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Este capítulo trata do Marco Analítico-Conceitual construído para a realização dessa pesquisa. Marco Analítico-Conceitual é um termo adaptado do inglês framework (que pode ser traduzido como quadro, escopo ou estrutura) e pode ser entendido como um conjunto de conceitos, relações e fatos estilizados referidos a um determinado contexto sobre o qual se está pesquisando, o objetivo do Marco é auxiliar na modelização dos sistemas observados na realidade pesquisada.
Inicialmente, serão apresentadas as contribuições realizadas no âmbito da Ciência Geográfica que utilizam a abordagem sistêmica e os estudos da complexidade para entender as questões ambientais. Depois elas serão relacionadas à escola cartográfica francesa, em especial as propostas de Jean Tricart e, principalmente, a Cartografia Dinâmica de André Journaux. Esta primeira parte do Marco pode ser entendida como o "referencial teórico" do trabalho.
Ao final, serão indicados dois elementos que completam o marco: o Mapeamento Participativo de Riscos Ambientais e a Classificação dos Riscos Ambientais. Paralelamente ao "referencial teórico", esta segunda parte corresponderia ao "referencial prático" desta pesquisa.
Referencial sistêmico e os estudos da complexidade
Primeiramente cabe destacar que neste trabalho é utilizada a bacia hidrográfica como um recorte espacial, uma referência geográfica importante e bem delimitada, e não como uma unidade de análise. Nesse caso a bacia não é propriamente a unidade de análise da pesquisa no sentido dos processos atinentes ao funcionamento do "sistema bacia hidrográfica".
Pesquisas que utilizam a unidade espacial "Bacia Hidrográfica", caracterizada por uma área que drena determinados cursos d’água e está limitada por divisores de águas, estão de acordo com a ampla aceitação da Lei das Águas (BRASIL, 1997) que propõe a pesquisa e o planejamento no âmbito das Bacias Hidrográficas.
Como salienta Christofoletti (1979), a abordagem sistêmica, ao se fixar no funcionamento integrado dos elementos componentes, começou a focalizar a bacia hidrográfica como unidade geomorfológica fundamental. O mesmo Christofoletti (1999), mencionando Petts & Amoros (1996), destaca essa abordagem como a mais adequada para tratar dos hidrossistemas fluviais ao assinalar que os rios devem ser analisados como sistemas tridimensionais, dependendo de transferências de energia, material e Biota, e devem ser estudados nas direções longitudinal, lateral e vertical. Assim, torna-se importante analisar os fluxos de montante para jusante, as interações laterais com as margens e setores da bacia e os intercâmbios verticais com as águas subterrâneas e os aqüíferos.
Como destacado por Carpi Jr. (2001, p.36):
"Mesmo considerando-se o intercâmbio entre as águas superficiais e subterrâneas como de forte intensidade, deve-se salientar que as águas subterrâneas são componentes de uma bacia hidrológica, enquanto que a bacia hidrográfica integra apenas as águas superficiais. Os limites da bacia hidrológica podem ultrapassar o limite da bacia hidrográfica, pois o escoamento da água subterrânea é regulado pela inclinação de camadas geológicas e disposição de fendas e fissuras que pode não corresponder ao sentido do escoamento superficial, regulado pelas formas de relevo."
Ademais, como é ressaltado por Carpi Jr. (2001), os pesquisadores que utilizam a unidade "bacia" devem estar atentos aos casos em que ocorrem transposição (transporte de água de uma bacia para outra) ou reversão fluvial (inversão do fluxo natural da água rumo a outra bacia), o que impõe uma limitação importante na utilização desta unidade. Isto acontece com freqüência, e há muitos anos, nas bacias hidrográficas desta região. Nesse sentido muitas sub-bacias do Rio Atibaia, como a do Ribeirão das Anhumas e a do Ribeirão das Pedras, são bons exemplos. Segundo o mesmo autor, caso seja levado em conta as possibilidades de contaminação da água subterrânea por disposição ou lixiviamento de resíduos ou produtos agroquímicos, a existência de uma bacia hidrológica e as interfaces entre as bacias hidrográficas são importantes, pois as fontes de contaminação podem se localizar em uma bacia vizinha àquela estudada.
A condição para a análise da Bacia Hidrográfica deve ser a integração dos seus elementos e também a relação entre eles e o entorno da Bacia. Segundo Rohde (2006) a unidade "bacia hidrográfica" não é uma unidade espacial natural, ela existe segundo critérios temporais e/ou técnicos. Em outras palavras, de um lado, a bacia pode sofrer alterações morfométricas ao longo do tempo, de outro, os métodos e técnicas utilizados na definição dos seus limites podem ser inovados ou aprimorados.
A idéia de Santos (2004) apresentada por Rohde (2006) é mais extremada. Segundo ela, a utilização da unidade-bacia pode ser influenciada por escolhas políticas ou de acordo com o tipo de abordagem que ela será alvo, portanto a unidade é relativamente eficaz no plano sanitarista e tecnoburocrático, mas não aplicável no nível econômico-financeiro e ambiental de intervenção.
Wenzel (2005, p.86) apresenta os pontos positivos e negativos da utilização da bacia enquanto unidade espacial:
"A bacia hidrográfica, apesar dos aspectos positivos (limites conhecidos, possibilidade de enquadramento no tocante ao estabelecimento de padrões quali-quantitativos, participação coletiva, inserção localizada...), realça o aspecto das águas de superfície, mas se desconecta da realidade subterrânea e atmosférica e das movimentações extrabaciais, bem como das ocupações florísticas, faunísticas e humanas".
