O estudo da mudança sócio-cultural, como objetivo de uma antropologia moderna, não é uma empresa fácil. Por dois motivos. Primeiro pelo fato de ser um hábito bem enraizado na etnologia — particularmente na etnologia brasileira — de se fazer história mais, ou em lugar de, antropologia; entendendo-se por esta o estudo sistemático, nomotético, das realidades sócio-culturais. O traçado linear da mudança naqueles estudos históricos, implicando geralmente um antes e um depois, acarreta um outro hábito, igualmente corrente na antropologia — e não apenas brasileira — como o de fazer extrapolações entre esses dois momentos, entre o antes e o depois, ou, para falar com Barth, entre dois estados, ou mesmo de um único estado, para indicar o curso da mudança (Fredrik Barth, 1967: 661). O segundo motivo estaria, assim, no vício de extrapolações desse tipo a que se refere Barth. A solução que ele sugere não vamos examinar aqui senão dizer que ela diz respeito ao caráter da contribuição da antropologia social para a compreensão da mudança: como o de prover materiais primários para o entendimento de processos e, por conseguinte, permitir com isso a observação e a descrição de eventos de mudança como algo que está acontecendo agora e não como um produto secundário de dados graças à dedução ou à extrapolação (cf. Barth, idem). A solução que julgamos encontrar, particularmente no que concerne à compreensão da mudança originada pelo contato interétnico, prende-se à possibilidade de instrumentalização do modelo do "potencial de integração", por mim proposto em 1967 no ensaio "Problemas e Hipóteses relativos à Fricção Interétnica"1 e à utilização da noção de evento como a menor unidade de um fato, significativamente observável; i.e. a inteligência do que é observável o seria a partir do próprio modelo. É assim que vamos iniciar essa exposição por um exame desse modelo analítico e por uma avaliação de suas possibilidades para descrição e explicação do processo de mudança sóciocultural na Amazônia.
A noção de que o contacto entre duas ou mais étnicas assume um caráter sistêmico a partir de um certo momento, estruturalmente determinado, constitui a base do modelo. Em outras palavras, o sistema interétnico começa a se constituir a partir do momento em que se cria uma certa interdependência entre os grupos étnicos em contacto e se cristaliza quando tal interdependência se torna irreversível2. Essa cristalização, é bom esclarecer, não significa um estado estático do sistema, muito pelo contrário; o sistema interétnico é um corpus sócio-cultural permanentemente em embulição: mesmo que antagonismos ou conflitos internos ao sistema interétnico não se manifestam é lícito aceitar que estejam em estado latente. A fricção interétnica estando freqüentemente em estado latente, manifesta-se episodicamente. Isto porque os mecanismos que levaram à constituição do sistema interétnico continuam em plena vigência e operação: os interesses diametralmente opostos que unem os grupos étnicos em contacto, como os que se exprimem na dependência do índio dos recursos materiais postos ao seu alcance pelo alienígena, membro da sociedade nacional envolvente; e da dependência deste último de recursos postos ao seu alcance pelo índio: o índio oferecendo matéria-prima — onde se inclui a terra e/ou a mão de obra — e o "civilizado" oferecendo bens manufaturados. Para o estudo do índio e de sua situação de fricção, essa sua dependência — que também retrata uma interdependência índio/branco — tem especial poder explicativo por estar voltada para a satisfação de necessidades que inexistiam anteriormente ao contado interétnico. Satisfeitas essas necessidades, o grupo indígena fica acorrentado à sociedade tecnicamente mais poderosa; esta, por sua vez, tendo investido seus recursos nos territórios indígenas, deles também não pode abrir mão. Está constituído, o que chamei, da base do sistema interétnico3.
Para entender bem as dimensões desses sistema e de sua dinâmica, nada como examiná-lo ao nível de um modelo: o modelo do "potencial de integração". Podemos decompor analiticamente o sistema interétnico em três dimensões ou níveis: a dimensão econômica, cuja melhor ilustração está dada nas considerações acima sobre a interdependência econômica; a dimensão do social, expressa pela capacidade dos grupos em conjunção (índios e regionais) em se organizarem para fazerem frente à situação de fricção interétnica, mobilizando seus componentes e orientando-os a fins; e, finalmente, a dimensão política, onde o ponto de referência analítico não são mais os fins, mas os meios, através dos quais se afirma a autoridade e o poder de um grupo sobre outro, e é quando o sistema interétnico se exprime como um sistema de dominação e sujeição. Qual a utilidade do modelo para uma teoria da mudança sóciocultural?
