Como sugere o tema deste painel, as discussões sobre direitos humanos costumam estar articuladas com debates relativos a questões de cidadania, especialmente se tomarmos como referencial privilegiado a versão moderna da discussão, a partir da "Bill of Rights" Inglesa de 1689, da Declaração da Independência dos EUA em 1776, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na França em 1789 ou da Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamada pela Organização das Nações Unidas em 1948. Neste sentido a noção de direitos humanos remete a idéia de direitos civis (Downing & Kushner, 1988) que, por sua vez, está freqüentemente associada às idéias correlatas de direitos políticos e de direitos sociais2. Poder-se-ia dizer que, se os direitos humanos remetem, inicialmente, a uma concepção onde o mundo está dividido em Estados-Nação que devem respeitar os direitos de seus cidadãos, sugere também a idéia de uma cidadania mundial que seria consubstanciada na institucionalização de direitos universais, compartilhados por todos os cidadãos do mundo.
Desta perspectiva, a antropologia e os antropólogos têm se destacado, tanto no Brasil como no exterior, particularmente no esforço de compreensão e defesa dos direitos das minorias sociais (étnicas, religiosas, de gênero etc...), freqüentemente usurpados pelos grupos sociais dominantes aos quais estão vinculadas/subordinadas. Vale a pena lembrar que, se nem sempre todos os direitos humanos listados na Declaração das Nações Unidas se aplicam (i.é, podem ser reivindicados legitimamente), como o de "autodeterminação", por exemplo, que faz sentido no caso das sociedades indígenas brasileiras, mas que não se aplicaria no caso do "movimento feminista" ou de grupos étnico-religiosos (como os judeus) plenamente integrados à sociedade nacional, a universalidade de alguns direitos pode ser concebida de forma mais radical. É o caso do direito à "manutenção da identidade cultural" ou de práticas sócio-culturais singulares (mas nem por isto idiossincrásicas) sobre o qual os antropólogos têm insistido tanto (e.g., cultos afro-brasileiros). Aliás, este direito tem uma amplitude maior do que normalmente se pensa, na medida em que não precisa ser necessariamente restrito a questões (ou diferenças) de ordem cultural (em sentido estrito), mas que poderia ser legitimamente aplicado no âmbito de práticas locais, inseridas em contextos sócio-culturais mais amplos. Pois, apesar do exercício destes direitos não ferir os direitos de outros (ou mesmo questionar aqueles princípios apresentados como universais pelas Nações Unidas), são dificilmente reconhecidos (e às vezes sistematicamente coibidos) por não estarem formalmente normatizados nas leis do Estado. Como por exemplo, algumas práticas informais de resolução de disputas que se dão à margem do sistema jurídico constitucionalmente instituído (e.g., mediação comunitária nos EUA).
Entretanto, não é sobre a falta de respeito a estes direitos que eu gostaria de me deter aqui. Assim como também não pretendo fazer uma avaliação geral sobre a situação dos direitos humanos (civis, políticos e sociais) no Brasil de hoje, onde apesar de grandes dificuldades em algumas áreas (como no caso dos meninos de rua e da implementação dos direitos da criança) não há dúvidas de que os progressos recentes foram muitos (e.g., instituição do Habeas-data, do salário desemprego, do voto dos analfabetos etc...). Gostaria apenas de fazer algumas reflexões, de uma perspectiva antropológica, sobre uma questão que me parece central para a compreensão de nossas dificuldades no equacionamento dos direitos e da cidadania. Em poucas palavras: a nossa tendência de transformar direitos em privilégios através de uma orientação sistemática em direção à privatização do espaço público.