Também presente nos referenciais buscados para essa pesquisa estão as definições empregadas pelo Geógrafo brasileiro Aziz Ab’Sáber de metabolismo urbano e de bacia urbana. A definição de metabolismo urbano de Ab’Sáber (1995) baseada em Wolman (1972) permite enxergar a bacia hidrográfica de maneira análoga ao habitat de um organismo vivo, a sociedade humana que tem como grande característica transformar as paisagens. Segundo Ab’Sáber (1995), a expressão sintetiza as relações entre oferta de espaço e serviços e demanda de necessidades e bem-estar, além disso, é no metabolismo urbano onde se processam o dia-a-dia dos homens em suas funções biológicas, assim como as multivariadas funções de trabalho, circulação, consumo e, também, as práticas sociais e culturais. Para analisar as cidades brasileiras, e também as bacias hidrográficas em áreas urbanizadas, em função do metabolismo, Ab’Sáber destacou 3 fatores fundamentais: a magnitude de problemas e condições do sítio urbano, a hidrologia e a fisiologia da paisagem.
A segunda noção, presente em Ab’Sáber (1990, 1999b), é herdeira dos ensinamentos do geógrafo francês Bernard Kayser (KAYSER, 1966) e trata da bacia urbana como um território (AB’SÁBER, 1999b, p.5):
"Depois, ele [Kayser] nos falava de bacia urbana, que seria o [espaço] de uma grande cidade, a cabeça de um território, colocada próxima de porto ou em uma situação estratégica, ou no entroncamento de rotas, e que controlaria uma rede de cidades modestas vinculadas ao poder e ao comando social, socioeconômico ou econômico dessa grande cidade."
Campinas não está distante desta leitura de Bacia Urbana. Além de sua ligação atual com a grande metrópole São Paulo, persiste a herança da época do café ainda muito presente neste contexto como fica evidenciado por Ab’Sáber (1999b, p.6):
"Só no Estado de São Paulo, em função da sua história econômica e das elites do passado – inteligentíssimas em relação à administração do espaço total paulista –, essa bacia urbana teve 100 cidades, formadas em pontas de trilho e em função de heranças dos tempos de cruzamento de rotas de muares para levar café para os portos. São 100 cidades do Café."
Com a inserção da temática da ação humana sobre o ambiente, realçada pelos conceitos utilizados por Ab’Sáber, o frágil limite imposto à análise da bacia hidrográfica restrita pelos divisores de água evidencia a dificuldade de trabalhar com essa unidade. Alguns autores como Wenzel (2005) e Rohde (2006) explicitam que a análise dos fluxos populacionais humanos, animais e vegetais e de fluxos de energia e transporte poderia ser mais eficaz utilizando o geossistema através das unidades geoambiental ou geoatmosférica. Assim, além da teoria dos sistemas outras abordagens devem ser complementadas para o estudo da bacia como, por exemplo, os estudos da complexidade e do holismo que serão tratados a seguir.
A integração de diferentes abordagens na construção de uma teoria dos sistemas para a geografia é ainda hoje uma procura. Mesmo com toda a produção bibliográfica acumulada sobre o tema, essa integração ainda carece de atenção.
A proposta de trabalhar conjuntamente com a abordagem geossistêmica e holística tem sido exercitada como metodologia de estudo de Bacias Hidrográficas e de Zoneamento Ecológico (FREITAS, 2004). Para fora da geografia, esta abordagem é reconhecida como forma de integrar a cultura e a sociedade no tratamento das questões ambientais como, por exemplo, no âmbito dos estudos de engenharia sanitária com Dias et al (2003) e nos estudos de geologia como é o caso de Rohde (2006) e Wenzel (2005).
Segundo Vicente e Perez Filho (2003), nos últimos anos, aquilo que se chamou de geossistema tem ganhado cada vez mais espaço. De acordo com os autores, essa abordagem tem sido empregada devido ao seu potencial para aprimorar a proposta de trabalho multidisciplinar e por contribuir com conceitos para a gestão e o planejamento territoriais, a partir de uma perspectiva da complexidade ambiental.
Partindo dessa idéia de complexidade e de trabalho (meta)disciplinar é realçada a idéia de Gvishiani (1984): "a análise de sistemas oferece uma modificação peculiar na relação sujeito-objeto diferentemente da relação científica tradicional, que requer a demarcação de uma linha rígida entre sujeito e objeto".
Seja pelo fato de entrelaçar trabalho-de-gabinete e trabalho-de-campo - questão vital para a ciência geográfica -, seja pelo reconhecimento de que nessa ciência, como no universo, tudo é interdependente, a complexidade como é entendida por Jean Tricart se traduz na relação dialética entre sujeito-objeto, também exposta por Gvishiani (1984). Isto pode ser apreendido no seguinte trecho extraído de Tricart (1980, p. 98):
"Se se considera que todos os fenômenos que constituem nosso universo são interdependentes, nenhuma disciplina tem um objeto realmente específico. A análise de fenômenos particulares, tal como é encarada pelas diversas disciplinas, não deve conduzir ao isolamento desses fenômenos. Uma atitude dialética deve permitir a recolocação dos resultados analíticos obtidos em seu contexto de interferências. Em síntese, nossa abordagem é decididamente sistêmica, já que a nosso ver a teoria dos sistemas é o melhor instrumento lógico de que dispomos atualmente. Ela engloba e supera a "dialética da natureza" esboçada há um século por Engels". (Não grifado no original)
Pesquisadores, especialmente os soviéticos, desde a década de 1970, ocupam-se de encontrar na dialética de Marx e Engels o embasamento filosófico para a Teoria dos Sistemas. Isso está bastante presente na obra de Gvishiani (1984, p. 4):
"A unidade dialéctica do princípio de sistemas e do princípio de desenvolvimento é um ponto importante na fundamentação filosófica da abordagem de sistemas. Neste contexto um sistema não é apenas a soma de elementos estruturados, mas uma entidade dinamicamente organizada no processo de desenvolvimento."
