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Quando fazer é refletir. (Sobre a importância do ensino de Filosofia na formação do antropólogo) (página 2)

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

 

Pois são exatamente estas duas caracterísicas da filosofia, isto é, (a) ter o pensamento ou as idéias como foco de investigação e (b) a preocupação com a sustentação ou coerência de seu próprio discurso, que me parecem particularmente fecundas para o "fazer" antropológico. Diferentemente da filosofia, a antropologia é uma disciplina que só se realiza através da pesquisa empírica. Entretanto, como é bem sabido entre os iniciados, as práticas, situações e/ou contextos sociais estudados pelo antropólogo só se tornam intelegíveis à luz das representações dos "nativos". E é no esforço de compreensão destas representações, muitas vêzes vivido como uma experiência de confrontação no plano das idéias ou dos conceitos, que a dimensão reflexiva da pesquisa antropológica revela toda a sua relevância e potencial de elucidação.

É aqui também que o "fazer" filosófico e sua atenção para com a coerência interna do discurso fala mais de perto para a experiência do antropólogo. Neste sentido, a importância atribuida pelos antropólogos ao "ponto de vista nativo", assim como a preocupação em desvendar a "lógica interna do sistema" (nativo), constituem noções/orientações básicas amplamente compartilhadas na comunidade de pesquisadores.

O que eu gostaria de enfatizar no momento, e que me parece uma contribuição central da filosofia para esta área de confluência com a antropologia, é a necessidade de consideração do que, na falta de um termo melhor, eu utilizaria a noção de internalidade2 do pensamento ou das representações, das visões de mundo, dos jogos de linguagem e, porque não, das formas de vida. Através desta noção eu gostaria de chamar a atenção não só para a preocupação com a coerência interna do discurso filosófico mas, sobretudo, para a necessidade de se qualificar esta coerência que não deve ser apenas lógica, pois deve satisfazer as demandas de sentido cuja verbalização seria razoável esperar de um interlocutor (real ou virtual) cognitivamente engajado nas propostas do autor, e que se empenhasse em conseguir entender adequadamente as implicacões do discurso em pauta. Isto é, o discurso filosófico não pode se contentar em ser apenas portador de algum sentido, mas tem que manter a pretensão de ser capaz de persuadir seus interlocutores quanto a plausibilidade dos argumentos apresentados em relação ao problema substantivo que norteia a discussão.

Isto não significa que os interlocutores não possam divergir do discurso apresentado. De fato, eles com freqüência o fazem. O que é importante assinalar aqui é que um discurso minimamente consistente e digno de arguição ou de questionamentos não pode ser identificado como uma mera abstração (vazia de conteúdos), nem como portador de um sentido lógico mas arbitrário, ainda que não contraditório. Em última instância, para que o discurso filosófico possa se manter enquanto tal ele tem que ser visto e apreendido como sendo portador de ensinamentos, ainda que não consigamos nos identificar com as propostas do autor. Desta maneira, o aprendiz de filosofia pode e deve aprender com Descartes sem ter necessáriamente que adotar o método cartesiano, pode e deve aprender com Hegel sem que isto faça dele necessáriamente um dialético ou Hegeliano, pode e deve aprender com Frege ou Russell sem que isto o torne necessáriamente um lógico, pode e deve aprender com Pierce ou Dewey sem que isto necessáriamente o transforme num filósofo pragmatista e etc...

Chamo a atenção para o fato de que não estou propondo nenhum tipo de ecletismo ao insitir na possibilidade de se aprender com tradições filosóficas diferentes.

Longe disto. Assim como o antropólogo não pode abrir mão de sua origem cultural e não se transforma em "nativo", o aprendiz de filosofia, ou o filósofo, terá sempre uma identidade intelctual com inclinações mais fortes e afinidades mais próximas que darão o balizamento mais amplo do seu modo de filosofar. Não obstante, o diálogo com tradições diversas tem grande potencial de enriquecer ou de elucidar nossas idéias, e esta é uma experiência através da qual a antropologia talvez tivesse algo a ensinar à filosofia. Neste sentido, aproveito a oportunidade para salientar que, do meu ponto de vista, uma das lições mais difíceis e fecundas da vida acadêmica é aquela que nos ensina a aprender com aqueles de quem discordamos. Isto é, inclusive com aqueles de quem discordamos agora e com quem provávelmente discordaremos sempre. Com freqüência, na academia, a necessidade de se apurar os ouvidos só é percebida quando o empenho em aprimorar a fala ou a escrita já vem se desenvolvendo a algum tempo.

Contudo, com a mesma freqüência, o esforço necessário para transmitir conhecimentos se torna menor (ou de mais fácil realização) do que aquele que empreendemos quando se trata de captar ensinamentos.

