Democracia, hierarquia e cultura no Quebec



A relação entre democracia e hierarquia tem sido objeto de reflexões de diversos matizes. Seja para tematizar desigualdades sociais em sentido estrito, como aquelas derivadas de diferenças no acesso à renda e à educação, ou para contrastar o ideal igualitário, característico das sociedades de ideologia individualista, com o princípio hierárquico, tomado como um valor que prevalece em sociedades de ideologia holista, tal como a Índia (Dumont: 1992). Por exemplo neste contexto, apesar do Brasil ser freqüentemente considerado um país injusto devido às diferenças sociais em sentido estrito, na medida em que exibe uma das piores distribuições de renda do planeta, vários autores têm chamado atenção para a importância da hierarquia e/ou do pessoalismo entre nós (DaMatta: 1979 e 1991), o que de certa maneira agravaria a situação de iniqüidade vigente.

Digo de certa maneira porque se, por um lado, o pessoalismo tem tido como implicação a usurpação de direitos dos cidadãos que não têm acesso privilegiado ao poder em sentido amplo (nos mais diversos níveis e circunstâncias),2 por outro lado, o valor atribuído às relações (pessoais) tem não só motivado manifestações de solidariedade que são raras onde a ideologia individualista se apresenta de forma mais nítida e radical, mas tem também possibilitado a relativização de diferenças e contribuído para uma maior integração social entre pessoas de diferentes segmentos da população (Cardoso de Oliveira: 1996). Isto é, apesar de ser crítico quanto às implicações desta ênfase na manifestação de consideração à pessoa, em detrimento do respeito aos direitos do indivíduo — a qual costuma ter como conseqüencia o engajamento dos atores em processos de privatização do espaço público — ,3 também não posso deixar de observar uma dimensão positiva deste quadro em relação à afirmação ou efetivação de reconhecimento da dignidade daqueles que merecem a consideração de seus interlocutores. Como tenho sugerido em outras oportunidades, apesar desta maneira de expressar a solidariedade através da demonstração de consideração obedecer a uma lógica excludente, ela permite transposição de fronteiras e deixa um grande espaço aberto para a negociação da inclusão (Cardoso de Oliveira: 1996 e 1997). Isto é, uma vez que o ator, sujeito à desconsideração e à provável usurpação de seus direitos (ou à discriminação), consiga transmitir a substância moral característica das pessoas dignas sua identidade é reconhecida e as barreiras à inclusão são transpostas.

Numa comparação com os Estados Unidos (EUA), onde a relação entre o respeito aos direitos do indivíduo e a consideração à pessoa do interlocutor se daria de maneira inversa, indiquei que a esta situação corresponderiam déficits de cidadania que se desenvolveriam em direções opostas nos dois países. Enfatizei então, que o déficit de cidadania referente ao Brasil seria substancialmente maior e mais grave que o encontrado nos EUA, na medida em que aqui nossa orientação cultural estimularia o desenvolvimento de práticas que ameaçam, com freqüência, mesmo o que se poderia chamar de direitos básicos de cidadania. Embora acredite que esta comparação com os EUA tenha deixado claro a importância da cultura no equacionamento dos direitos, gostaria de explorar um pouco mais agora a relação entre democracia e cultura através da discussão da demanda de soberania do Quebec. Não só porque aqui, diferentemente dos dois casos acima, a dimensão cultural do problema assume um lugar de destaque no próprio discurso nativo, mas também porque no Quebec a demanda de reconhecimento da particularidade francoquebequense traduz, num só tempo, uma reivindicação identificada com a legitimação de direitos coletivos, e uma forte preocupação com a defesa dos direitos básicos ou universalizáveis (individuais) de cidadania. Além disto, a natureza da demanda quebequense, assim como o debate que ela tem provocado, deixam patente a relevância das questões de ordem simbólica, ou da articulação necessária entre direitos e valores, no equacionamento dos problemas de cidadania.

Como sugere o resultado apertado do último referendum sobre a soberania do Quebec, realizado em 30 de outubro de 1995, assim como as dezenas de pesquisas de opinião publicadas sobre o tema nos últimos anos, o aspecto da demanda quebequense que atinge maior grau de consenso entre os diversos atores ou segmentos sociais envolvidos no embate político se refere ao tratamento inadequado que o Quebec estaria recebendo de Ottawa (i.é, do resto do Canadá-RDC),4 pelo menos desde o "patriamento" da constituição do país, promovido por Trudeau à revelia do Quebec em 1982.5 Neste sentido, o caso do usineiros em Alagoas seriam bons exemplos de movimentos ou de ações "privatistas" que beneficiam grupos organizados.

Quebec é particularmente interessante porque o cerne da demanda feita ao RDC não é impulsionada por uma percepção de exploração (nos moldes das relações coloniais) ou por uma vontade de maior participação na renda e no poder — ainda que estes dois últimos aspectos não deixem de estar presentes. Na realidade, a demanda quebequense não é determinada por uma consciência de exclusão ou mesmo de usurpação dos direitos básicos de cidadania. Há, a rigor, um sentimento de desconsideração.