Nesse sentido parece ser de fundamental importância um princípio filosófico baseado em Kuzmin (1976, p. 10) apud Gvishiani (1984, p.4) que afirma que "um fenômeno da realidade objetiva visto nos termos de um todo sistemático e a interação de seus elementos constituintes representa um prisma cognitivo específico ou a uma ‘dimensão’ específica da realidade".
O prisma cognitivo proposto na abordagem citada se aproxima da definição de hólon utilizada por Koestler (1972; 1981). Assim, os estudos da complexidade baseados no holismo aparecem paralelamente à abordagem sistêmica.
O hólon foi pensado por Koestler enquanto teorizava sobre a sincronicidade e tentava entender o mito de Jano, o deus grego de duas caras. Ele pensou em uma estrutura auto-organizada, em que as partes e o todo estão constantemente conectados. Baseado em um pressuposto sistêmico básico, muitas vezes esquecido – o da indissociabilidade encontrada entre a união das partes e a divisão do todo-, este Koestler (1972, p. 102) escreveu:
"O organismo vivo e o grupo social não são agregados de peças elementares. São sistemas hierarquicamente organizados, multinivelados, de subtodos constituídos de subtodos de ordem inferior – ou ‘holons’(...) São entidades que [apresentam] tanto as propriedades independentes de um todo como as propriedades dependentes de uma parte."
Em outras palavras entende-se que Jano, representando o sistema, enxerga por dois pontos de vista ao mesmo tempo - de fora para dentro e de dentro para fora – sem perder a noção de encadeamento do processo.
Noutra passagem, Koestler (1981, p. 48) fala de "entidades autoreguladoras que manifestam tanto as dependentes propriedades do todo como as dependentes propriedades das partes". Trata-se de uma variação da clássica afirmativa sistêmica de que a soma das partes não é igual ao todo. Os conceitos desenvolvidos por Koestler inspiraram os trabalhos de Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, um geógrafo que viveu intensamente a procura por uma ferramenta de análise e que encontrou no Geossistema uma espécie de ponto de chegada (MONTEIRO, 2001).
Segundo Monteiro (2001) a aplicação do método geossistêmico ajuda na integração das estruturas intermediárias, os subsistemas, através da organização hierárquica da dinâmica espacial e ambiental, bem como a natural e a social – organização essa que Koestler (1972) chamaria de holárquica. Para Monteiro (1991) estes subsistemas apresentam caráter vertical e horizontal, representando a idéia de "arborescência", conferindo à análise geográfica estruturas e organização hierárquica, em termos de ligações, no plano vertical, e entrelaçamentos, no plano horizontal.
Trabalhos recentes dos frenceses Bertrand e Bertrand (2002) sugerem que o Geossistema é um sistema, chamado por eles de GTP, formado por 3 subsistemas: (G) Geossistema propriamente dito, (T) território e (P) paisagem.
O Geossistema é uma parte de um sistema maior e mais complexo. Representa, segundo os autores, a herança de um conceito naturalista que trata a natureza como fonte (source) e que inclui na análise um subsistema antrópico. Ao que parece não se diferencia muito do conceito utilizado por outros autores analisados até aqui.
O Território, o segundo subsistema do GTP, entende o espaço como recurso (ressource) e simboliza a reminiscência de uma história ou uma arqueologia de sociedades de tempos longínquos que enraízam no ambiente as marcas das respectivas sociedades, em outras palavras, as marcas da artificialização (artifisialisation).
A Paisagem, o último subsistema, possui a marca da irrupção do sensível no campo do ambiente e representa a indispensável tomada de consciência sobre as representações culturais. A paisagem é fruto da conversão do ambiente em recurso pelo ato da percepção e do uso direto através de um "recursamento" (ressourcement) ou retorno ao curso/fonte primeira e se baseia em um processo "artialização" (artialisation).
Em síntese o sistema GTP é entendido por Bertrand e Bertrand (2002) no funcionamento de três entradas convergentes que abrem três vias interdependentes, cientificamente construídas, num mesmo espaço geográfico. O ambiente (environnement) resulta do jogo de interação das três entradas ou subsistemas através tanto do tempo como do espaço. O sistema tripolar GTP não é substituido por nenhum de seus subsistemas, pelo contrário, ele carece de indispensáveis estudos setoriais. O interesse epistemológico e metodológico é duplo: preservar a complexidade e diversidade do ambiente e auxiliar na superação da falsa ruptura entre natureza-sociedade.
Frolova (2003) propõe uma explicação interessante sobre o caminho trilhado por Bertrand e Bertrand (2002) até chegarem a este conceito amplo de Geossistema. Segundo a autora, mesmo que alguns elementos sejam emprestados do modelo naturalista e quantitativo soviético (baseado em V.B. Sochava, A.G. Isachenko), os franecses adaptam o conceito de geossistema simplificando-o e propondo um modelo mais qualitativo e humanizado em função de duas diferenças marcantes. Em primeiro lugar, a distinta realidade ambiental dos países de Europa ocidental com paisagens extremamente deterioradas por processos antrópicos, em relação às paisagens naturais dos países do Leste. Em segundo, as limitações dos meios materiais dos laboratórios franceses, incomparáveis aos soviéticos.
De maneira crescente, desde os primeiros artigos, percebe-se a necessidade de enriquecer o modelo geosisstêmico com a dimensão antrópica e cultural. Isso se apresenta com muito mais força nos textos mais recentes, como pode ser visto em Bertrand e Bertrand (2002).
