Direitos, Insulto e Cidadania (Existe Violência Sem Agressão Moral?)



Brasília, 2005

Em vista do título destas jornadas,1 não resisti a tentação de fazer uma provocação sobre a noção de violência: pode-se falar em violência quando não há agressão moral? Embora a violência física, ou aquilo que aparece sob este rótulo, tenha uma materialidade incontestável, e a dimensão moral das agressões (ou dos atos de desconsideração à pessoa) tenha um caráter essencialmente simbólico e imaterial, estou tentado a dizer que a objetividade do segundo aspecto ou tipo de violência encontra melhores possibilidades de fundamentação do que a do primeiro. Aliás, arriscaria dizer que na ausência do segundo ("violência moral"), a existência do primeiro ("violência física") seria uma mera abstração. Sempre que fala-se em violência como um problema social tem-se como referência a idéia do uso ilegítimo da força, ainda que freqüentemente este aspecto seja tomado como dado, fazendo com que a dimensão moral da violência seja pouco elaborada e mal compreendida, mesmo quando esta constitui o cerne da agressão do ponto de vista dos atores que a sofrem. Pois é exatamente a esta dimensão do problema que vou dirigir minha atenção na discussão sobre a relação entre direitos, insulto e cidadania.

Nos últimos anos tenho me preocupado com a compreensão de atos ou eventos de desrespeito à cidadania que não são captados adequadamente pelo judiciário ou pela linguagem dos direitos, no sentido estrito do termo. Assim, tenho procurado apresentar o conteúdo destes atos por meio da noção de insulto moral, como um conceito que realça as duas características principais do fenômeno: (1) trata-se de uma agressão objetiva a direitos que não pode ser adequadamente traduzida em evidências materiais; e, (2) sempre implica uma desvalorização ou negação da identidade do outro.

Minha primeira e principal fonte de inspiração para formular a noção de insulto foi a categoria ou idéia-valor vigente no Brasil e expressa a partir da dicotomia consideração/desconsideração. Tal categoria remete a um tipo de atitude importante na definição das interações sociais e articula-se com pelo menos três tradições de reflexão sobre o tema, as quais têm marcado o desenvolvimento do meu trabalho: (a) a discussão em torno da noção hegeliana de Anerkennung ou reconhecimento e da sua ausência expressa na idéia de Mißachtung, retomada [contemporaneamente] nos trabalhos de Taylor (1994) e Honneth (1995); (a) o debate francês sobre la considération (e seu oposto, la déconsidération), que remonta a Rousseau e que alguns desdobramentos recentes diretamente relacionados ao meu foco de interesse foram reunidos numa publicação de Haroche e Vatin (1998), onde o tratamento com consideração é definido como um direito humano; e, (c) as discussões associadas à noção maussiana de dádiva ou reciprocidade, assim como têm sido articuladas pelo grupo da Revue du M.A.U.S.S., especialmente nos trabalhos de Caillé (1998) e Godbout (1992; 1998).2

Deste modo, minhas pesquisas têm tido como foco a relação entre as idéias de respeito a direitos plenamente universalizáveis, tendo como referência o indivíduo genérico, e de consideração à pessoa do cidadão, portador de uma identidade singular.

Tenho examinado esta relação em três contextos etnográficos distintos — no Brasil, Quebec e Estados Unidos — através da análise de conflitos e de eventos políticos que envolvem afirmação de direitos ou demandas por reconhecimento. A articulação entre as dimensões legal e moral dos direitos ou da cidadania ganha então o primeiro plano nos três países onde realizei pesquisas até o momento. Tanto nos processos de resolução de disputas no âmbito dos Juizados de Pequenas Causas em Massachusetts, como no debate público sobre a soberania do Quebec no Canadá, ou nas discussões sobre direitos quando da elaboração da Constituição de 1988 e nas reformas que se seguiram no processo de redemocratização do Brasil, as idéias de respeito e consideração mostraramse fecundas para a compreensão dos fenômenos. O insulto moral revelou-se um aspecto importante dos conflitos nos três contextos etnográficos e, em vista de sua aparente "imaterialidade", tendia a ser invisibilizado como uma agressão que merecesse reparação.

Apesar de o insulto moral aparecer com características próprias e implicações diversas em cada contexto etnográfico, está freqüentemente associado à dimensão dos sentimentos, cuja expressão desempenha um papel importante em sua visibilização.

Neste sentido, o material etnográfico estimulou indagações sobre a expressão ou evocação dos sentimentos, e da mobilização das emoções dos atores, na apreensão do significado social dos direitos cujo exercício demanda uma articulação entre as identidades dos concernidos. Trata-se de direitos acionados ou demandados em interações que não podem chegar a bom termo por meio de procedimentos estritamente formais, e requerem esforços de elaboração simbólica da parte dos interlocutores para viabilizar o estabelecimento de uma conexão substantiva entre eles, e permitir o exercício dos respectivos direitos (Cardoso de Oliveira 2004a: 81-93). A atitude de distanciamento ou a ausência de deferência ostensiva situadas no pólo oposto desta experiência de conexão, quando percebidas como constituindo um ato de desconsideração, provocam o ressentimento ou a indignação do interlocutor, característicos da percepção do insulto.