Inspirando-me em Charles Taylor, em seu "The Politics of Recogniton" (1994), gostaria de propor aqui que a desconsideração seria o reverso do reconhecimento, e reflete uma conjunção entre direitos e valores que representaria bem a articulação entre sociologia e história, na forma como foi abordada recentemente pela Profa. Eliza Reis em sua conferência de abertura do 8º Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia. Como sugere Reis, ao caracterizar a natureza dos conceitos sociológicos, o caso do Quebec seria um bom exemplo da situação onde a articulação entre "generalização e particularidade" não advém apenas da necessidade de se equacionar a teoria sociológica, em sentido estrito, com a compreensão de um caso específico, mas seria parte constitutiva do processo de formulação do problema ou do conceito sociológico enquanto tal. Isto é, a demanda de reconhecimento da identidade quebequense enquanto um direito, com pretensões de validade ou de legitimação dentro de um universo mais amplo (que inclui segmentos ou grupos sociais que não compartilham a identidade quebequense), não pode fazer sentido quando dissociada do contexto histórico-cultural onde é enunciada.

Mas, antes de falar sobre o Quebec, devo dizer uma ou duas palavras a respeito do significado das demandas de reconhecimento na nossa contemporâneidade. Tendo como referência a discussão de Berger sobre o processo de transformação da noção de honra em dignidade, com a passagem do ancien régime para a modernidade, Taylor diz que enquanto o primeiro termo está comprometido com a idéia de exclusividade, o segundo se refere a uma condição universalizável. Este processo teria detonado dois movimentos mais ou menos em seqüência. Num primeiro momento teria se difundido o movimento de interferir desde há muito nos assuntos internos do Canadá. Aliás, como se sabe, o Canadá ainda é uma monarquia e até hoje a rainha (da Inglaterra) tem um representante formal em cada província e outro na capital federal. Mas, com o patriamento da constituição, esta pode ser emendada (autonomamente) possibilitando, inclusive, a anexação de um carta de direitos, garantindo a precedência de direitos básicos individuais a todos os cidadãos. Além da carta de direitos ter sido percebida no Quebec como uma ameaça a sua sobrevivência cultural, na medida em que confrontava a legislação lingüística da província, a nova constituição consolidou a situação de centralização administrativa que vinha se agravando desde a 2ª grande guerra, e consolidou a política de multiculturalismo ao lado do bilinguismo oficial. A opção pelo multiculturalismo, ao invés do biculturalismo defendido pelas principais lideranças do Quebec, foi interpretada por estas como uma agressão, pois negava a dualidade canadense e não reconhecia a especificidade cultural do Quebec. O Quebec nunca concordou com os termos do patriamento e nunca assinou a nova constituição que considera ilegítima, pois seria produto de alterações unilaterais do texto original e, portanto, tratar-se-ia de uma imposição arbitrária e não democrática. Nesta visão o Quebec teria sido traído e esta situação tem sido simbolizada através da imagem "de la nuit des longs couteaux", que teria marcado a traição dos primeiros ministros das províncias anglófonas a René Lévesque, então 1º ministro do Quebec, nas vésperas do acordo político que possibilitou a efetivação do patriamento da constituição universalização de direitos e, como desdobramento, um segundo movimento teria se desenvolvido através da afirmação e da demanda de reconhecimento de uma identidade autêntica, tanto no plano individual como no coletivo. No plano coletivo, a demanda de reconhecimento se expressaria especialmente nas reivindicações de minorias culturais, no quadro do multiculturalismo, e/ou no bojo de movimentos de cunho nacionalista como a demanda de soberania do Quebec. Como sugeri num trabalho ainda inédito, uma das dificuldades de consolidação do segundo movimento é que, ao contrário da enfase na implantação de condições uniformemente iguais para todos os cidadãos, que caracterizou o primeiro movimento, a demanda de reconhecimento se caracteriza pela valorização de diferenças ou singularidades (Cardoso de Oliveira, s.d.).

Ainda segundo Taylor, as demandas de reconhecimento têm pelo menos duas características importantes que se manifestam de maneira acentuada no caso do Quebec: (1) um forte conteúdo simbólico que torna absolutamente indissociável a relação entre direitos e valores; e, (2) a dificuldade de serem satisfeitas fora de condições dialógicas mínimas, nas quais o reconhecimento do interlocutor reflita uma aceitação genuína da(s) particularidade(s) do outro. Enquanto a primeira característica indica que a falta de reconhecimento, ainda que essencialmente simbólico, pode ameaçar direitos através de atos de desconsideração — traduzidos na rejeição ou na desvalorização da identidade do outro —, a segunda sugere que a eventual reparação da desconsideração não pode ser plenamente efetivada por meios exclusivamente legais.6 Como veremos, os constrangimentos para um encaminhamento adequado da demanda "Quebequense" são agravados pelas dificuldades de compreensão das mesmas no Canadá inglês, à luz de visões tradicional e culturalmente distintas, quando não divergentes, sobre a "unidade canadense" assim como sobre o papel de francófonos e anglófonos na formação do país.


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