Finalmente, estas referências mais gerais são importantes para fundamentar epistemologicamente este trabalho, tendo em vista que as abordagens sistêmica e holística, diretamente motivadoras da valorização do diagnóstico e da percepção ambientais, representam um passo bastante significativo no enfraquecimento do paradigma cartesiano e positivista na ciência geográfica. A tentativa de casar as idéias utilizadas por Ab’Sáber de bacia urbana (território) e metabolismo urbano (paisagem) com as de Geossistema holístico de Monteiro e o GTP de Bertrand parece ir nesse sentido.
Espera-se com isso demonstrar que pesquisas como esta pode contribuir para a difusão e aplicabilidade de uma ciência geográfica transversal, solidária e ampla. No sentido de uma geografia à serviço da solidariedade é importante definir alguns princípios. O primeiro princípio esboçado em Dagnino e Dagnino (2006) é o da solidariedade. Assumindo-se que a palavra solidariedade tem suas raízes no termo sólido, algo a ver com o sentimento de concreto e duradouro; sob um ponto de vista antropocêntrico – ou ao menos, zoocêntrico, colocando o homem e outros animais no centro do debate -, solidariedade tem a ver com a continuidade de processos vivos sejam eles processos bio-físico-químicos, sejam as relações culturais e sociais. Outro princípio também tratado pelos autores, é o de desenvolvimento sustentável entendido como planejamento ecológico e desenvolvimento econômico (ambas as palavras possuem a mesma raiz, a palavra grega oikos, que significa casa, morada) a fim de garantir a durabilidade – a solidez, a solidariedade – da vida no futuro deste planeta. Em outras palavras, e na tentativa de reforçar o distanciamento das definições de desenvolvimento sustentável banalizadas no vocabulário do capitalismo ambiental, cabe ressaltar um dos pontos fundamentais de um outro entendimento dessa concepção, em Dagnino e Dagnino (2006, p. 7):
"Um planejamento que entenda o problema da sustentabilidade da vida na Terra como dependente de uma reformulação dos sistemas econômicos e de uma refundação das relações sociais e políticas."
Na construção de um referencial geocientífico para o desenvolvimento sustentável, Rohde (1998) apud Freitas e Cunha (2002) destaca que esta construção deverá se dar sob a interferência de seis princípios filosófico-científicos que foram individualizados em: contingência, complexidade, sistêmica, recursividade, conjunção e interdisciplinaridade. Assim a mudança de paradigma, esboçada amiúde em Freitas e Cunha (2002), deverá estar associada aos 6 princípios filosóficos supracitados e impulsionada pelos estudos da complexidade, através de enfoques cibernéticos e do anarquismo epistemológico. Ademais, deve estar ligada à aplicação ética da complexidade nos diagnósticos e no planejamento ambiental, não dissociando a natureza da sociedade.
Para concluir esta seção sobre o referencial sistêmico da pesquisa, a grande questão que parece estar colocada é que se a Bacia do Ribeirão das Pedras é a unidade básica desse estudo, é preciso assumir que ela estabelece uma relação holística de parte indissociável do todo. Dessa forma ela é uma sub-bacia do Riberirão das Anhumas, que é uma sub-bacia do Atibaia, que é parte do Rio Piracicaba, que está englobada na bacia do Rio Tietê, e assim por diante. Assim, percebe-se que a própria bacia não está descolada de outras bacias hidrográficas e outras regiões, formando assim uma escala holárquica.
A seguir, a próxima seção apresenta as contribuições da escola francesa de representação cartográfica para esse trabalho.
Escola cartográfica francesa (as propostas de Jean Tricart e André Journaux)
Além das idéias expostas anteriormente, as propostas práticas que mais ajudaram na construção do Marco analítico-conceitual foram aquelas derivadas dos programas de estudo de Ecodinâmica, de Jean Tricart (TRICART, 1977; TRICART e GOMES, 1982) e da metodologia de Cartografia Dinâmica proposta por Journaux (1985).
A ligação destes dois pesquisadores à abordagem sistêmica holística fica evidenciada na definição de ambiente de cada um deles (a junção entre natureza-homem), no tipo de aspectos que suas atenções focalizam (o imbricamento de fatores socioculturais e aspectos naturais) e no ritmo de mudança desses aspectos (dinâmico e nunca estático).
Primeiro será tratada a herança francesa no que diz respeito à logística de pesquisa e depois serão abordados os pormenores da proposta de Cartografia Dinâmica, de André Journaux.
Tanto a Ecodinâmica como também a Cartografia Dinâmica potencializam a tarefa de análise do ambiente através da identificação, individualização, classificação, sugestão de associações e relações de causalidade possíveis entre os seus componentes.
O Marco Analítico-conceitual é a conformação de um modelo de análise-representação utilizando os dois autores e a realização de procedimentos que podem ser distinguidos segundo três níveis (Fig. 4.4).
No modelo cada um dos três níveis implica dois tipos de atividade: realização de Estudos (ou Diagnósticos) e o Mapeamento (ou elaboração da Carta) dos seus resultados. Esses Estudos e Mapeamentos estão relacionados nos sentido vertical e horizontal, em função das etapas de trabalho.
Figura 4.4: Modelo da Logística de análise-representação adotada
Fonte: TRICART (1977) e JOURNAUX (1985). Organizado pelo autor.
No modelo cada um dos três níveis implica dois tipos de atividade: realização de Estudos (ou Diagnósticos) e o Mapeamento (ou elaboração da Carta) dos seus resultados. Esses Estudos e Mapeamentos estão relacionados nos sentido vertical e horizontal, em função das etapas de trabalho.
Apesar da sugestão de Journaux (1985) de que o resultado final de cada nível seja uma única carta, a preocupação com a interconexão dos níveis é uma preocupação explícita na obra dos dois autores.
