Nos últimos anos a ética do Discurso (ou ética discursiva) tem suscitado vários debates interessantes em torno da possibilidade de fundamentação de questões de ordem ética e/ou moral, onde diferentes perspectivas ou posicionamentos filosóficos são confrontados (Kuhlmann, 1986; Benhabib & Dallmayr, 1990) e a relação entre ética e política é tematizada (Kelly, 1991). Entretanto, pouco tem sido feito no sentido de se articular esta discussão com o equacionamento de problemas de ordem empírica e, muito menos, pelo recurso ao método etnográfico. Pois é exatamente no âmbito deste tipo de articulação que o presente trabalho se insere.
Neste sentido, gostaria de iniciar a discussão com três observações preliminares à guisa de introdução:
1. Como toda teoria moral de inspiração Kantiana, a ética do Discurso proposta por Habermas e Apel tem quatro atributos fundamentais: é deontológica, cognitivista, formalista e universalista (Habermas, 1986:18). Embora estes atributos estejam intimamente interligados, me parece que aqueles que oferecem maior potencial de diálogo imediato com as ciências sociais são os dois primeiros, na medida em que seriam constitutivos mesmo do fato moral enquanto tal. Isto é, o caráter obrigatório das normas (Mauss, 1971, Malinowski, 1982; Gluckman, 1967 e L. Cardoso de Oliveira, 1989 inter alia), por um lado, e a crença dos atores sociais na possibilidade de justificar estas normas (Gluckman: 1967; L. Cardoso de Oliveira: 1989), por outro, parecem ser características gerais da vida ética ou "Sittlichkeit" onde quer que ela tenha lugar.1
2. Enquanto antropólogo, meu interesse está muito mais voltado para o estudo de eticidades (Sittlichkeiten) particulares, onde me sinto mais à vontade, do que para a discussão da questão da moralidade em si, a qual ocupa maior espaço nos trabalhos dos filósofos em geral, e de Habermas e Apel em particular. Deste modo, a problemática da moralidade assume um papel importante no meu empreendimento na medida em que ela me permite um melhor equacionamento da eticidade enquanto objeto de estudo.
3. De acordo com o próprio Habermas (1986: 16), desde Hegel o formalismo e o universalismo das teorias morais de orientação Kantiana têm sido criticados por implicarem num processo de abstração, ou de distanciamento do substrato substantivo do fato moral, de tal ordem que o sentido mesmo da eticidade e das máximas analisadas acabaria sendo totalmente esvaziado.2 Embora acredite que a ética do Discurso consiga superar estes problemas satisfatoriamente a nível teórico, me parece que as reflexões desenvolvidas por Habermas não permitem um encaminhamento igualmente satisfatório destas questões para a construção de um programa de pesquisa a nível empírico. Pois é exatamente neste contexto que as preocupações do intérprete da sociedade com questões de legitimidade e eqüidade ("fairness")3 podem dar uma contribuição para o aprofundamento do debate. Isto é, como espero poder mostrar através da discussão de alguns exemplos tirados de meu estudo sobre Juizados de Pequenas Causas nos EUA, ao mesmo tempo que a ética do Discurso permite um melhor equacionamento de problemas de legitimidade e eqüidade, a investigação sociológica destes problemas permite uma articulação mais palpável entre questões de moralidade e eticidade assim como sugerida (mas pouco desenvolvida) no plano das tentativas de 'fundamentação" filosófica da ética do Discurso.
No que se segue, farei inicialmente uma breve exposição das principais características da ética do Discurso, com o objetivo de (I) indicar o potencial de suas proposições para a apreensão do fenômeno ético-moral a nível conceitual, e (II) apresentar algumas de suas limitações para a compreensão das manifestações empíricas do fenômeno.
Sugiro então, (III) a utilização das noções de legitimidade e eqüidade para resgatar a fecundidade da ética do Discurso para a realização de estudos etnográficos. Finalmente, (IV) me inspiro nas formulações desenvolvidas até aqui para elucidar o significado e/ou as implicações ético-morais de dois exemplos etnográficos, concluindo o trabalho (V) com a indicação de alguns resultados relevantes deste esforço de articulação.
A ética do Discurso tem como objeto primordial o universo da moralidade, em sentido Kantiano, e, como tal, se orienta por uma delimitação precisa de seu raio de ação.