Parece-me claro que, em se tratando de mudanças que têm lugar como resultados do contato interétnico, o modelo do "potencial de integração" permitirá não só localizá-las como apreciá-las em termos mais orgânicos e totalizadores. E pelo fato dessas mudanças possuírem um caráter indubitavelmente mais radical e se processarem numa escala de tempo mais rápido, elas devem ser tomadas pelo analista como as mais significativas para a compreensão do processo de mudança sócio-cultural. É possível considerar assim que quanto mais irreversivelmente se constitui o sistema interétnico — como resultante da integração progressiva dos sistemas sociais indígenas e nacional em conjunção — mais ocorre a mudança sócio-cultural nos grupos étnicos em contacto.
Não se trata de mudança por empréstimo de tais ou quais traços culturais, como pretendem explicar as teorias de aculturação. Trata-se de mudanças determinadas pela própria dinâmica das relações sociais, da forma como essas relações (e não traços ou padrões culturais) ocorrem no âmbito do sistema interétnico: podendo ser elas percebidas pelo analista como eventos e tendo lugar em diferentes níveis: o econômico, o social e o político. Em cada sistema interétnico analisado, poder-se-ia diagnosticar o "estado" de integração desse sistema e prognosticar — com diferentes graus de aproximação — "estados" futuros desse sistema ou, em outras palavras, o próprio desenvolvimento da situação de contato interétnico. A essa possibilidade de determinação do processo de constituição do sistema interétnico é que reservei o termo de "potencial de integração", para exprimir assim os mecanismos de constituição do sistema interétnico: a análise do sistema nos revelará o seu potencial de integração.
Nas áreas de fricção interétnica, onde a situação de contacto está marcada por relações assimétricas, de dominação dos brancos e sujeição dos índios, essa integração do sistema deve significar uma mudança em direção da sociedade nacional, e nos termos por ela ditados.
Antes de examinarmos o processo de mudança sócio-cultural, tomando alguns casos para análise, cabe-me oferecer informações que venham propiciar uma visão da Amazônia através das áreas de fricção interétnica que nela têm lugar, bem como de sua dinâmica, i.e. das frentes de expansão da sociedade nacional.
Em linhas bem gerais, e nos valendo de dados parcialmente analisados em outras oportunidades (R.C. de Oliveira, 1967; e R.C. de Oliveira & L. de Castro Faria, 1971), cabe fazer aqui algumas considerações de caráter comparativo visando fornecer uma noção sobre o lugar que ocupa a Amazônia — e me refiro aqui à Amazônia Geográfica — no território brasileiro e a expressividade de sua ocupação por povos indígenas.
Outros colegas falavam ou falarão nessa Conferência sobre a região amazônica, suas características e os diferentes ecossistemas que ela pode conter. Vamos nos limitar, assim, a dizer que os grupos indígenas4 nela situados montam a expressiva cifra de 159, a saber 74% de uma população total de 211 grupos. Essa população indígena "amazônica" se distribui em áreas de baixa densidade demográfica e incremento populacional variável, e a importância disso veremos adiante quando tratarmos das frentes de expansão da sociedade brasileira. Desses 159 grupos, 44, i.e. 27% podem ser considerados como não estando inseridos em sistemas interstícios; em termos descritivos, uma parte deles estaria na situação de grupos hostis, outra parte estaria na de arredios e outra, ainda, estaria na situação de manter contactos simplesmente esporádicos com segmentos desbravadores da sociedade nacional sem que tais contactos determinem uma interdependência econômica de caráter irreversível (mecanismo, como vimos, constitutivo do sistema interétnico). Os demais, a saber, os que se inserem em sistemas interétnicos — e que portanto suas relações com a sociedade nacional envolvente podem ser explicados ao nível do modelo do "potencial de integração"- representam cerca de 115 grupos, i.e. 72% dos grupos amazônicos. E será o exame, ainda que superficial, de situação de contacto desses grupos com os segmentos regionais da sociedade brasileira que nos permitirá fazer uma idéia preliminar do processo de mudança sócio-cultural por que passam atualmente. Mas o montante desses grupos já nos indica que essa mudança, tomada a Amazônia brasileira como um todo, é de tal modo expressiva que não pode ser ignorada por tantos quantos se refinam aos povos indígenas que a habitam. E é ma advertência especial aos etnólogos para que não cuidem de estudar a mudança sócio-cultural apenas como um tópico de suas monografias — um dos hábitos que já se tornou nociva à investigação antropológica — mas façam dela o próprio foco da pesquisa.