Assim, lendo no sentido das linhas (NÍVEL), cada Estudo (2ª coluna) realizado em cada um dos níveis resulta num correspondente Mapeamento (3ª coluna). Por exemplo, no nível 1, um estudo básico resulta num mapeamento analítico. Por outro lado, lendo a partir da segunda coluna (ESTUDOS), se pode constatar que a realização de um Estudo de nível avançado prescinde da realização dos estudos em níveis anteriores. Por exemplo, para a realização de um estudo Ecológico será necessário efetuar-se um estudo básico.
Da mesma forma, lendo o diagrama na terceira coluna, o Mapeamento situado no segundo nível demanda o obtido no primeiro, que por sua vez supõe a prévia obtenção e análise dos resultados gerados pelo primeiro Estudo, e assim sucessivamente. Assim, lendo no sentido das linhas (NÍVEL), os Estudos realizados em cada um dos níveis resultam em um correspondente Mapeamento especificamente relacionado para o primeiro nível de análise. Lendo na segunda coluna (ESTUDOS), se pode constatar que a realização do segundo Estudo demanda dos resultados obtidos mediante o estudo primeiro e assim sucessivamente.
O esquema permite formar uma idéia da complexidade do desafio que a proposta coloca. São mais de quarenta relações, pensando as duas direções de leitura e a leitura obtida segundo uma direção transversal, e as relações que se podem estabelecer combinando os sentidos.
Dessa forma, como explica Journaux (1985, p. 12):
"Nesse estágio da discussão, pareceu ao autor desta Nota Técnica que uma classificação lógica partindo da análise de fenômenos relativamente simples alcançando uma síntese complexa, permitindo melhor definir os objetivos de cada abordagem cartográfica. Eis porque três níveis foram distinguidos, precisando que a noção de escala é independente, mas que a escolha da escala depende, evidentemente, da complexidade dos fatos representados."
Mas, talvez o mais importante que se pode extrair desta proposta de Tricart/Journaux, é a necessidade de representar graficamente as informações iniciadas no nível da análise, e dela derivadas. Nesse sentido a maior preocupação dos autores é que as informações obtidas não devem estar restritas à uma parte dos problemas ambientais ou fatos geográficos em si, mas sempre em relação e interconexão com outros fatores, entre eles, principalmente a ação do homem e a sociedade frente a natureza.
No trecho que segue, Journaux (1985, p.12) apresenta uma alternativa que caminha em direção a inclusão dos referidos temas:
"O conteúdo das cartas ambientais tem sido seguidamente objeto de numerosas discussões. Alguns opuseram as cartas ditas ‘cientificas’ às cartas de aplicação e às cartas didáticas ou de sensibilização; outros insistiram sobre a noção de escala; outros retiveram somente os elementos naturais (ar, água e terra), os riscos naturais e a paisagem, excluindo o homem ou não considerando unicamente que na sua ação ele se torna poluente e nocivo; outros, enfim, concentraram toda sua pesquisa sobre o homem vivendo no meio artificial, opondo ‘cultural’ ao ‘natural’. A utilização ambígua do titulo de ‘cartas ecológicas’ ainda veio complicar o problema."
Para o presente trabalho procurou-se explorar um número reduzido destas possibilidades. Se no início a idéia era trabalhar numa grande equipe que pudesse fazer os diferentes tipos de estudos com a mais alta qualidade e dedicação, ao final percebeu-se que isto não seria possível. Reduziu-se, assim, o espectro, centrando o foco nos riscos ambientais. Assim, o risco que na proposta de Tricart/Journaux era considerado como uma parte dos estudos ecológicos passou a ocupar um posto mais elevado tornando-se o principal objeto do presente trabalho.
O foco nos riscos permitiu um salto qualitativo na identificação individualizada e pormenorizada de cada risco (Nível 1), na abordagem do problema da conexão de causa e efeito entre eles (Nível 2) e na representação gráfica limpa e sintética, favorecendo o fácil entendimento e a tomada de decisão (Nível 3). Assim, todas as tarefas derivadas do Marco analítico conceitual foram adaptadas para se trabalhar com os riscos e não mais com a grande quantidade de informações.
Este elemento do marco analítico-conceitual baseia-se na proposta de Journaux (1985) para traduzir uma grande quantidade de informações através da aplicação de uma representação gráfica associada a uma legenda específica. Segundo Reinehr (2002) e o próprio Journaux (1985, p. 12) esta metodologia de representação gráfica pode ser chamada de Cartografia Dinâmica. Assim, realiza-se a justaposição e superposição de símbolos e de cores, integrando uma representação temática, sintética e relacional que procura apresentar a dinâmica dos riscos ambientais. O resultado deste processo será apresentado e discutido mais adiante.
A cartografia dinâmica foi utilizada em alguns trabalhos na década de 1980, principalmente em grandes projetos financiados por órgãos públicos através de autarquias ou empresas estatais (MINAS GERAIS, 1981; SÃO PAULO, 1985; BAHIA, 1987) e depois, mais recentemente vem sendo resgatada em pesquisas acadêmicas, nitidamente voltadas para a questão da qualidade dos recursos hídricos (SOUZA, 1995; REINEHR, 2002).
É importante notar que, segundo Journaux (1985, p.13), as cartas de síntese obtidas através de seu método de representação permitem alcançar os objetivos de sensibilização aos problemas ambientais:
"São cartas de sensibilização aos problemas ambientais destinadas não só para a tomada de consciência do estado do ambiente e sua dinâmica, mas para sustentar os responsáveis e os administradores numa ação com bom senso".