Isto é, como Kant os autores que defendem esta perspectiva pregam uma separação radical entre questões de ordem normativa e questões de ordem valorativa em sentido estrito, onde apenas as primeiras fariam parte do campo da moralidade enquanto fenômeno filosófico ou social. Deste modo, a ética do Discurso privilegia o estudo do que é direito, correto, ou justo, mais na linha da tradição das teorias do "dever moral" (e.g., as teorias contratistas de Rousseau à Rawls), em oposição aos aspectos valorativos da vida boa (ou do viver bem) que preocupavam a tradição que remonta a Aristóteles e São Tomás (Habermas, 1986 & 1989).4
Contudo, se a ética do Discurso compartilha a definição de seu objeto de estudo com os contratistas e mantem os quatro atributos fundamentais que são comuns às demais teorias da moral de inspiração Kantiana, sua estratégia de fundamentação é significativamente diferente e abre novas perspectivas para as pretensões de validade dos estudos sobre a moral e a eticidade. Neste contexto, o esforço mais sistemático de fundamentação da ética do Discurso foi realizado por Jürgen Habermas (1989) e passo agora à discussão de suas idéias.5
Em seu empreendimento, Habermas, procura, inicialmente, discutir a pretensão de validade normativa no âmbito da teoria da argumentação, para depois estabelecer um princípio de universalização ('U'), —do qual deriva o princípio de argumentação moral ('D')—, que faça as vezes do imperativo categórico Kantiano para a ética do Discurso.
Habermas chama a atenção para o fato de que, embora a esfera da normatividade esteja aberta à questões de validade, estas não têm, neste caso, um caráter idêntico ao das questões de validade assertórica, que caracteriza as proposições científicas sobre o "mundo objetivo", mas apenas análogo. Se num caso falamos em verdade (proposicional), no outro seria mais adequado falarmos em correção (normativa). Isto é, argumenta Habermas, ao contrário das postulações dos intuicionistas (e dos cognitivistas empiristas em geral) as proposições deônticas não podem ser impunemente assimiladas às proposições predicativas (1989:73). Pois, as primeiras mantêm uma relação diferente com os atos de fala através dos quais são explicitadas e não podem ser falseadas ou verificadas como as últimas (idem: 75).
Enquanto as proposições predicativas só existem nos atos de fala, pois dependem destes para manter sua força assertórica, "as pretensões de validez normativas têm sua sede primeiro em normas e só de maneira derivada em atos de fala" (Ibidem: 81), na medida em que o ordenamento do "mundo social" não pode ser constituído "independentemente de toda a validez" e, portanto, reivindica uma validez anterior mesmo à proclamação das normas em questão.6
Deste modo poderíamos dizer que, se o mundo social é simbolicamente préestruturado e, portanto, não pode ser plenamente compreendido sem que o pesquisador se sujeite a um processo de dupla-hermenêutica (Giddens, 1976: 158),7 os universos da moralidade e da eticidade demandariam uma radicalização deste processo, sendo quase totalmente impermeáveis à atitude objetivista do observador (L. Cardoso de Oliveira, 1989: 123-38 e 1993:67-81).
Mas, este substrato social característico da idéia de validez ou correção normativa tem implicações significativas para uma teoria moral que se pretende cognitivista. Pois, se se pretende separar as normas válidas daquelas que não o são, se faz necessário desenvolver uma noção de validade distinta da idéia de vigência social.8
"...Ao passo que entre os estados de coisas existentes e os enunciados verdadeiros existe uma relação unívoca, a existência ou validez social das normas não quer dizer nada ainda acerca da questão se estas também são válidas. Temos que distinguir entre o fato social do reconhecimento intersubjetivo e o fato de uma norma ser digna de reconhecimento. Pode haver boas razões para considerar como ilegítima a pretensão de validez de uma norma vigente socialmente; e uma norma não precisa, pelo simples fato de que sua pretensão de validez poderia ser resgatada discursivamente, encontrar também um reconhecimento factual..." (Habermas, 1989: 82).
É neste ponto que a definição de um princípio de universalização aparece como um passo essencial para o empreendimento, na medida em que é através dele que o processo de fundamentação da diferença entre vigência social e validade poderá ser concretizado. Neste contexto, o imperativo categórico kantiano ("aja de forma que a máxima de sua vontade poderia, ao mesmo tempo, se manter como um princípio para uma lei universal") é substituído por um princípio (ético-discursivo) de argumentação moral 'D' e por um princípio de universalização 'U':
'D' = "apenas poderão manter suas pretensões de validade aquelas normas que poderiam contar com o consentimento de todos os concernidos em sua capacidade enquanto participantes num discurso prático". (Habermas, 1986: 18).
Isto é, dentro desta perspectiva, em princípio toda norma válida encontraria o assentimento de todos os concernidos, se eles tivessem oportunidade de participar de um discurso prático.
'U' = "Para uma norma ser válida as conseqüências intencionais e não intencionais que sua observância generalizada tem para os interesses de cada um devem ser livremente aceitas por todos". (Habermas, 1986:18).
Este princípio de universalização, que serve como um princípio ponte no equacionamento de questões de ordem normativa (Habermas, 1989: 84ss), equivalente aos cânones da indução na esfera de validez assertórica, cumpre o papel de uma fundamentação indireta para as pretensões de validez normativa na medida em que o referido princípio é desenvolvido a partir de uma pressuposição pragmática da argumentação em geral. Isto é, uma pressuposição necessária para qualquer um que entre no jogo da argumentação.
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