Será interessante refletirmos nessa conferência sobre os aspectos dinâmicos das áreas de fricção interétnica, a saber aquelas regiões em que se concentram sistemas interétnicos histórico e sociologicamente identificados. Essas regiões estariam sendo alcançadas por frentes de expansão da sociedade nacional, seja pela primeira vez — e nesse caso seriam frentes desbravadoras -; seja por fluxos ou refluxos de uma ou mais frentes, comumente chamadas de "ciclos econômicos", como o da borracha, o da mineração, o da indústria madereira, etc. Numa primeira consideração, podemos tomar como indicadores da presença dessas diferentes frentes, ou "fronteiras de civilização", como as chamaria o Professor Darcy Ribeiro (1970: 211-23), a densidade e o incremento demográficos comparativos. Verificamos, tomando-se o Brasil como um todo, que os grupos indígenas amazônicos ocupam precisamente aquelas áreas de baixa densidade e alto incremento populacionais, numa indicação de que essas áreas abrigavam frentes expansionistas — mesmo antes do empreendimento recente da Transamazônia, uma vez que estou me utilizando propositadamente de dados censitários de 1960 analisados comparativamente com os de 1950 (cf. R. Cardoso de Oliveira, 1967, passim). E como ilustração do que acabo de dizer, gostaria de apontar o livro de Otávio Guilherme Velho, "Frentes de Expansão e Estrutura Agrária" (1972), onde esse jovem antropólogo social trata monograficamente um conjunto de frentes de expansão situadas na confluência dos estados do Pará, Goiás e Maranhão, revelando-nos qual a magnitude da penetração econômica ocorrida no período que antecedeu ao próprio projeto da rodovia tranzamazônica. Mas a comparação que farei a seguir entre regiões (especificamente "zonas fisiográficas"), caracterizadas segundo densidade e incremento populacionais, e os grupos amazônicos, conforme a inserção ou não inserção destes últimos em sistemas interétnicos, creio que será suficientemente eloqüente para nos convencer da relativamente alta escala de penetração nacional na Amazônia Geográfica e, por conseguinte, qual a probabilidade de mudança sócio-cultural.
A primeira constatação que se poderá fazer à base dessa comparação (vide Quadro I), será relativamente à maior concentração de grupos indígenas nas regiões de baixa densidade demográfica. Entretanto tais regiões podem ser distinguidas também em termos de suas respectivas taxas de incremento populacional: nesse sentido teríamos, assim, aquelas regiões com baixo incremento, com 11 grupos indígenas; com médio incremento, abrigando 37 grupos; e com alto incremento, contendo 107 grupos indígenas5. O confronto dessas cinco categorias, que constituem o quadro comparativo, permite-nos assim essa primeira verificação de que é exatamente nas áreas do alto incremento populacional, portanto onde ondas migratórias mais afetam o equilíbrio demográfico regional, onde reside o maior número de grupos indígenas. Dentre as zonas fisiográficas classificadas nessa categoria de baixa densidade e alto incremento (Db/Ia), gostaria de assinalar as que congregam maior número de grupos indígenas; são elas: a do "Rio Negro", (18/os números remetem ao mapa) com cerca de 23 grupos, 11 dos quais inseridos em sistemas interétnicos, sendo os demais hostis, arredios ou esporadicamente contactados; são grupos de língua Baniwá6 (Aruák), Tukána, Makú, e Yanomami (estes últimos presentes também no "Alto Rio Branco", juntamente com grupos de língua Karib). Uma segunda região ou "zona fisiográfica a destacar é a do "Alto Madeira" no território de Rondônia; nesta, 12 grupos podem ser identificados, destes, entretanto, apenas dois não inseridos em sistemas interétnicos: esses grupos do alto Madeira são preponderantemente de língua Tupi ou de língua Txapkúra; quando não estão submetidos ao regime do seringal, acham-se hostis (os Kabixí) ou arredios (como alguns subgrupos Pakaanova). Vale assinalar nessa área a descoberta de cassiterita, o que indica alguma alteração no rumo da mudança sócio-cultural de grupos até então vinculados ao extrativismo vegetal. Uma terceira região, situada no norte mato-grossense, pode ser relacionada malgrado seja ela uma área de transição entre a floresta equatorial, amazônica, e os campos da "Chapada", nome, aliás, dado à zona fisiográfica; são 22 grupos e parte deles habita o Parque Indígena do Xingu, uma área de intensa aculturação inter-tribal. Talvez seja essa área, precisamente a do alto Xingu, que, juntamente com a do Rio Negro é aquela onde aculturação inter-tribal se processa em escala mais significativa; a diferença entre ambas ficaria apenas na menor exposição dos grupos xinguanos ao contacto com o branco, enquanto no Rio Negro a penetração nacional tem ocorrido mais sistematicamente alcançando os índios em seus mais distantes redutos.
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