O interessante neste relato é o contexto em que esta representação aparece. Journaux fora convidado pela Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura (UNESCO), dentro de um programa chamado Man And Biosphere (MAB, em português, Homem e Biosfera), para elaborar um tipo de manual de instruções de como trabalhar com uma ferramenta para a pesquisa e o manejo territorial que havia sido desenvolvida por ele, a Cartografia integrada do ambiente. Neste contexto a ferramenta deve funcionar não só como uma alternativa de pesquisa e manejo, mas como uma proposta de investigação tecnicamente viável e, acima de tudo, socialmente e politicamente útil.
Tanto que um dos primeiros trabalhos realizados no Brasil foi a cartografia do ambiente da Baixada Santista realizada por Journaux sob encomendada e apoio técnico da CETESB (SÃO PAULO, 1985). A função política e social dessa ferramenta ficou evidenciada num dos objetivos principais que foi o especial interesse pelos problemas de Cubatão, que haviam se tornado escândalo internacional, não só pela dimensão dos problemas, mas também pela multinacionalidade das indústrias envolvidas.
A mais recente das aplicações da cartografia dinâmica é a da pesquisadora Marlise Reinehr (2002) que desenvolveu um diagnóstico sobre o Arroio Pessegueirinho, no Município de Santa Rosa – RS. A base de cálculo da qualidade das águas utilizada e o emprego da cartografia dinâmica para a sua representação possibilitaram um diagnóstico bastante inovador para um curso d`água como aquele que cruza a cidade, recebendo vários tipos de efluentes industriais e domésticos.
Em todos estes trabalhos que resultaram em mapas baseados na proposta de Journaux (1985) cabe destacar a especial atenção dedicada a legenda, um dos pontos cruciais na elaboração da cartografia dinâmica.
A legenda proposta por Journaux é dividida em duas partes básicas. A primeira parte é dedicada aos elementos básicos do ambiente, àqueles elementos que tradicionalmente compõem as cartas topográficas. Tanto os elementos ou temas, como as cores e símbolos empregados na sua representação são muito semelhantes aos utilizados em mapas tradicionais: Toponímia e Topografia (cor Cinza); Hidrografia e Hidrologia (Azul); Condições Climáticas (Branco); Espaços Construídos e Rodovias (Laranja); Espaços Cultivados (Marrom); Espaços Verdes (Verde).
Na segunda parte é que se percebe uma diferença marcante com relação às cartas tradicionais. Trata-se de uma legenda específica para ser usada na representação da dinâmica do ambiente. Ela procura realçar os problemas ambientais, que neste trabalho são chamados de riscos ambientais, inclusive através da identificação dos agentes causadores, bem como as medidas corretivas chamadas de propostas de recuperação e/ou trabalhos de defesa ambiental. Assim, esta dinâmica ambiental compreende os seguintes processos: Degradações na Superfície da Terra (Vermelho); Poluição das Águas (Lilás); Poluição do Ar (Roxo); Trabalho de Defesa e Melhoria do Meio Ambiente (Preto).
Na legenda publicada por Journaux (1985) em versão bilíngüe, inglês-francês, foi estabelecida uma munição de símbolos e cores que pode ser adaptada segundo as condições ambientais de cada área de estudo. Uma adaptação desta legenda inicialmente proposta pode ser conferida em São Paulo (1985), e outros.
Dessa forma, a proposta de Journaux (1985) não parece totalmente desconhecida ou nova para aqueles que entram em contato com sua representação gráfica pela primeira vez. Provavelmente isto se deve aos colaboradores e seguidores que ajudaram a difundir esta cartografia. Além disso, merece destaque a íntima relação de muitos brasileiros geógrafos e cartógrafos (além de outros fazedores de mapas) com a escola francesa - uma das que mais influenciou a geografia brasileira. Neste caso se enquadram, principalmente, os pesquisadores ligados à Universidade de São Paulo.
Isso pode ser percebido em trabalhos importantes para esta pesquisa, como o coordenado no final dos anos 80, pelo professor da USP, Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, à pedido da Secretaria de Planejamento, Ciência e Tecnologia do Estado da Bahia e cita na bibliografia e utiliza largamente a legenda de Journaux adaptada para a realidade da pesquisa (BAHIA, 1987).
Também devem ser lembrados os trabalhos do Prof. Marcello Martinelli com seus longos anos de serviços prestados à Geografia em geral e, mais detidamente, à Cartografia Temática Ambiental, ocupa um dos postos mais evidentes da herança e do reconhecimento desta importante escola da representação gráfica francesa. Em sala de aula e em seus trabalhos metodológicos Martinelli (1991; 1997) tem por hábito citar a legenda de Journaux como um importante diferencial na cartografia temática.
Além do Prof. Martinelli cabe mencionar o importante papel estabelecido por outro importante pesquisador ligado à USP, o Prof. Queiroz Neto que, além da colaboração com um mapa (JOURNAUX e QUEIROZ NETO, 1985) na publicação mais famosa de Journaux (1985), também trabalhou ao seu lado na confecção das cartas geomorfológicas e de formações superficiais de alguns municípios do Estado de São Paulo como Marília (QUEIROZ NETO et al, 1977).
Para citar um exemplo um pouco diferente deve-se lembrar do Prof. Oswaldo Sevá Filho que fez doutorado em Geografia na França e que utiliza uma representação gráfica que teve origem na cartografia italiana, mas que é muito semelhante a proposta da escola francesa.
Os elementos práticos do Marco
Este elemento do referencial teórico baseia-se em trabalhos que utilizaram o Mapeamento Participativo de Riscos Ambientais como ferramenta de valorização da experiência e da memória coletiva de comunidades em situação de risco.
Essa proposta de mapeamento remete à relevância de utilizar cientificamente, via análise qualitativa, a percepção e o conhecimento da população envolvida cotidianamente com os riscos ambientais. Essa proposta busca fornecer subsídios para que as comunidades afetadas obtenham maior eficácia na argumentação e no encaminhamento de melhorias, de medidas corretivas e de soluções estruturais. A valorização desse tipo de informação, entretanto, não deve necessariamente ocupar o espaço da pesquisa científica tradicional.
