Resumo: O artigo discute a singularidade do racismo no Brasil como um tipo de discriminação cívica particularmente importante mas que, não obstante, reflete um padrão muito mais abrangente de desrespeito a direitos e de agressão à cidadania. Tendo como foco práticas discriminatórias na vida cotidiana, que seriam estimuladas pela desarticulação entre esfera pública e espaço público no Brasil, o autor identifica o potencial das "cotas" no plano simbólico como instrumento de combate ao racismo e de afirmação da cidadania.
Abstract: The article discusses the singularity of Brazilian racism as a type of civic discrimination that is particularly important, but which, nevertheless, reflects a much broader pattern of disrespect for rights and aggressions to citizenship. Focusing on practices of discrimination in everyday life, which are stimulated by a disarticulation between the public sphere and public space in Brazil, the author identifies the potential of "quotas" at the symbolic level as a weapon against racism and as an assertion of citizenship.
O debate atual sobre a instituição de cotas para negros nas Universidades enseja uma boa oportunidade para repensar a especificidade da discriminação racial no Brasil, e o potencial transformador das políticas de ação afirmativa propostas para combatê-la. Tendo como referência reflexões anteriores sobre a relação entre insulto moral e (des)respeito a direitos no Brasil, que tenho contrastado com situações similares nos EUA e no Quebec (Cardoso de Oliveira 2002), gostaria de explorar um pouco o que esta discussão tem a contribuir para a elucidação da discriminação racial entre nós. Nesse empreendimento, vou procurar caracterizar brevemente o debate, para relacioná-lo em seguida com a questão mais ampla do respeito aos direitos de cidadania de uma maneira geral, trazendo à tona suas implicações para o cotidiano dos cidadãos, onde a articulação entre identidades, direitos e sentimentos ganha destaque. Finalmente, vou concluir o artigo com alguns comentários sobre o significado das cotas neste quadro.
Pelo menos desde os anos 50 a sociologia tem criticado a ideologia da democracia racial no Brasil, chamando a atenção para a incidência de discriminação no país, sem deixar de assinalar especificidades locais, particularmente acentuadas quando contrastadas com os EUA. Nesse sentido, características como as do estilo indireto da discriminação, da vergonha do preconceito, e das ambiguidades da classificação racial têm sido comparadas à violência explícita da discriminação racial nos EUA, à existência do apartheid até os anos 60, e à nitidez da classificação racial, onde a chamada color line pode ser estabelecida com precisão. A publicação do hoje clássico trabalho de Oracy Nogueira — "Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem" (1954/1985) — foi um marco e se mantém como referência obrigatória para qualquer discussão sobre o tema, ainda que nem sempre ganhe a atenção devida. De qualquer forma, um desdobramento importante das contribuições deste período foi a consolidação da idéia de que se há, de fato, uma mistura entre raça e classe social na questão da discriminação, uma condição não explica a outra.1 Isto é, a ascensão social não elimina a discriminação racial, ainda que possa reduzi-la ou suavizá-la, assim como os pobres não deixam de estar mais sujeitos a atos de discriminação cívica do que os cidadãos de classe média, especialmente por parte da polícia (Kant de Lima 1995), mesmo quando são classificados como brancos, se tomamos como referência a cor da pele.2
Uma das características das práticas de discriminação indireta vigentes no Brasil é que ela costuma aparecer de maneira dissimulada, sendo por vezes de difícil identificação mesmo para aqueles que sofrem na pele os seus efeitos. Além da discriminação ser uma prática ilegal, com penalidades previstas em lei, também é sancionada negativamente no plano moral, e não é de bom tom demonstrar preconceito. Desse modo, mesmo quando não se trata de esconder intencionalmente o preconceito, ele se manifesta frequentemente de maneira irrefletida e a falta de consciência do ator sobre suas atitudes preconceituosas eventualmente esboçadas não é de todo surpreendente. A propósito, na abertura da préconferência sobre racismo e discriminação realizada em janeiro de 2001 na cidade de Porto Alegre, um representante da Fundação Palmares cita reportagem publicada na (edição de 14 de janeiro de 2001 da) Folha de São Paulo, sobre anúncio colocado no jornal por uma mulher de classe média alta à procura de uma empregada, assinalando que só aceitaria candidatas "brancas". Perguntada pela jornalista se os termos do anúncio não seriam uma indicação de racismo, a dona da casa argumenta que não pois em sua família não há preconceito nem discriminação e enfatiza o fato de seu marido – um empresário – até recentemente ter tido pelo menos cinco empregados negros em sua empresa, os quais só teriam sido demitidos devido à crise econômica. Como indica o palestrante, é sintomático que no momento de crise os primeiros empregados demitidos tenham sido exatamente os negros. Exemplos de preconceito implícito ou irrefletido conjugados com práticas de discriminação racial indireta como esta são corriqueiros entre nós, e não permitem negar a existência de discriminação. Entretanto, eles revelam também a singularidade deste tipo de discriminação e suas implicações para a compreensão do problema no Brasil.
Além do caráter nebuloso do preconceito e da discriminação, estes não perdem a sua singularidade mesmo quando são assumidamente afirmados pelos atores. De fato, não é novidade nem causa surpresa à ninguém quando cor e classe social estão imbricados em manifestações de preconceito ou discriminação. Como por exemplo, no caso de mulheres negras que são impedidas de utilizar a entrada social de prédios na zona sul do Rio de Janeiro — como me foi relatado por duas negras norte-americanas que conheci nos EUA —, sob a alegação de que empregadas devem utilizar a entrada de serviço. É evidente que as duas mulheres foram classificadas como domésticas por serem negras.
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