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Não se pode mais conceber uma estrutura policial similar à época da ditadura militar, onde se via o cidadão como um inimigo do Estado.
Vale lembrar, por exemplo, que a Polícia Militar, em nosso país, foi criada por meio da união da Força Pública Estadual com a Guarda Civil, na oportunidade do Golpe de 64. Constituiu-se, assim, em numa milícia auxiliar do Exército, a fim de conter as manifestações populares e o movimento de guerrilha estimulado pelos ideais comunistas.
A realidade imposta pela ditadura militar no Brasil, onde eram públicos e notórios atos de abuso para com a dignidade da pessoa humana, deve ser relegada ao passado, servindo como paradigma de um modelo vencido e não mais desejado por uma sociedade evoluída.
Percebendo-se que a atuação da segurança pública deve ser norteada pelos princípios atinentes aos Direitos Humanos, justamente, porque a atuação referida atinge os seres humanos, conclui-se, sem gris algum, que há patente relação entre segurança pública e Direitos Humanos. Em verdade, estes disciplinam a conduta daquela.
Quanto mais afastada desses referidos princípios, mais próxima estará a atuação estatal do chamado abuso de poder.
O aspecto relacional existente entre segurança pública e Direitos humanos encontra suporte, ainda, no fato de que, separando-se referidos institutos, ver-se-ia uma manifesta e nefasta crise no Estado moderno, ocasião em que se retornaria às características de um Estado Monárquico e Absolutista dos séculos XVII e XVIII, no qual o rei era o soberano e exercia a plenitude do poder sem nenhuma limitação de ordem constitucional.[7]
Com a teoria da vontade geral, voltada para os Direitos humanos, o exercício da soberania saiu das mãos do monarca e passou para as mãos da nação.[8]
Por outro lado, não obstante a evolução efetiva que se viu de um Estado Absolutista, sem limitações constitucionais, para um Estado modernizado, ainda assim remanesceram alguns aspectos contraproducentes dificilíssimos de serem vencidos: trata-se de conflitos eventuais vivenciados pelas próprias ramificações estatais, umas contra as outras, em estampado prejuízo social, como se verá adiante.
Lamentavelmente, nos dias de hoje, vivenciam-se estampadas "crises do Estado". Pode-se afirmar, diante disso, com cristalina serenidade, que um dos seus fatores é a expansão, sem precedentes, dos chamados "Poderes do Estado", mormente nos seus aspectos legislativo e administrativo.
Em decorrência dessa conjuntura, tornou-se mais aguda e urgente a exigência do controle judiciário ante a atividade do Estado. Os embates judiciais deixaram de envolver apenas sujeitos privados e passaram a abarcar, também, os próprios órgãos estatais, em que pese a ínsita finalidade de promoção da pacificação social que, em conjugação de esforços e estreita junção de vontades, compete-lhes levar a efeito precipuamente.
Efetivamente, pouco resolveria atribuir-se tamanho acervo de relevância aos direitos da pessoa, por meio de uma sempre crescente expansão das chamadas "ramificações estatais", e, ao mesmo tempo, não se assegurar a real proteção da pessoa humana, ante o embate vivenciado entre as próprias "ramificações" do Estado. Com propriedade, NORBERTO BOBBIO já afirmara que o grave problema de nosso tempo, com relação aos direitos da pessoa humana, não mais é o de fundamentá-los, mas sim o de protegê-los. [9]
No que diz respeito à problemática abarcada neste estudo, meritório é tornar inteligível o que se deve conceber, in casu, acerca do vocábulo "excentricidade". Com efeito, quer-se denotar o aspecto de "desvio ou afastamento de um centro comum",[10] ou seja, quer-se ressaltar a carência de uma urgente e mais acertada harmonia, ou união operacional, entre os órgãos do Ministério Público, Polícia Judiciária e Polícia Militar, o que procurarei deixar o mais cristalino possível logo à frente.
