Desde os gregos a retórica tem sido caracterizada como um instrumento de persuasão e convencimento, onde as idéias de esclarecimento e de manipulação indicam duas dimensões opostas dos discursos retóricos. Neste contexto, os discursos políticos estão entre aqueles que despertam mais interesse e que ocupam maior espaço na nossa contemporaneidade. Na presente comunicação procurar-se-á explorar, através da análise de discursos políticos enunciados durante a campanha para o referendum sobre a soberania do Quebec, em outubro de 1995, a articulação entre o que gostaria de chamar de retórica do ressentimento e as demandas de reconhecimento da identidade quebequense. Dado que as demandas de reconhecimento estão freqüentemente associadas à afirmação de um direito moral, cuja percepção ou fundamentação não encontra respaldo adequado na linguagem jurídica, até que ponto a mobilização de sentimentos como o de ressentimento seria um instrumento legítimo e iluminador do insulto moral que se quer reparar? Ou, em que medida a retórica do ressentimento não correria riscos de provocar não apenas as emoções dos atores, com o objetivo de facilitar a percepção do insulto moral que teriam sofrido, mas também uma atitude passional e, portanto, inibidora da compreensão que estaria tentando viabilizar?
No dia 30 de outubro de 1995 realizou-se, no Quebec, o segundo referendum sobre a soberania da província, que teve, como resultado, uma vitória apertada do NÃO. Isto é, a proposta de dar ao governo quebequense um mandato para negociar com o Canadá uma nova relação de parceria política e econômica foi rejeitada por 50,6% a 49,4% dos votos.2 A proposta demandava a institucionalização de uma nova relação na qual o Quebec e o Resto do Canadá (RDC) teriam um status político equivalente, dentro da qual assumiriam um compromisso de atuação conjunta, e contemplava ainda a possibilidade do Quebec fazer uma declaração unilateral de independência do Canadá, caso não se conseguisse celebrar um acordo entre as partes no prazo de um ano. A população se pronunciou sobre a seguinte pergunta: "Acceptez-vous que le Québec devienne souverain, après avoir offert formellement au Canada un nouveau partenariat économique et politique, dans le cadre du projet de loi sur l´avenir du Québec et de l´entente signée le 12 juin 1995?"3
O projeto de lei mencionado na pergunta foi firmado por Jacques Parizeau (1º ministro do Quebec à época), Lucien Bouchard (chefe do Bloco Québécois)4 e Mario Dumont (chefe da Aliança Democrática do Quebec)5 quatro meses antes da realização do referendum. Como indiquei acima, o projeto de lei previa a possibilidade de uma declaração unilateral de independência, e representou uma flexibilização da posição defendida por Parizeau, que gostaria de aprovar uma definição não condicional sobre a soberania do Quebec. Parizeau havia sido eleito primeiro ministro do Quebec em setembro de 1994, e tinha como principal bandeira a realização de um referendum sobre a soberania da província no ano seguinte. Parizeau é identificado como um soberanista pur et dur e sua proposta original era considerada excessivamente radical para ter penetração num segmento suficientemente amplo da população, que viablizasse uma vitória do voto soberanista. A proposta de "uma nova parceria..." relativiza a idéia de separação do Canadá, procurando contemplar aqueles segmentos que não gostariam de perder totalmente os vínculos identitários com o país, ou aqueles que temem as conseqüências econômicas que uma separação radical poderia trazer, e se articula bem com o projeto do "Movimento Soberania- Associação", criado por René Lévesque em 1967, e que viria se transformar no Partido Québécois um ano depois. Aliás, o referendum de 1980 também pedia autorização popular para negociar uma nova relação com o RDC, com a diferença de que o acordo que viesse a ser firmado seria submetido a um novo referendum popular, e a possibilidade de declaração unilateral de independência não era uma alternativa.
Embora o clima político que informava as demandas de reconhecimento da identidade quebequense e a relação com o RDC fosse marcadamente diferente nos dois referendums, a identidade com o Canadá nunca deixou de ter um certo apelo, e os riscos econômicos de um Quebec soberano nunca deixaram de ser uma preocupação. Entretanto, ao contrário da situação vigente em 1980, quando o Quebec vivia sob o impacto positivo — para a sobrevivência do francês e da identidade franco-quebequense — da lei 101 que regulamenta a utilização da língua francesa na província, o referendum de 1995 se realiza após repetidos fracassos de negociação constitucional para satisfazer as demandas de reconhecimento do Quebec, que se nega a subscrever a constituição patriada em 1982.6 Além de considerar a nova carta de direitos uma ameaça para sua sobrevivência cultural, a população francoquebequense tende a interpretar a rejeição dos acordos do Lago Meech e de Charlottetown como uma negação de sua identidade e, portanto, como atos de desconsideração ou como um insulto moral.7 É dentro deste quadro que o debate sobre a soberania do Quebec tem lugar e abre espaço para a expressão de posições nacionalistas mais radicais.
De qualquer forma, se a insatisfação com o status quo constitucional ou com o status do Quebec na federação é bastante difundida na província, a identificação com um projeto de declaração de independência já é bem mais restrita. Vários francófonos com quem conversei me disseram ter votado a favor da soberania com o objetivo de provocar mudanças na situação do Quebec dentro da federação, mas alegavam não ter intensão de apoiar a separação do Canadá. Aliás, em sua edição de 21 de outubro de 1995, o diário The Gazette — principal jornal anglófono do Quebec e totalmente identificado com posições federalistas —, menciona pesquisas segundo as quais 1/3 dos eleitores decididos a votar pelo SIM o fariam mais para cobrar mudanças (dentro da federação), do que para promover a separação. Além disto, pesquisas de opinião realizadas antes e depois do referendum indicavam que um percentual significativo dos que votaram SIM acreditavam estar votando pela nova pareceria, mas não pela separação do Canadá, apesar de Parizeau repetir freqüentemente que a vitória do SIM representaria a soberania do Quebec, e apenas talvez a efetivação de uma parceria entre dois países soberanos: "Répondre OUI, c’est effectivement se donner un pays. Ça veut dire que les Québécois vont avoir leur pays" (Parizeau, em 8/9/95 no jornal Le Devoir).8 Neste contexto, os defensores do NÃO criticavam sistematicamente a redação da questão do referendum, que não lhes parecia suficientemente clara, e procuravam convencer os simpatizantes da proposta de uma nova parceria de que o SIM significaria, de fato, a separação.
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