De qualquer forma, é importante reter a idéia de que a preocupação com a internalidade do pensamento (representações, formas de vida etc...) implica em ter como perspectiva aprender ensinamentos. Deste modo, me parece que os ensinamentos que transformam o aprendiz em filósofo não se limitam àqueles relativos à compreensão dos temas, problemas, interpretações e programas filosóficos apreendidos no diálogo com a tradição, ou seja, ao que os filósofos pensam, mas incluiriam também a apreensão de como eles pensam ou fazem filosofia. Da mesma maneira, gostaríamos de insistir que a demanda de sentido da perspectiva de apreender ensinamentos implica na assunção de uma atitude crítica, não passiva, em relação ao(s) discursso(s) filosófico(s). Pois, qualquer aprendizado demanda um mínimo de persuasão ou convencimento, cuja efetivação tem como consequência o desenvolvimento da capacidade de defesa (com boas razões) do ponto de vista apreendido. E este aspecto do processo marcaria bem a diferença entre a experiência de apreender ensinamentos e a idéia de absorver informações.

Neste sentido, comparando a situação do antropólogo com a do filósofo, eu diria que enqanto este se preocupa com a internalidade de um discurso com o qual normalmente compartilha muitas (senão as mesmas) pressuposições culturais, o antropólogo tem que fazer um esforço incial maior para apreender a internalidade de um discurso cuja distância cultural é por vezes de tal ordem que o pesquisador, num primeiro momento, tem dificuldades de lhe atribuir qualquer sentido lógico. Entretanto, no que concerne às demandas do interprete/pesquisador quanto a satisfação daquela segunda dimensão de sentido, àquela que implica no aprendizado de ensinamentos, filósofo e antropólogo encontram-se na mesma situação.

A relevância deste tipo de aprendizado ou treinamento para a antropologia está no respeito à internalidade da interpretação, seja ela filosófica, antropológica, ou produto de um saber não especializado (e.g., "o ponto de vista nativo"). Como vimos, o trabalho antropológico combina pesquisa empírica com reflexão, observação com participação, e na dimensão empírica combina a investigação das práticas (comportamentos) sociais com a pesquisa das representações coletivas para desvendar o significado dos eventos e das situações que têm lugar na sociedade (ou grupo social) estudada, assim como as características de sua estrutura social.

Deste modo, embora o antropólogo não possa dispensar a consideração de uma visão externa, ou de seu "olhar de fora", como diria Lévi-Strauss (1962), esta não pode desconsiderar, ou mesmo subordinar, o esforço de compreensão interna das formas de vida em questão. Isto não quer dizer que os "nativos" têm sempre razão, ou que seu ponto de vista não possa ser criticado. De acordo com a noção de internalidade que explicitamos acima, a condição mesmo de apreensão do discurso filosófico ou do ponto de vista nativo está num tipo de cobrança de sentido por parte do interlocutor ou do estudioso, cuja realização não é viável sem a manifestação de dúvidas e questionamentos. O antropólogo não só pode, como com freqüência deve, apresentar interpretações alternativas ao ponto de vista nativo em relação ao problema em pauta. O que o antropólogo não pode fazer sem correr o risco de não compreender seu objeto de estudo, e/ou sem abdicar do poder de persuasão de sua interpretação, é apresentar uma etnografia que não revele qualquer tipo de aprendizado etnográfico a partir do diálogo com o ponto de vista nativo. Numa monografia bem sucedida, o ponto de vista nativo sempre deixa sua marca na interpretação do antropólogo. Isto é, ao contribuir para a constituição mesmo dos fatos etnográficos, o discurso nativo revela significados que são necessáriamente incorporados à visão do pesquisador para que seu trabalho chegue a bom termo.

Um bom exemplo da fecundidade de se considerar a internalidade do discurso nativo, ou da forma de vida em estudo, no "fazer" antropológico seria o trabalho de Dumont sobre a Índia (1980). Depois de colocar sua visão "em perspectiva" e de se expor ao ponto de vista nativo, o autor argumenta convincentemente que o sistema de castas, e o princípio hierárquico que o orienta, não podem ser adequadamente entendidos a partir das idéias de estratificação social e da correspondente gradação dos grupos sociais, no caso as castas, numa escala crescente ou decrescente de poder e autoridade. Embora a luta pelo poder tenha o seu papel na organização das castas, Dumont mostra como o sistema privilegia as relações das castas com o TODO, ao invés das relações que estes grupos manteriam entre si, e enfatiza a idéia de interdependência. Deste modo, a partir da articulação do princípio hierárquico com o valor de pureza, através da oposição puro/impuro, o sistema de castas se carcterizaria por uma hierarquia de dignidade (e não de poder ou autoridade) onde o rei estaria subordinado ao sacerdote (o Brâmane), e se constituiria num sitema de relações em oposição à noção de sistema de elementos que marcaria a visão ocidental, impregnada pela ideologia individualista.

