinationaux", em F. Blais, G. Laforest e D. Lamoureux (orgs.) Libéralismes et nationalismes: Philosophie et politique. Quebec: Les Presses de l’Université Laval, pp. 131-144.

LEYDET, D. 1995 "Intégration et pluralisme: le concept de culture publique", em F. Blais, G. Laforest e D. Lamoureux (orgs.) Libéralismes et nationalismes: Philosophie et politique. Quebec: Les Presses de l’Université Laval, pp. 117-130.

MILLER, D. 1993 "In Defense of Nationality." Journal of Applied Philosophy, vol. 10, nº 1 MINISTÈRE DES COMMUNAUTÉS CULTURELLES ET DE L'IMMIGRATION DU QUÉBEC 1990 Énoncé de politique en matière d'immigration et d'intégration. Quebec: Ministère des Communautés culturelles et de l'Immigration du Québec.

RAWLS, J. 1993 Political Liberalism. New York: Columbia University Press.

TAYLOR, C. 1994 "The Politics of Recognition", in A. Gutmann (org.) Multiculturalism and "The Politics of Recognition", New Jersey: Princeton University Press.

WEBER, M. 1978 Economy and Society (An Outline of Interpretive Sociology), vol. 2. Organizado por G. Roth e C. Wittich. Berkeley: University of California Press.

 

Prof. Luís Roberto Cardoso de Oliveira
lcardoso[arroba]unb.br
UNB/PRONEX-NUAP

Brasília, 1999



 Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.