Se a indicação de nossas dificuldades quanto à aplicação das leis e/ou quanto ao reconhecimento dos "direitos" legalmente estabelecidos tem sido moeda corrente no discurso de cientistas sociais, sindicalistas, políticos e empresários, foram os antropólogos, e dentre eles especialmente DaMatta, que chamaram atenção para a importância das nossas motivações culturais que contribuem para a permanência ou cristalização deste estado de coisas. Partindo da crítica antropológica à identidade entre o conceito de indivíduo enquanto ser biológico (universal) e a noção de indivíduo enquanto categoria sociológica, como o sujeito normativo das instituições e, portanto, como uma categoria moralmente construída e historicamente dada (ver Dumont, 1986), assim como do fato de que a literatura sobre cidadania tem como referencial esta segunda acepção da noção de indivíduo, cujo correlato é a nação, DaMatta (1991a) chama a atenção para o fato de que no Brasil a lógica moderna e universalista do indivíduo convive com uma lógica tradicional que enfatiza a importância da relação, da preeminência do todo sobre as partes e da hierarquia. Enquanto a primeira destas lógicas estaria associada ao espaço público, da rua, das leis e das relações impessoais, a segunda estaria vinculada ao espaço privado, da casa, da família e das relações pessoalizadas. Da mesma forma, enquanto a lógica do indivíduocidadão tem na sua essência um caráter nivelador e enfatiza as idéias de autonomia, independência e igualdade, a lógica da relação admite contrastes, gradações e complementaridades.
Ainda segundo DaMatta, o estilo ou tradição colonial do Estado Brasileiro, que tem sido apontado por vários autores, e caracterizado através da criação de leis e instituições, como instrumento de progresso, mudança e controle (1991a:82), contribui para o fortalecimento da lógica da relação em oposição à impessoalidade das leis que retrata a face moderna da organização social brasileira. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que o processo de autonomização da política, que, de acordo com Weber, -- juntamente com a autonomização das demais esferas culturais em relação ao campo religioso --, marcaria a entrada das sociedades ocidentais na modernidade, teria se dado no Brasil através da separação do Estado. Pois é esta distância entre sociedade e Estado no Brasil que, no contexto da predominância da lógica da relação, daria um sentido negativo à noção de cidadania, marcada, em última instância pelos deveres, obrigações e, enfim, pelo controle do Estado. Ao invés de serem lidas como garantidoras de liberdade e direitos para os cidadãos, as leis seriam vistas como limitadoras do espaço social dos atores e como instrumentos de manipulação e poder. Assim, a noção de cidadania brasileira engendraria desvios para cima e para baixo, onde um estado de subcidadania no âmbito da rua seria concomitante a um estado de supercidadania no universo da casa e da família (DaMatta, 1991a: 100). A "sujeição" a deveres, num caso, sendo compensada pelo acesso a privilégios no outro.
É este quadro que me faz pensar em processos de privatização do espaço público cujas implicações eu gostaria de começar a discutir agora, e cuja identificação já teria sido sugerida pelo próprio DaMatta em sua contribuição ao ciclo de debates sobre cidadania recentemente promovido pelo Bamerindus:
"...as relações pessoais...têm muito mais peso que as leis. Assim, entre a lei impessoal que diz não pode e o amigo do peito que diz 'eu quero`, ficamos com o amigo do peito e damos um jeito na lei. Entre nós, é o conjunto das relações pessoais, nascidas na família e na casa, que tende a englobar -- em geral perverter o mundo público e não o contrário... (1991b:17).
Ao dar "um jeito na lei" invertemos a situação de subcidadãos para a condição de supercidadãos e, freqüentemente, transformamos direitos em privilégios. Isto é, garantimos o acesso a serviços, benefícios ou oportunidades através de mecanismos que não são passíveis de legitimação no âmbito da lógica universalista e niveladora da cidadania e dos direitos iguais, característica da esfera pública. Nestas circunstâncias, a realização de nossos objetivos requer a utilização da lógica da relação e da distinção para substantivar a condição especial (superior e privilegiada) que reivindicamos no processo.
A utilização de tais mecanismos pode ser identificada em praticamente todas as esferas da vida social e poderíamos dar inúmeros exemplos de situações onde a lógica da distinção prevalece. Desde situações sem maiores conseqüências em termos de justiça social -- como aquelas em que "furamos" a fila no banco utilizando-nos dos favores de um amigo bem localizado na fila para fazer nossas transações bancárias, ou quando recorremos a um parente que trabalha numa repartição pública para agilizar o processo de resolução de nosso problema3 -- até aquelas circunstâncias onde uma relação é acionada para a obtenção de benefícios cujo acesso privilegiado pode resultar em maiores iniqüidades sociais: e.g., o empreguismo, o nepotismo, os subsídios não justificados, a contratação de obras públicas através de laços pessoais com o empreiteiro etc...
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