A noção de categoria, inaugurada pela filosofia grega, é incorporada ao pensamento antropológico através da Escola Sociológica Francesa - sob a liderança de Durkheim e Mauss - num esforço de constituir uma antropologia (ou sociologia) que tinha como preocupação principal responder a duas perguntas: o que os homens pensam? e quem são aqueles que pensam? (Cardoso de Oliveira, 1979: 33). A nosso ver, aí tem início o que se poderia chamar de antropologia do conhecimento, que se propõe a investigar como a sociedade é pensada pelos atores, ou melhor, como a sociedade se pensa, e como são construídas as representações coletivas que dão sentido à sociedade e sem as quais a vida em grupo seria impossível. Neste pequeno ensaio tentaremos mostrar como a noção de categoria foi desenvolvida pela Escola Sociológica Francesa e indicaremos alguns de seus desdobramentos na antropologia inglesa através da análise do trabalho de Evans-Pritchard sobre as noções de tempo e espaço entre os Nuer (Evans-Pritchard, 1974: 94-139).
Neste empreendimento, e tendo o neo-kantianismo como interlocutor privilegiado, Durkheim e Mauss partem das categorias Aristotélicas do entendimento humano —noções de tempo, de espaço, de gênero, de número, de causa, de substância, de personalidade etc...—, as quais deveriam estar presentes em qualquer sociedade na medida em que constituiriam os fundamentos do conhecimento. Isto é, os sentimentos, as emoções, os juízos, os valores, e, enfim, tudo aquilo que condiciona qualquer pensamento ou representação sobre a vida humana:
"... Elas correspondem às propriedades mais universais das coisas. Elas são como quadros rígidos que encerram o pensamento; este parece não poder libertar-se delas sem se destruir, pois não parece que possamos pensar objetos que não estejam no tempo ou no espaço, que não sejam numeráveis etc. As outras noções são contingentes e móveis; nós concebemos que elas possam faltar a um homem, a uma sociedade, a uma época; aquelas nos parecem quase inseparáveis do funcionamento normal do espírito. São como a ossatura da inteligência...". (Durkheim, 1973: 513).
Partindo deste postulado, os membros da Escola desenvolveram estudos sobre cada uma destas categorias no sentido de mostrar o caráter social da construção das mesmas, assim como a sua importância enquanto instrumento de conhecimento e de comunicação humana1.
Segundo estes autores, as categorias fundamentais do entendimento não poderiam ter sua origem numa consciência individual, pois não se confundem com as representações que fazemos de nossas experiências individuais ao nível da sensibilidade (através de nossos poderes sensoriais):
"São os conceitos mais gerais que existem (as categorias - LCO) porque se aplicam a todo o real e, da mesma maneira que não estão ligadas a nenhum objeto particular, são independentes de todo sujeito individual: elas são o lugar comum onde se encontram todos os espíritos. Além do mais estes se encontram aqui necessariamente; pois a razão, que não é outra coisa que o conjunto das categorias fundamentais, é investida de uma autoridade que não podemos subtrair à vontade". (Durkheim, 1973: 516).
Embora as categorias do entendimento não se confudam com o conceito de representações coletivas, o argumento de Durkheim no sentido de distinguir estas últimas das representações individuais pode nos trazer algum esclarecimento a respeito do caráter social daquelas:
"... Se se pode dizer, sob certos aspectos, que as representações coletivas são exteriores com relação às consciências individuais, é porque não derivam dos indivíduos considerados isoladamente, mas de sua cooperação, o que é bastante diferente ...". (Durkheim, 1970: 39).
Mais adiante o autor continua seu argumento comparando a síntese química com o processo de síntese das consciências individuais na constituição das representações coletivas:
"... Uma síntese química se produz que concentra e unifica os elementos sintetizados e, por isso mesmo, os transforma. Uma vez que a síntese é obra do todo, é o todo que ela tem por ambiente. A resultante ultrapassa, portanto, cada espírito individual, assim como o todo ultrapassa a parte.
Ela existe no conjunto. Eis ai em que sentido ela é exterior em relação ao particular. Por certo, cada homem contém qualquer coisa desta resultante; mas ela não está inteira em nenhum. Para saber o que é na realidade, deve-se considerar o agregado em sua totalidade...". (Durkheim, 1970: 39).
De acordo com a nossa leitura, as categorias fundamentais do entendimento humano são e não são, ao mesmo tempo, o que Durkheim e Mauss chamam de representações coletivas. Se, por um lado, tanto as categorias como as representações coletivas são construídas socialmente, pois ambas referem-se ao todo e não a aspectos específicos do real, por outro, enquanto fundamentos do conhecimento e como as precursoras da razão, as categorias atuam como pontos de referência a partir dos quais as representações coletivas são construídas. Neste sentido, as categorias poderiam ser consideradas como representações coletivas de ordem especial; seriam aquelas idéias (ou princípios), às vezes inconscientes, que indicariam os caminhos a serem seguidos pelas representações coletivas:
"... esta noção (de causalidade - LCO) pode ter existido sem que tenha sido expressa: um povo não tem mais necessidde de formular esta idéia do que de enunciar as regras de sua gramática. Tanto em magia, como em religião, como em lingüística, as idéias inconscientes são as que atuam...". (Mauss & Hubert, 1971: 128).
