Legalidade e Eticidade nas Pequenas Causas



Uma das principais características dos Juizados de Pequenas Causas nos EUA é o fato de que numa parcela significativa das disputas que lhe são encaminhadas o cerne do conflito não é de ordem legal, mas sim do que seria mais adequado definir como questões de natureza ético-moral. Isto é, apesar das causas serem formalizadas em termos estritamente legais, onde a demanda é sempre expressa através de um valor monetário,2 caracterizando uma compensação financeira pela agressão ou perda sofrida, a principal motivação para dar início ao processo jurídico-legal está freqüentemente em outro lugar: seja na percepção de desrespeito a um direito não monetizável; ou ao que gostaria de designar como um insulto moral. Inspirando-me na Teoria da Ação Comunicativa (TAC) e na Ética do Discurso (ED) de Habermas (1981/84 e 1983/89), propus uma classificação de decisões judiciais e de acordos mediados no âmbito do Juizado, conforme o grau de satisfação das pretenções de validez normativa das soluções encontradas (Cardoso de Oliveira, 1989). Neste empreendimento, argumentei que uma preocupação com questões de eqüidade (fairness) teria sido não só importante para a realização desta classificação, mas se constituiria mesmo na condição necessária para uma compreensão adequada das disputas. No presente artigo, em homenagem aos 70 anos de Habermas, gostaria de explorar um pouco a fecundidade da TAC e da ED para a compreensão da dimensão ético-moral dos direitos demandados nos Juizados de Pequenas Causas. Isto é, gostaria de discutir a interface entre legalidade e eticidade, ou entre direitos e valores, e suas implicações para o equacionamento normativo (mas também cognitivo) das disputas em pauta. Assim, (a) vou fazer uma breve exposição dos procedimentos que caracterizam o equacionamento das causas nestes Juizados, chamando atenção para os espaços ou situações que permitem aos atores o engajamento em práticas de ação comunicativa, para concluir o artigo com (b) uma discussão sobre direito, insulto moral e eqüidade nas pequenas causas.

a) As Pequenas Causas (perda e agressão)

Em toda causa cível, ou não criminal, a fundamentação da demanda de ressarcimento por uma perda está associada ao desrespeito a um direito. Na tradição da Common Law, vigente nos EUA, este desrespeito a direitos é identificado com a quebra de um contrato ou com a ocorrência de um tort, i.é, um ato de responsabilidade civil.3 Mas em nenhuma das duas situações o desrespeito a direitos é confundido com uma agressão intencional à pessoa do cidadão ou da parte que sofreu as perdas, o que caracterizaria um ato criminal.4 Se, do ponto de vista das partes, a fronteira entre o desrespeito a direitos e a intenção de agressão nem sempre é muito clara nas causas cíveis em geral, a relação entre as idéias de desrespeito e agressão é particularmente significativa no âmbito das pequenas causas. Tal relação será tematizada na próxima seção, através da discussão do insulto moral como uma agressão civil (não criminal). No momento, gostaria de chamar atenção para a flexibilização das regras de construção/aceitação de evidências nos Juizados de Pequenas Causas e, conseqüentemente, a maior articulação entre as intuições morais dos atores e a definição jurídico-normativa das causas.

Ainda que os juízes sejam obrigados a seguir os procedimentos formais que caracterizam a adjudicação de disputas em todas as instâncias do sistema judiciário, o fato das partes poderem apresentar suas causas sem a assistência de um advogado nestes Juizados, impõe uma certa relativização dos procedimentos. Isto é, embora os casos tenham que ser caracterizados como contratuais ou de responsabilidade civil (tort) para que os juízes possam se pronunciar sobre os mesmos, a maneira de fazê-lo, assim como o tipo de evidência requerido para a avaliação do mérito da causa é menos rígido do que nas outras instâncias do sistema. Deste modo, acordos verbais são aceitos sem maiores problemas, desde que contem com a anuência da outra parte ou que as evidências apresentadas para caracterizar o comportamento desta fundamentem a existência de um entendimento de natureza contratual entre os litigantes. Da mesma forma, a definição "legal" dos termos do acordo ou das responsabilidades recíprocas, o que freqüentemente constitui o cerne da disputa, é feito com menor formalidade e dentro de uma perspectiva mais ampla no que concerne ao embasamento jurídico das ações dos atores.