3.1 O ASPECTO RELACIONAL ENTRE MINISTÉRIO PÚBLICO E POLÍCIA JUDICIÁRIA
Compete à Polícia Judiciária à apuração da autoria e da materialidade dos ilícitos penais, exceto os militares.[11] Ao Ministério Público, compete a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.[12]
Pois, pela expansão moderna cada vez mais crescente do Estado como regulador de uma convivência social concebida como salutar, estabeleceram-se incontáveis normas cogentes, bem como se estabeleceram inúmeras formas de fiscalizá-las e de impor sanções às suas infrações.
Muito se discutiu acerca da legalidade da investigação criminal levada a efeito pelo Ministério Público. Todavia, recentemente, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu que o Ministério público é um órgão que possui poderes de investigação. Referida decisão saiu após policiais acionados judicialmente pelo MP reclamarem da colheita de depoimentos e provas de crimes contra eles enviando ao Supremo um pedido de habeas corpus. A ministra Ellen Gracie, então, relatora do HC, decidiu que o MP tem a prerrogativa de colher informações que auxiliem na elucidação de crimes sem que a função da polícia de investigar de maneira idêntica seja retirada. Além disso, para a Ministra, o MP pode perfeitamente ser tanto o órgão que investiga como o que propõe à Justiça a ação penal.
A decisão finalmente proferida pelo STF parecia mesmo óbvia, ainda lá nos primórdios em que referidas discussões acadêmicas a respeito iniciaram-se. Todavia, o que sempre deve haver prendido a atenção do estudante mais perspicaz foi o aspecto contraproducente do dissenso observado no aspecto relacional de referidos órgãos os quais, antes de mais nada, deveriam sempre agir com a mais profunda e profícua união, no encalço da tão almejada pacificação social, relegando às suas cúpulas, não à imprensa, à doutrina e ao Judiciário a decisão acerca do que um e outro deveriam fazer.
Com efeito, no momento em que os próprios órgãos do Estado entram em embate, à revelia completa da ínsita união incorruptível e harmônica que lhes deveria ser característica principiológica, o Estado entra em crise. Tratar-se-ia de uma problemática similar ao câncer, nome concedido a um conjunto de inúmeras doenças que têm em comum o crescimento desordenado, ou seja, maligno, de células que invadem os tecidos e órgãos, podendo espalhar-se , por meio da metástase, para outras regiões do corpo. Assim, tem-se que o Estado não pode transformar-se em um monstro teratológico que carrega em seus genes as nefastas características da natureza humana, tal qual foi a discórdia observada em relação ao tema da titularidade, exclusiva ou não, da investigação criminal. A elegância do diálogo pretérito entre os órgãos incumbidos de promover a pacificação social é sempre de bom tom, pois, conforme o dizer de Dallari, o ser "apolítico" ou é um animal ou um Deus.[13]
Nesse diapasão, também se viu determinada problemática entre Polícia Civil e Polícia Militar, após o advento, no cenário jurídico pátrio, dos Juizados Especiais Criminais. Esse é o nosso próximo tema a seguir.
3.2 POLÍCIA JUDICIÁRIA E POLÍCIA MILITAR: A HISTÓRICA DICOTOMIA IMPOSTA PELO ESTADO AO COMBATE À CRIMINALIDADE
Outro aspecto que evidencia mais uma "crise de estado" no ramo da segurança pública, setor tão sensível e delicado que é, assenta-se na contenda traçada entre Polícia Militar e Polícia Judiciária em torno da lavratura dos termos circunstanciados.[14] A lex pátria reza, sem revolutear, serenamente, que compete à "autoridade policial" lavrar o termo circunstanciado, e aí está a gênese de toda a polêmica.[15] A discussão sempre repousou, lamentavelmente, em se saber se a expressão "autoridade policial" deveria ser compreendida em seu aspecto estrito, ou seja, referente apenas à figura do Delegado de Polícia, à luz do nosso Códex adjetivo processual, ou se deveria abarcar ela exegese lata, ou seja, referindo-se, então, a qualquer policial civil ou militar.
Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça, por meio da lavra do Eminente relator Ministro Vicente Leal, já decidiu no sentido da legalidade da lavratura de Termos Circunstanciados pela Polícia Militar:
"PENAL. PROCESSUAL PENAL. LEI N.º 9099/95. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. TERMO CIRCUNSTANCIADO E NOTIFICAÇÃfO PARA AUDIÃSNCIA. ATUAÇÃfO DE POLICIAL MILITAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. INEXISTÃSNCIA".[16]
Vale mencionar que, segundo o entendimento do celebrado Relator, "nos casos de prática de infração penal de menor potencial ofensivo, a providência prevista no art. 69, da Lei n.º 9099/95, é da competência da autoridade policial, não consubstanciando, todavia, ilegalidade a circunstância de utilizar o Estado o contingente da Polícia Militar".
Vê-se, pois, que o Poder Judiciário, por meio da celebrada Corte supra, entende que a competência para a lavratura de termos circunstanciados é, indubitavelmente, pertencente ao Delegado de Polícia, mas, por força de questões funcionais do Estado, não há ilegalidade em este utilizar-se, para tanto, da força Policial Militar.
Todavia, o que deve ser notado, mais uma vez, é que, in casu, novamente, faltou uma prévia e mais acertada discussão entre as Polícias Civil e Militar sobre o assunto, antes de se permitir que o Poder Judiciário disciplinasse as funções de um e de outro. Lamentavelmente, quando não previamente pactuadas e lapidadas, entre os próprios órgãos envolvidos, inovações procedimentais como a em pauta, tudo visando, exclusivamente, o bem-estar social, resplandece à população a hipótese de que há uma, absolutamente impensada e deselegante, "briga por poder" entre as ramificações estatais. Seria isso verdade?!
Outra questão contraproducente vivenciada pelos órgãos incumbidos de promoverem a Segurança Pública é a falta de apoio recebido de alguns dos mais variados órgãos municipais, estaduais e federais incumbidos de promoverem políticas públicas básicas. Isso resulta, indubitavelmente, em xeque qualquer esforço das nossas polícias no doloroso combate à criminalidade.
E a fim de se comprovar o que se disse acima e tornar ainda mais límpida a idéia aqui expendida concito os nobres leitores a refletirem sobre a seguinte indagação: qual seria a relação que há entre segurança pública e janelas quebradas?!
Pois bem, afirmo que a relação é a mesma que há entre segurança pública e iluminação pública ou entre segurança pública e manutenção de praças públicas!
Veja-se: façamos uma comparação entre os marginais que se alastram em nossa sociedade e as baratas que se proliferam em determinada residência. Não é necessário, então, qualquer esforço mental, a fim de se perceber que, se a residência não for mantida limpa e higinizada regularmente, as baratas alastrar-se-ão desenfreadamente.
Assim também o é na estreita e íntima relação que há entre as funções do poder público federal, estadual e municipal para com a proliferação da criminalidade em nossa sociedade. Uma praça pública depredada, mal iluminada, com banheiros públicos deploráveis acaba tornando-se foco de concentração de desocupados, de usuários de drogas, enfim, de marginais que, ao contrário de famílias que ali poderiam usufruir de um local de lazer, acabam assenhorando-se de referidos locais como se territórios particulares seus fossem, afastando os cidadãos, as mães, os pais e seus filhos daquele ambiente.
Dessa forma, no momento em que um marginal vier a quebrar um banheiro público, no momento em que um marginal vier a quebrar uma lâmpada pública ou pichar um muro qualquer, o poder público tem o dever de se mostrar presente, vigilante e, imediatamente, consertar o estrago levado a efeito, mostrando que não é o marginal que domina a área pública que desejar, mas sim o Estado (entendido este como sendo a administração pública federal, estadual ou municipal).
Foi assim que, em Nova Iorque, durante a gestão do Prefeito Rudolph Giuliani (de 1 de janeiro de 1994 a 31 de dezembro de 2002), aplicou-se a famosa e mundialmente reconhecida "broken windows theory" (teoria das janelas quebradas, também conhecida por "Tolerância Zero"), reduzindo-se drasticamente os índices de criminalidade que ascendiam sem cessar nos últimos trinta anos.