De acordo com Carpi Jr. e Perez Fº. (2003), não se trata de substituir binariamente essa forma de produzir ciência por uma outra, "mais moderna", ou "menos tecnicista". O que se pretende é adicionar e integrar as percepções, os mapas mentais e a memória coletiva junto aos métodos já amplamente utilizados nas pesquisas geográficas e ambientais.
Como exemplo de pesquisas que utilizaram o referencial do Mapeamento Participativo de Riscos destaca-se a pesquisa de Salvador Carpi Junior realizada na Bacia Hidrográfica do Rio Mogi, a partir de uma demanda do Comitê de Bacia hidrográfica daquele rio para ser implementada pelos Municípios. Segundo Carpi Jr. (2001), enquanto o cientista enxerga a paisagem a partir de um enfoque mediado pelos seus objetivos, o processo perceptivo tenta apreender a paisagem com uma visão mais integrativa ou conjuntiva.
Outra pesquisa que utilizou a percepção aliada ao mapeamento de riscos foi o projeto coordenado por Oswaldo Sevá Filho que tratou da identificação e mapeamento de riscos técnicos coletivos ambientais na Região de Campinas – SP. Nesse trabalho, Sevá Fº. (1997, p. 3) coloca grande ênfase na questão da percepção ambiental:
"Sabe-se que, em geral, a percepção das pessoas é subestimada em relação ao conhecimento chamado de técnico ou científico, o qual é apresentado para o público com uma linguagem pouco accessível, o que se constitui, muitas vezes, em uma forma a mais de segregação cultural e até, de discriminação social."
Também com base nesta experiência, Sevá Fº. (1997, p.3) ressalta que a abordagem de riscos e a dinâmica das atividades de mapeamento sejam baseadas em outro tipo de relação pedagógica:
"Isto porque a nossa forma de abordar o assunto, e a dinâmica que propomos para as atividades em sala de aula, serão baseados em outro tipo de relação pedagógica. Os participantes deste curso aprendem muito mais uns com os outros, e também, consigo próprios, na medida em que sejam estimulados a sistematizar o seu próprio conhecimento adquirido na experiência da vida, como cidadão, como trabalhador, como participante de movimentos associativos, sindicais ou, simplesmente, como morador e usuário da cidade e da região." (grifos do autor, no original).
O estímulo ao conhecimento do ambiente e dos riscos e também do auto-conhecimento é também muito presente na proposta de mapeamento de riscos de Sevá Fº. (1997, p. 1):
"A relevância de um mapeamento de riscos ambientais está em conseguir-se elaborar um produto de aplicação didática para usar na formação de outras lideranças, e na educação popular. Algo em que os cidadãos se apoiem para o entendimento da própria região e de alguns dos seus próprios problemas."
Outro exemplo de percepção e participação é o Diagnóstico Ambiental Participativo do Vale do Ribeira e Litoral Sul de São Paulo (IBAMA/SMA/UNICAMP, 1998, p. 13):
"as várias metodologias de planejamento participativo existentes diferem entre si quanto ao grau de decisão (intervenção) dos mediadores e dos representantes dos atores em cada uma das etapas (planejamento, execução e interpretação). Nesse caso, a mediação teve o papel de convidar ao desvendamento dos problemas ambientais, em vez de apenas relacioná-los".
Finalmente, cabe ressaltar que diferentemente do que costuma ocorrer nas pesquisas oficiais e universitárias, onde é comum se deixar de lado e até menosprezar os fatos de domínio público, aquelas informações que todos conhecem ou os boatos. Pelo contrário, deve-se valorizar a memória coletiva, principalmente em relação aos eventos e circunstâncias que poderiam levar à identificação dos responsáveis por determinados riscos que afetam a coletividade humana.
Como lembra Carpi Jr. (2001, p. 65):
"No âmbito das pesquisas ambientais, tem se realizado uma série de diagnósticos considerados participativos ou que encerram tentativas de incluir a participação da comunidade no levantamento de problemas relacionados ao ambiente de determinadas áreas. Mesmo tratando-se de abordagens participativas, o alvo principal pode ser apenas "administrativo", quando pretende administrar e acomodar conflitos, sem ações destinadas a aumentar a consciência e atuação política das populações.
Estes diagnósticos devem ser analisados criticamente em função de seus aspectos positivos e de suas eventuais limitações, a fim de possibilitar estabelecer uma nova visão de pesquisa que possa conciliar o melhor possível, o conhecimento técnico - científico com o conhecimento intuitivo e da percepção da população ligada às questões ambientais, e contribuir ao engajamento político da sociedade."
Especificamente sobre o processo de organização das reuniões públicas de mapeamento durante o "Projeto Anhumas", detalhado em Dagnino e Carpi Jr. (2006), pode ser resumido nas seguintes etapas: 1) levantamento de prováveis convidados e participantes; 2) estabelecimento de critérios de divisão da bacia em três setores (alto, médio e baixo cursos); 3) delineamento de estratégias de divulgação do evento; 4) elaboração e impressão de bases cartográficas apropriadas para o mapeamento (as escalas devem ser adequadas para que sejam visíveis os nomes das ruas e bairros, bem como pontos de referência como escolas, hospitais, parques e prédios públicos); 5) divulgação e convocação feita a partir de contatos diretos com as associações de bairros e lideranças comunitárias, através da fixação de cartazes, distribuição de panfletos e envio de e-mails, entre outras; 6) realização de uma reunião pública de mapeamento de riscos ambientais para cada setor (com exceção do Alto curso, que em função da complexidade do centro da cidade mereceu duas reuniões).
