O lugar (e em lugar) do método



La méthode est nécessaire pour la recherche de la verité.
Descartes, Règle IV, Règles pour la Direction de l'Esprit.

Dizer que sociologia, enquanto ciência, surge como um exercício de método, é o que se pode depreender da leitura das Regras do Método Sociológico (1895) que neste ano completa o seu centenário.1 E para compreendermos bem qual o lugar do método na sociologia e em disciplinas afins, ou o porquê de sua necessidade - para aludirmos a nossa epígrafe cartesiana -, não podemos deixar de enfrentar a questão do cientismo, particularmente em sua feição racionalista, que secularmente tem preocupado os cientistas sociais. Diante disto, procurarei, em primeiro lugar, nesta comemoração dos cem anos dessa seminal obra de Durkheim, esboçar um quadro, ainda que muito sumário, da inserção da sociologia nascente na tradição do racionalismo francês. Em segundo, examinarei alguns aspectos da implantação da postura metódica numa sociologia imaginada como uma verdadeira ciência natural dos fatos sociais. Finalmente, tentarei mostrar, dentro de uma perspectiva que entendo moderna, os limites do método, ou de como em determinadas circunstâncias da investigação sociológica ou ainda, mais precisamente, em sua acepção antropológica, o que poderia estar em seu lugar.

A questão do método sempre acompanhou a busca da verdade. E certamente não começa com René Descartes, mas o antecipa em séculos, se levarmos em conta o próprio pensamento grego, com o Organon de Aristóteles, ou, ainda, já na contemporaniedade de Descartes, o Novum Organum de Francis Bacon. E na linha empirista deste último ainda poderiamos mencionar, dentre vários outros expoentes do pensamento anglo-saxão, o grande lógico da indução, por sua vez contemporâneo de Comte, o inglês John Stuart Mill.

Com seu A System of Logic Ratiocinative and Inductive, precisamente em seu livro VI, Stuart Mill procura mostrar a possibilidade de aplicação da lógica indutiva, comprovadamente apta a dar conta dos fenômenos naturais, agora endereçada aos fenômenos sociais - ou "morais", em sua terminologia. O mesmo teor empirista, característico de seus antecessores, como Hobbes, Locke ou Hume, e do próprio Bacon, vemos como sendo a marca dessa mesma obsessão pelo método encontradiça na esteira de outra tradição: a racionalista. Isso significa que a necessidade de uma investigação norteada pelo método não é monopólio nem do pensamento empirista, nem do racionalista, uma vez que ambos o tomam como uma idéia organizadora sem a qual não se logrará impor ordem no mundo das coisas e dos conceitos: seja pela nítida separação cartesiana entre pensamento e extensão, pela qual se assegura a objetividade de um espírito debruçado sobre a realidade externa, a começar pela de seu próprio corpo; seja pela domesticação metódica de uma experiência descontaminada da presença perturbadora do sujeito cognoscente. Intelectualistas e empiristas, em que pese a diferença de caminhos, confluem na mesma busca de objetividade.

Durkheim, como não poderia deixar de ser, vai se filiar à tradição intelectualista/racionalista2 e tomar como fonte de inspiração para o seu vigoroso cientismo na programação da sociologia (perdida a jovem disciplina, em seu modo de ver, nas elocubrações metafísicas de Comte ou nas generalizações mais filosóficas do que sociológicas de um Spencer) a biologia, melhor dizendo, irá inspirar-se no organicismo biológico. Caberia perguntar porque não adotou a mathesis como paradigma de sua sociologia em lugar da biologia? Afinal de contas não estaria o pensamento cartesiano impregnado das matemáticas? Ou mesmo da física, tivesse ele tomado a via kantiana, afinal de contas tão inspiradora de sua sociologia das categorias do espírito ou da "consciência coletiva". Esta questão não será respondida aqui, infelizmente sequer será encaminhada, pois demandaria um rumo diferente do escolhido para essa exposição. Porém, vale mencioná-la como problema relevante, uma vez que sua simples menção vai nos permitir tematizar com mais vigor o biologismo presente na base da metodologia durkheimiana.

Mas antes de explorarmos essa dimensão tão determinadora do método durkheimiano, vale dizer alguma coisa sobre o conteúdo efetivamente racionalista de seu pensamento.

Desejo recordar o caráter eminentemente conceitual desse pensamento. A saber, o papel do intelecto não somente na construção do conhecimento, mas, sobretudo, como foco e objeto de indagação na pesquisa sociológica. Em outra oportunidade, pude discorrer um pouco sobre as "categorias do entendimento sociológico", quando procurei traçar o perfil do paradigma racionalista nas figuras de Durkheim, Lévy-Bruhl e Mauss (e, em sua feição atual, Lévi-Strauss e Louis Dumont).3 Estava procurando, então, mostrar a contribuição racionalista à matriz disciplinar da Antropologia Social. Agora pretendo unicamente registrar o papel desempenhado pelas categorias, portanto dos conceitos eminentes, i.e. aqueles que constituem a "ossatura da inteligência", na sugestiva metáfora durkheimiana.

Isso significa que o homem não pensa sem a ajuda de categorias. São elas, particularmente as eminentes, aquelas que organizam a realidade (social ou não) de modo a imprimir nela a inteligência do espírito, a seu modo pre-formador dessa mesma realidade. Como já se observou, trata-se de uma herança kantiana, via o criticismo de Renouvier e a lógica das representações de Hamelin (este último, por sinal, pouco lembrado...), herança essa consolidada no racionalismo de Durkheim. Será pois nessa tradição que devemos encontrar o lugar do método durkheimiano; e é na perspectiva desse lugar que podemos ler e interpretar Les Règles de la Méthode Sociologique (RMS).