Para a Escola Francesa as representações coletivas são todas aquelas inferências que fazemos a respeito da vida e do mundo. No próprio ato de perceber e conhecer o mundo, classificamos e ordenamos as coisas de acordo com os modelos fornecidos pela sociedade (isto é, modelos que foram construídos socialmente). De outra maneira, as categorias são aquelas noções que permeiam todas as classificações e ordenamentos que fazemos do mundo, são noções que permitem o equacionamento entre realidades distintas.
Enquanto as categorias do entendimento devem ser encontradas em toda e qualquer sociedade, mesmo que de maneira diferente, de acordo com a cultura do grupo social em questão, as representações coletivas variam de uma sociedade para a outra, fazendo com que manifestações específicas do fenômento possam estar presentes numas e ausentes noutras.
O argumento exposto acima não contradiz em nada, como poderia parecer, a relação estabelecida por Durkheim e Mauss (1978: 189ss) entre as representações coletivas e a morfologia social. Sem dúvida nenhuma, para estes autores, as primeiras refletem a segunda2 e devem acompanhar o movimento desta. Contudo, as mudanças a que são submetidas as representações coletivas neste processo são realizadas de acordo com as categorias fundamentais do entendimento humano, isto é, são estas noções que fornecem os meios através dos quais a nova realidade pode ser pensada. É certo que estas categorias também mudam de acordo com o desenvolvimento da sociedade, mas é uma mudança de forma e não de conteúdo. Ou seja, as categorias fundamentais do entendimento são as mesmas para todas as sociedades independentemente do estágio de desenvolvimento em que se encontrem, e as variações se resumem à maneira como estas noções se apresentam em cada sociedade.
Esta perspectiva de desenvolvimento em relação às categorias está presente em todos os trabalhos de Durkheim e Mauss sobre o assunto, e encerra um aspecto metodológico importante. Desta forma, para um bom entendimento da constituição destas categorias, deveria-se investigá-las naqueles contextos em que aparecessem em sua forma mais simples, onde estas noções ainda não estivessem associadas a uma série de fatores exógenos, como ocorre no caso das sociedades mais desenvolvidas, para que a atenção do pesquisador não seja desviada. Assim, em seu estudo sobre a religião, Durkheim justifica a necessidade de se investigar o fenômeno em sua forma mais elementar (o sistema religioso dos australianos) para que a sua essência seja desvendada:
"A imaginação popular sacerdotal (nas sociedades primitivas - LCO) ainda não teve nem tempo nem os meios de refinar e de transformar a matéria-prima das idéias e das práticas religiosas; portanto, esta matéria se mostra a nu e se oferece por si mesma à observação, bastando um esforço mínimo para descobri-la. O acessório, o secundário, os desenvolvimentos de luxo ainda não vieram esconder o principal. Tudo está reduzido ao indispensável, àquilo sem o que não poderia haver religião. Mas o indispensável também é o essencial, isto é, o que antes de tudo importa conhecer". (Durkheim, 1973: 510).
Esta arqueologia do fenômeno religioso não se relaciona a um compromisso com a origem da religião no sentido histórico do termo, ou seja, de traçar historicamente o desenvolvimento e as mudanças que ocorreram desde a sua gênese até o estado em que se encontra nos dias de hoje. A questão que norteia o problema diz respeito à essência da religião e apenas neste sentido deve-se buscar a sua origem (ou sua forma primeira), para possibilitar a apreensão do fenômeno da maneira como se encontra nas sociedades avançadas da atualidade.
O segundo passo metodológico diz respeito à maneira como a investigação deve ser realizada: qual o ponto de partida do pesquisador no estudo das categorias em uma sociedade determinada? O caminho trilhado pela Escola Francesa aponta para a importância das instituições sociais como a principal fonte de pesquisa para o antropólogo no estudo das categorias fundamentais do entendimento humano. Assim, a categoria de totalidade foi apreendida por Durkheim através do estudo da religião, e as categorias causalidade e de persona, ambas estudadas por Mauss (sendo a primeira parte de um empreendimento conjunto com Hubert), foram apreendidas, respectivamente, através do estudo da magia e do estudo do direito ou da moral. Neste sentido a importância das instituições sociais refere-se ao fato de que, sendo produto do pensamento coletivo e, portanto, representações coletivas, é através de sua análise que as categorias se apresentam de maneira mais clara ao pesquisador. A idéia de eficácia mágica, que é o alicerce (ou a essência) da crença na magia, remete à categoria de causalidade da mesma maneira que a idéia de força coletiva, que está por traz da instituição religiosa, remete à categoria de totalidade.
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