O exemplo da etnografia de Dumont é particularmente interessante porque, além de demonstrar que o autor aprendeu ensinamentos no diálogo com os nativos sem abrir mão de uma interpretação própria, viabiliza a relativização da idéia de indivíduo enquanto valor, frequentemente naturalizada na tradição ocidental, inclusive nas ciências sociais, e se constitui na primeira interpretação consistente do sistema de castas enquanto fenômeno englobador e como instituição pan-indiana.

Por outro lado, a importância do ensino de filosofia na formação do antropólogo não termina ai. Assim como a atividade de pesquisa antropológica implica na conjugação de uma dimensão empírica com outra reflexiva, no aprendizado da perspectiva antropológica, através da leitura dos clássicos da disciplina, o referencial empírico é apenas uma das dimensões envolvidas no "diálogo" então estabelecido.

Dada a importância da discussão conceitual na compreensão dos fatos etnográficos, e a característica totalizadora da interpretação antropológica (Tambiah, 1985:1-13), a internalidade da análise desenvolvida pelo antropólogo também deve ser considerada.

Neste sentido, o aprendiz de antropologia tem que assumir uma posição similar a do aprendiz de filosofia, e se expor às idéias dos clássicos para apreender não só o que eles pensam mas também o como eles pensam.

Finalmente, gostaria de enfatizar o carater exploratório das reflexões apresentadas aqui, as quais, ainda que tenham sido elaboradas a partir de uma perspectiva exclusivamente antropológica, pretendem ter captado algo do "fazer" filosófico que seja significativo e iluminador para o "fazer" antropológico. Entretanto, para não deixar de dizer nada sobre a contribuição potencial da antropologia neste debate com a filosofia, acredito que o equivalente da internalidade filosófica seria a consideração das implicações da pluralidade antropológica para o discurso filosófico.

Mas esta seria outra discussão, a ser travada noutra oportunidade, e cujo enfrentamento talvez fosse argumentado de forma mais adequada se desenvolvido por um filósofo.

Referências

AUSTIN, J. 1990 Quando Dizer é Fazer. Palavras e Ação. Porto Alegre: Artes Médicas.

CARDOSO DE OLIVEIRA, L. 1993 "A Vocação Crítica da Antropologia", em Anuário Antropológico 90. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, pp. 67-81.

CARDOSO DE OLIVEIRA, R. 1988 "A vocação meta-disciplinar da Etnografia", em R. Cardoso de Oliveira Sobre o Pensamento Antropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, MCT, CNPq, pp. 161-180.

DELEUZE, G. & F. GUATTARI 1992 O Que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34.

DUMONT, L. 1980 Homo Hierarchicus (Comlete Revised English Edition). Chicago: The University of Chicago Press.

GEERTZ, C. 1983 "The Way We Think Now: Toward an Ethnography of Modern Thought", em C. Geertz Local Knowledge. New York: Basic Books, Inc., pp. 147-163.

HABERMAS, J. 1989 "A Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete", em J. Habermas Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, pp. 17-35.

LÉVI-STRAUSS, C. 1962 "A crise moderna da Antropologia", em Revista de Antropologia 10 (1 e 2).

TAMBIAH, S. 1985 "Introduction: From the General to the Particular and the Construction of Totalities", em S. Tambiah Culture, Thought, and Social Action. Cambridge, MA.: Harvard University Press, pp. 1-13.

WITTGENSTEIN, L. 1979 Investigações Filosóficas. São Paulo: Abril Cultural.

Notas

1. Trabalho apresentado na mesa redonda "É Necessária a Filosofia para Outros Cursos da Universidade?", realizada durante a IV Semana Universitária da UnB, em abril de 1993.

Pensando no carater interdisciplinar do evento, não resisti a tentação de parodiar o título da obra clássica de Austin, "Quando Dizer é Fazer...", recentemente traduzida para o português (1990).

A paródia me pareceu apropriada não só por retratar bem um aspecto central da pesquisa antropológica, mas também porque o livro de Austin tem tido grande penetração na comunidade antropológica e esta recepção se constitui num bom exemplo da fecundidade do diálogo entre as duas disciplinas.

2. A noção de internalidade tem uma longa trajetória no pensamento filosófico ocidental, especialmente na tradição Continental, e, contemporaneamente, tem sido foco de debates estimulantes no âmbito da História da Ciência. Para uma discussão interessante sobre a fecundidade destes debates para a formulação de uma proposta de "etnografia da ciência", a partir de uma perspectiva antropológica, ver o trabalho de R. Cardoso de Oliveira (1988:168- 180).

Prof. Luís Roberto Cardoso de Oliveira
lcardoso[arroba]unb.br



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