De fato, não haveria porque desconfiar da existência de uma relação contratual quando um ator processa uma oficina alegando que seu carro não foi adequadamente consertado, quando um carpinteiro demanda pagamento por serviços prestados ao proprietário do imóvel onde o trabalho foi realizado, ou quando o comprador de um automóvel — adquirido de outra pessoa física — quer desfazer o negócio sob a alegação de que o automóvel estava em piores condições do que o vendedor o teria feito acreditar. Em todos estes casos a dificuldade está na definição dos termos do acordo/contrato e não na sua existência. Aqui, a falta de precisão característica dos acordos verbais se constitui no maior problema, e pode inviabilizar a fundamentação legal da demanda sempre que a alegação do autor da causa não fizer referência a um padrão de relacionamento (ou de obrigações) recorrente e institucionalizado em situações similares, ou sempre que a alegação não puder ser apoiada por evidências concretas: testemunho de terceiros, narração de "fatos" acordados entre as partes e etc. Ainda que as audiências judiciais imponham uma articulação entre formulações jurídicas e evidências factuais, a construção/apresentação destas últimas é feita de maneira mais flexível, e as partes têm oportunidade de se engajar em processos de ação comunicativa um pouco mais amplos e mais abertos.

Assim, além da possibilidade de relativização da forma de apresentação de evidências, como indiquei acima, a eventual inabilidade dos litigantes para expor suas causas — explicitando a seqüência de acontecimentos ou de ações que motivaram a disputa — com ênfase no raciocínio lógico-dedutivo privilegiado pelo Juizado, pode ser superada através das questões levantadas pelo juiz e da maior liberdade de expressão das partes,5 viabilizando a enunciação de esclarecimentos quanto ao mérito da causa. Isto é, mesmo sem conhecer os procedimentos legais para a apresentação de evidências, o litigante pode ter sucesso na apresentação de sua causa, relatando os "fatos"6 pertinentes de modo a permitir que o juiz forme uma opinião sobre o mérito jurídico da disputa. Por exemplo, fotografias retratando o conserto realizado na lataria de um automóvel ou o resultado da reforma feita numa residência podem ser apresentadas sem as formalidades normalmente requeridas para a introdução de evidências num tribunal e, se refletirem a realização de um serviço muito aquém do que seria razoável esperar em situações similares, podem vir a se constituir em provas "definitivas" a favor da demanda encaminhada pelo contratante dos respectivos serviços, independentemente da capacidade discursiva dos litigantes, que têm algum espaço para argumentar seus pontos de vista utilizando uma linguagem não especializada e acionando imagens do cotidiano.

Entretanto, o juiz não pode fugir da preocupação em estabelecer o mérito jurídico da causa, através da avaliação da responsabilidade jurídica do querelado, o que impõe um filtro significativo aquilo que pode ser normativa ou legalmente tematizado no âmbito de uma audiência judicial. Além deste filtro limitar, como vimos, o universo de causas legítimas àquelas que podem ser expressas na linguagem dos contratos ou dos torts, e nas quais a definição da agência que provocou o problema pode ser fundamentada, no que concerne aos acordos/contratos o juiz só pode considerar aqueles cuja pretensão de serem legalmente sancionados pode ser resgatada. Isto é, aqueles acordos para os quais existe alguma previsão legal, ou para os quais seria juridicamente razoável esperar que houvesse uma, o que significa que a demanda do autor da causa tem que encontrar respaldo em algum padrão de relação ou de comportamento legalmente sancionado.

É por esta razão que no caso dos "Ex-co-inquilinos", analisado por mim em outra oportunidade (Cardoso de Oliveira, 1989:308-313), a causa encaminhada por aquele que havia deixado a residência é caracterizada pelo juiz como uma demanda totalmente sem sentido, não apenas do ponto de vista legal, mas também no que concerne ao seu equacionamento lógico. Além de cobrar uma diferença referente ao pagamento de contas de telefone e de eletricidade no valor de 170 dólares, sobre a qual os litigantes entraram rapidamente em acordo durante a audiência, o autor estava reivindicando de seu ex-coinquilino o ressarcimento da metade do "depósito de segurança" que ambos haviam pago ao proprietário do imóvel no momento em que assinaram o contrato de locação. De fato, de acordo com a lei o proprietário do imóvel deve devolver o "depósito" ao inquilino, no momento em que termina a locação, desde que o inquilino não tenha provocado estragos além do desgaste esperado pela utilização "normal" da propriedade. Acontece que, como o imóvel não havia sido desocupado, o proprietário não tinha nenhuma obrigação de devolver o "depósito", e não há fundamento jurídico para sustentar a cobrança ao ex-co-inquilino. Pois este, em princípio, também seria credor do proprietário, juntamente com o autor da causa.

Embora o autor não estivesse fazendo nenhuma cobrança ao proprietário, mas ao seu ex-coinquilino com quem tinha um acordo informal — não reconhecido pelo tribunal —, o juiz fazia questão de interpretar a demanda como se a cobrança estivesse sendo feita ao proprietário sem que houvesse qualquer motivo objetivo para legitimar tal cobrança, tornando a causa totalmente sem sentido.7


Página seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.