Dentre os clássicos da sociologia, Weber foi certamente aquele que mais contribuiu para a temática do racionalismo ocidental. Seja no plano dos processos de racionalização da organização ou do sistema social, seja no plano da racionalização das instituições ou das esferas culturais. Pode-se dizer que se, para Weber, o desenvolvimento de todas as formas de organização social estava associado a processos de racionalização, isto era verdade também para o que ele chamava de comunidades políticas, as quais, na nossa contemporaneidade, se expressam na forma do Estado-Nação. No ocidente, a racionalização das comunidades políticas veio desembocar nas democracias liberais modernas, as quais se caracterizam pela defesa de princípios de justiça que tem como foco os direitos individuais dos cidadãos, e são críticas a qualquer tentativa de se associar a identidade política da comunidade a valores não universalizáveis.
Como é bem sabido, apesar de identificar estes processos de racionalização com as idéias de desenvolvimento, complexificação e autonomização (das esferas culturais), Weber não deixava de ser crítico em relação a estes processos e seu diagnóstico da modernidade era algo sombrio. De um lado, identificava uma perda de liberdade nos processos de burocratização, que acompanhavam e permitiam o desenvolvimento de níveis cada vez mais complexos de organização social, na medida em que a ação racional deixava de ser dirigida pela avaliação de indivíduos autônomos orientados por princípios e/ou valores, para satisfazer aos imperativos das organizações (Habermas 1984:352). De outro lado, identificava nos processos de secularização ou de desencantamento das visões de mundo, e na conseqüente diferenciação/autonomização das esferas culturais de valor, uma perda de significado que ameaçava a integração social (Habermas 1984:350).2
No que se segue, procurar-se-á discutir, através da análise das demandas de reconhecimento do Quebec, assim como expressas no modelo de comunidade política que encontra maior respaldo entre a população quebequense, até que ponto esta dissociação entre direitos e valores ou entre valores universais e locais permite o desenvolvimento de níveis satisfatórios de integração social. Isto é, especialmente no contexto das dificuldades encontradas pelas democracias liberais modernas para lidar com as demandas de reconhecimento de que fala Charles Taylor (1994) — as quais têm se constituído numa das principais reivindicações políticas na atualidade — e que talvez pudéssemos associar a uma tentativa de combater, no âmbito das comunidades políticas, a perda de significado indicada por Weber em seu diagnóstico da modernidade. Assim, apresentarei inicialmente a definição de Weber da noção de comunidade política, chamando atenção para algumas de suas principais características, para depois fazer uma breve exposição do conceito de cultura pública comum, e introduzir a discussão sobre o Quebec.
Em Economia e Sociedade, obra que reúne suas principais contribuições teóricoconceptuais, Weber apresenta a seguinte definição para a noção de comunidade política : "uma comunidade cuja ação social é dirigida para a subordinação de um território e da conduta das pessoas dentro dele à dominação ordeira por parte dos participantes, através da disposição de recorrer a força física, incluindo normalmente a força das armas." (1978:901) Além de dominar um território e de manter o controle sobre a conduta de seus habitantes, mesmo que tenha que fazer uso da força física para tal, uma comunidade política se caracterizaria ainda pela capacidade de regulação das interações entre seus membros, em sentido amplo, não se restringindo às ações ou práticas sociais voltadas apenas para a realização de seus interesses econômicos (Idem:902). Na mesma direção, a referência ao caráter ordeiro da dominação chama atenção para a importância do reconhecimento da autoridade ou da legitimidade das relações de poder constituídas.3 Em outras palavras, as comunidades políticas se caracterizariam também pelo cultivo de valores e peculiaridades culturais partilhadas entre seus habitantes (e.g., símbolos nacionais), assim como pelo sentimento de solidariedade e, porque não, por uma identidade compartilhada.
Contudo, o processo de racionalização das instituições políticas típicas das democracias liberais modernas — num contexto de grande diferenciação social e de crescente diversidade cultural — provocou um distanciamento de tal ordem entre o arcabouço políticoinstitucional destas democracias, e as formas de vida específicas que lhes dão substância, que teria tornado difícil concebê-las como comunidades políticas em termos weberianos. Isto é, como unidades políticas que tenham uma identidade cultural definida, ou que compartilhem uma doutrina religiosa, filosófica ou moral determinada. De certo modo, é por esta razão que autores como Rawls preferem falar em sociedades políticas (1993:40-43), deixando de lado a noção de comunidade. De toda maneira, como a definição de unidade política, mesmo quando aplicada de forma restrita apenas às democracias constitucionais modernas, continua demandando algum tipo de articulação entre princípios e valores, concepções de organização política estritamente formais ou procedimentais não dão conta do problema. Pois é exatamente neste contexto que noções como a de cultura pública comum tomam corpo e ganham espaço no debate conceptual.
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