***

Seguramente não vejo necessidade de expor a estrutura de as RMS, tão conhecida do público de ciências sociais é essa obra. Gostaria de me limitar apenas àquelas passagens do texto em que estão bem configuradas as questões centrais de meu argumento: a da objetividade, mercê do recurso ao método, e da organicidade do todo social, deconformidade com o apelo que faz ao paradigma biológico. Ambas as questões marcam - em meu modo de ver - o discurso naturalizante de Durkheim em seu esforço de conferir cientificidade à nova disciplina.

Selecionei, assim, umas poucas passagens, porém o suficiente para construir o argumento. Uma delas nos remete à antinomia objetividade/subjetividade, constitutiva do próprio conhecimento científico na medida em que o primeiro termo se sobrepões ao segundo. Escreve Durkheim no capítulo que dedica às regras relativas à observação dos fatos sociais que, como todos sabem, deveriam ser considerados como "coisas": "Com efeito, uma sensação é tanto mais objetiva quando o objeto, ao qual ela se dirige, tenha maior fixidez; pois a condição de toda objetividade está na existência de um ponto de sinalização, constante e idêntico, ao qual a representação possa ser dirigida e que permite eliminar tudo aquilo que seja variável, portanto subjetivo" (p. 44; o sublinhado é meu).4

Isso nos sugere que é precisamente a variação o vilão da estória, na medida em que ela implica o elemento individual, portanto variável, perturbador de qualquer tentantiva de generalização e, com ela, a de se alcançar o conhecimento objetivo. Assim, continua Durkheim, "Quando (...) o sociólogo tenta explorar uma ordem qualquer de fatos sociais, deve se esforçar de considerá-los por onde eles se apresentam isolados de suas manifestações individuais" (p. 45). Pois, como lograr um conhecimento sociológico - portanto, científico - do individual, do particular? Durkheim está muito consciente disso, portanto, quando afirma que "Por fora dos atos individuais que suscitam, os hábitos coletivos se exprimem sob formas definidas, regras jurídicas, morais, ditas populares, fatos de estrutura social, etc. Como essas formas existem de uma maneira permanente, (...) elas constituem um objeto fixo, um padrão (ètalon) constante que está sempre ao alcance do observador, e que não dá lugar às impressões subjetivas e às observações pessoais" (pp. 44- 45). Fica muito claro aqui o quanto a subjetividade do sujeito cognoscente e a individuação - e com ela a variação - do objeto cognoscível, surgem como questões que demandam sua neutralização pelo método, por algo que permita uma sorte de medida ou um parâmetro de avaliação, sem o qual torna-se inviável qualquer pretensão à cientificidade.

Inspira-se Durkheim, como já mencionei, numa ciência natural, porém não mais numa física, nem mesmo numa matemática, mas na biologia. A noção de organismo, de sua estrutura e das funções que seus diferentes órgãos desempenham, vão proporcionar uma boa metáfora da sociedade, de sua organização ou morfologia e de seu funcionamento ou fisiologia, como dessa mesma metáfora já Auguste Comte havia se valido. Porém o que separaria Durkheim de Comte viria a ser precisamente o privilegiamento do método pelo primeiro, como um procedimento capaz de eliminar tudo o que de filosófico ou de metafísico predominava na sociologia comteana, inviabilizando-a como ciência aos olhos de Durkheim. As próprias "regras relativas à constituição dos tipos sociais", propostas no capítulo IV das RMS, estão condicionadas por um biologismo a todo instante manifesto. E em sua constituição dos tipos sociais, suscetíveis de identificação e de descrição sociológica, recorre à noção biológica de espécie, tornando-a espécie social. Diz ele: "Esta noção de espécie social tem, aliás, a vantagem de nos fornecer um meio termo entre as duas concepções contrárias da vida coletiva que tem sido, durante longo tempo, partilhado pelos espíritos: quero dizer o nominalismo dos historiadores e o realismo extremo dos filósofos" (p. 76).5 Para esses filósofos, por exemplo, tipos sociais como tribos, cidades ou nações seriam apenas "combinações provisórias e contingentes sem realidade própria" (ibid), ao mesmo tempo em que para os historiadores esses mesmos fenômenos não poderiam ser objeto de saber científico.

E é contra essas duas modalidades de inferência sobre o social que Durkheim opõe o método, como a única via possível que conduza ao conhecimento científico. Para Durkheim a realidade social não pode ser objeto apenas de uma "filosofia abstrata e vaga ou de monografias puramente descritivas. Porém se pode escapar a essas alternativa desde que se reconheça que entre a multidão confusa de sociedades históricas e o conceito único, mas ideal, de humanidade, há intermediários: são as espécies sociais" (p. 77). E isto porque as instituições sociais (morais, jurídicas, econômicas, entre outras) "são infinitamente variáveis", lembra Durkheim; variações essas que, em verdade, jamais deixarão de se constituir em dados suscetíveis de apreensão pelo pensamento científico. E é precisamente aí que ele faz recair uma de suas mais pertinentes críticas a Comte, mostrando que o filósofo jamais soube reconhecer a existência das espécies sociais, tomando - por via de conseqüência - o progresso das sociedades como equivalente ao de um único povo: a humanidade. E no esboço de sua teoria das espécies sociais, Durkheim recorre naturalmente à sua conhecida classificação dos tipos sociais, seguindo, portanto, no limite, a orientação classificatória de uma morfologia de inspiração biológica (aliás, já presente na sociologia de Spencer, como o próprio Durkheim reconhece, em que pesem as duras restrições que não deixa de dirigir àquela classificação).


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