Dessa arte, definitivamente, vê-se que é indissociável a relação entre políticas públicas básicas e segurança pública, sendo pura falta de conhecimento crítico atribuir-se tudo o que se vê e tudo o que se ouve em relação à criminalidade como sendo um problema exclusivamente afeto à Polícia.
Pelo que se depreendeu do estudo em evidência, pois, do Estado Monárquico ao nosso Estado moderno, de vez em quando, surgem crises enfrentadas no âmbito da nossa segurança pública, muitas delas remanescentes, infelizmente, da falta de entrosamento entre os mais diversos órgãos do próprio Poder Público.
Além disso, viu-se também que a conjugação sobre proposições relevantes envolvendo a segurança pública deve ser abarcada, preferentemente, interna corporis, em caráter preventivo, antes de a temática ser lançada ao longus oculus do Big Brother.
Por fim, a excentricidade relacional entre alguns gestores da segurança pública torna-se tão instigante ao criminoso que, por mais duras que sejam as leis sobre a criminalidade, não possuirão elas, jamais, o condão de aplacar o encorajamento do infrator. A propósito, convenientemente, vale citar o que brilhantemente ensinou-nos a respeito o Ministro aposentado do STF Dr. EVANDRO LINS E SILVA: "Muitos acham que a severidade do sistema intimida e acovarda os criminosos, mas eu não tenho conhecimento de nenhum que tenha feito uma consulta ao Código Penal antes de infringi-lo." [17]
Autor:
Roger Spode Brutti
rogerinteligente[arroba]yahoo.com.br
AUTOR: Roger Spode Brutti. Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito pela Universidad Del Museo Social Argentino (UMSA) de Buenos Aires/Ar. Mestre em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela Universidade Franciscana do Brasil (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA). Graduado em Direito pela Universidade de Cruz Alta/RS (UNICRUZ). Professor Designado de Direito Constitucional, Direito Processual Penal e Direito Penal da Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul (ACADEPOL/RS). Membro do Conselho Editorial da Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal. Articulista semanal do Jornal "A Razão" de Santa Maria/RS, periódico fundado em 09 de outubro de 1934.
[1] Faz-se isso, principalmente, por meio da Polícia Militar, fardada e ostensiva.
[2] A Polícia repressiva constitui-se na Polícia Judiciária, a quem compete apurar a autoria e a materialidade das ilicitudes penais.
[3] A existência do Instituto-Geral de Perícias (IGP) como órgão autônoma de segurança pública do Estado do Rio Grande do Sul foi prevista na sua Constituição Estadual, promulgada em 1989. Compete-lhe, além de outras atribuições, promover: as perícias médico-legais e criminalísticas, os serviços de identificação e o desenvolvimento de estudos e pesquisas em sua área de atuação.
[4] A Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) é o órgão estadual do RS responsável pela execução administrativa das penas privativas de liberdade e das medidas de segurança.
[5] CF, art. 129,I.
[6] Direito de Punir.
[7] BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. Pág. 24.
[8] BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. Pág. 25.
[9] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, p. 25.
[10] Consoante o Dicionário Aurélio: excentricidade [Do lat. med. excentricitate.] S. f. 1.Desvio ou afastamento do centro. 2. Astr. No sistema cosmológico de Ptolomeu, a distância entre o centro do mundo e do excêntrico1 (3) (q. v.) do astro considerado. 3.Astr. Excentricidade da órbita. 4.Geom. Cociente da distância de um ponto de uma cônica ao seu foco pela distância desse ponto à sua diretriz. Se a cônica é central, é o quociente da distância do centro ao foco pela distância do centro ao vértice.
[11] CF, art. 144, § 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares -.
[12] CF, art. 127 - O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis -.
[13] DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 7-8.
[14] Procedimento tendente a apurar as infrações de menor potencial ofensivo, à luz da Legislação dos Juizados Especiais Criminais.
[15] Lei nº9.099/95, art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.
[16] HC n.º 7199/PR
[17] In Ciência Jurídica - Fatos - nº 20, maio de 1996.
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