Neste empreendimento, a fenomenologia do fato moral assim como proposta por Strawson, acionando a experiência do ressentimento, parece-me particularmente apropriada para caracterizar o lugar dos sentimentos na percepção do insulto, dando visibilidade a este tipo de agressão, e sugerindo uma distinção importante entre ato e atitude ou intenção para a apreensão do fenômeno: "…Se alguém pisa na minha mão acidentalmente, enquanto tenta me ajudar, a dor não deve ser menos aguda do que se ele a pisa num ato de desconsideração ostensiva a minha existência, ou com um desejo malévolo de me agredir. Mas deverei normalmente sentir, no segundo caso, um tipo e um grau de ressentimento que não deverei sentir no primeiro…" (Strawson 1974:5) Ainda segundo Strawson, o ressentimento sentido pela vítima neste tipo de situação provocaria um sentimento de indignação moral em terceiros que tivessem presenciado o ato, e capitado a atitude ou a intenção do agressor, dando assim substância ao caráter objetivo da agressão. Evidentemente, quando falamos em sentimentos no plano moral dirigimo-nos aqueles sentimentos que são socialmente ou intersubjetivamente compartilhados.

O insulto aparece então como uma agressão à dignidade da vítima, ou como a negação de uma obrigação moral que, pelo menos em certos casos, significa um desrespeito a direitos que demandam respaldo institucional. Tomada como o resultado da transformação da noção de honra na passagem do regime antigo para a sociedade moderna (P. Berger e C. Taylor), a dignidade é caracterizada como uma condição dependente de expressões de reconhecimento, ou de manifestações de consideração, cuja negação pode ser vivida como um insulto pela vítima, e percebido como tal por terceiros. Esta formulação tem sido aprimorada por meio do diálogo com abordagens que têm como foco a dádiva ou relações de reciprocidade (veja La revue du M.A.U.S.S), o qual permitiu-me caracterizar direitos que dão precedência ao elo social, e colocam em segundo plano a dimensão dos interesses individuais ou a idéia de direitos intrínsecos ao indivíduo. Assim, sugiro que o reconhecimento poderia ser concebido como a outra face do hau do doador na elaboração de Marcel Mauss sobre as trocas recíprocas; e argumento que a sua expressão constituiria uma das três dimensões temáticas presentes em quase todos os conflitos que desembocam no judiciário: "(1) a dimensão dos direitos vigentes na sociedade ou comunidade em questão, por meio da qual é feita uma avaliação da correção normativa do comportamento das partes no processo em tela; (2) a dimensão dos interesses, por meio da qual o judiciário faz uma avaliação dos danos materiais provocados pelo desrespeito a direitos e atribui um valor monetário como indenização à parte prejudicada, ou estabelece uma pena como forma de reparação; e, (3) a dimensão do reconhecimento, por meio da qual os litigantes querem ver seus direitos de serem tratados com respeito e consideração sancionados pelo Estado, garantindo assim o resgate da integração moral de suas identidades" (Cardoso de Oliveira 2004b: 127).

A caracterização do insulto como uma agressão moral, de difícil tradução em evidências materiais, trouxe à tona uma dimensão dos conflitos freqüentemente mal equacionada pelos atores em sociedades complexas, modernas (contemporâneas), onde vigora o direito positivo. Seja devido à grande dose de impermeabilidade do judiciário a demandas de reparação por insulto, como demonstra minha análise de pequenas causas nos EUA (Cardoso de Oliveira 1989; 1996a; 1996b; 2002); seja devido à dificuldade de formular um discurso adequado para fundamentar direitos não universalizáveis, como sugere a resistência do Canadá anglófono às demandas por reconhecimento do Quebec como uma sociedade distinta (Cardoso de Oliveira 2002); ou ainda devido aos constrangimentos para a universalização do respeito a direitos básicos de cidadania no Brasil, em vista da dificuldade experimentada pelos atores em internalizar o valor da igualdade como um princípio para a orientação da ação na vida cotidiana (Idem).

A propósito, esta dificuldade brasileira induziu-me a propor uma distinção entre esfera e espaço públicos, como duas dimensões da vida social, vigentes nas sociedades modernas de uma maneira geral, mas que no Brasil teriam a peculiaridade de apresentarem-se de forma desarticulada. Enquanto a esfera pública englobaria "o universo discursivo onde normas, projetos e concepções de mundo são publicizadas e estão sujeitas ao exame ou debate público", à la Habermas, o espaço público é caracterizado "como o campo de relações situadas fora do contexto doméstico ou da intimidade onde as interações sociais efetivamente têm lugar" (Cardoso de Oliveira 2002:12). Esta noção de espaço público teria um campo semântico em alguma medida similar ao definido por DaMatta em relação ao mundo da rua, mas procuraria realçar um padrão de orientação para a ação que combinaria a perspectiva da impessoalidade com uma atitude hierárquica frente ao mundo, trazendo para o cotidiano dos atores o que Kant de Lima define como "paradoxo legal brasileiro" (1995: 56-63). O que saltaria aos olhos no caso brasileiro, seria a contradição entre a hegemonia das idéias liberais em prol dos direitos iguais na esfera pública, e a dificuldade encontrada pelos atores em atuar de acordo com estas idéias no espaço público, onde a visão hierárquica freqüentemente teria precedência.


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