Sobre a reunião de mapeamento de riscos, cabe aqui um detalhamento maior. A reunião é dividida em dois períodos. No primeiro é realizada uma alfabetização geográfica baseada em Sevá Fº. e Carpi Jr. (2001). Nesta alfabetização, que é geográfica mas também é cartográfica, é fomentada a capacidade de leitura e abstração dos fatos geográficos presentes no mapa, além da familiarização dos participantes com o ambiente no qual estão inseridos, mas que muitas vezes perde significado ao ser representado graficamente. Nesta etapa inicial do mapeamento é pedido que os participantes desenhem, ou cartografem, alguns pontos de referência e áreas mais conhecidas com o intuito de contribuir neste processo de alfabetização.
Depois da alfabetização geocartográfica, como será chamada a partir daqui, é realizado o mapeamento de riscos ambientais propriamente dito, sempre buscando a valorização das percepções, experiências, mapas mentais e a memória coletiva. Além disso, busca-se o diálogo interno para que os participantes - habitantes em situação de risco - troquem idéias e experiências sobre o tema. Por fim, o mapa que sai desta reunião acaba sendo um reflexo desta diferentes percepções.
Um dos aspectos mais importantes para que os participantes sejam estimulados a participar é a certeza de que os mapas e tabelas não conterão informações pessoais. Nas reuniões de mapeamento as pessoas se apresentam dizendo o seu primeiro nome e o da entidade/instituição, para o caso de pertencerem ou representarem alguma. Para critério de tomada de informação, não é efetuada uma caracterização detalhada dos participantes, tal qual na maioria das pesquisas que utilizam a população como fonte de informações, particularmente no caso daquelas que realizam análise qualitativa.
Assim, na etapa de confecção das tabelas e dos mapas é preservado o anonimato da fonte das informações (nome dos participantes) bem como o conteúdo específico dos relatos. Além disso, também não é efetuada nenhuma forma de captação audiovisual que permita identificar posteriormente as pessoas ao seu relato. Tudo isto visa à criação de um ambiente favorável à colocação de idéias, denúncias, indignações e indicações de situações de risco, de tal forma a evitar possíveis constrangimentos e retaliações futuras. O que é importante na reunião pública de mapeamento é a localização, o tipo e a característica do risco, não a pessoa que o identifica.
Também os aspectos espaciais referentes à ocorrência dos riscos – se são pontuais, lineares ou areais – recebem grande atenção. Nesse sentido as sugestões e opiniões dos participantes, inclusive as dos profissionais que fazem parte do projeto, são entendidas como etapa importante no aprimoramento do método. Principalmente as sugestões quanto à definição de riscos e quanto ao tipo ou natureza desses. Aqui também entra a colaboração na definição dos ícones dos riscos ambientais e suas cores a serem desenhados pelos participantes com canetas hidrocor sobre o papel. Para as reuniões públicas de mapeamento os riscos receberam a seguinte simbologia: Ar e poluição atmosférica - triângulo amarelo; Água - quadrado azul; Solo, agricultura e mineração - estrela marrom; Resíduos e contaminações - losango preto; Vegetação e animais - coração verde; Fatores de Vulnerabilidade Social - círculo vermelho.
Depois disso, foi feita a compilação dos dados obtidos na reunião através do tratamento computacional (digitalização, georreferenciamento e tratamento das cores e ícones), do que foi desenhado e anotado nas tabelas, durante as reuniões de mapeamento, formando um banco de dados pronto para ser trabalhado como um Sistema de Informação Geográfica. Por último, realizou-se a apresentação dos dados numa nova reunião pública visando à elaboração de um prognóstico em conjunto com a comunidade.
Como em outros trabalhos deste tipo, especialmente o trabalho de Sevá Fº. (1997), as informações levantadas e compiladas em reuniões públicas são consideradas exploratórias e preliminares, mas são sempre registradas. As informações levantadas nessas reuniões são fragmentos de conhecimentos de domínio público e/ou de memória coletiva e representam algumas percepções e preocupações dos participantes e abarcam um determinado intervalo de tempo (período em que foram realizadas as reuniões). Dessa forma o mapeamento não pretende ser completo, pelo contrário ficam questões passíveis de serem aprofundadas (questões como, por exemplo, se realmente existe risco em tal local?) e questões para serem atualizadas (como no caso de um risco desaparecer ou o aparecimento de riscos onde antes não havia). Com isso abre-se a perspectiva de análise e de aprofundamento para que futuros estudos venham a detalhar aspectos apontados, e para que se proceda a avaliação criteriosa dos riscos e as circunstâncias de seu aparecimento.
Este segundo elemento do referencial procura tornar aplicável um conceito de risco que busca a aproximação, por um lado, de uma definição aceita cientificamente e baseada na bibliografia internacional e, por outro, do entendimento popular que transpareceu durante as reuniões de mapeamento ocorridas durante o Projeto FAPESP "Recuperação ambiental, participação e poder público: uma experiência em Campinas".
Risco corresponde à possibilidade de que um evento (esperado ou não esperado) torne-se realidade, ou seja, se algo pode vir a ocorrer existe um risco. Esse conceito é conhecido na cultura ocidental há muitos séculos. Diferentemente disso, outras culturas como, por exemplo, a cultura japonesa não possui um equivalente direto para a palavra risco (PELLETIER, 2007).
A ausência de um acordo na terminologia e a necessidade em tratar deste tema chegou a inspirar a inauguração de uma nova ciência, desenvolvida ao longo de dois eventos promovidos pela UNESCO, um em 1987 e o outro em 1989 (FAUGÈRES et al, 1990). Essa "ciência nascente" chamada de Cindínica ou Cindinicologia teria por objetivo "estudar e limitar os riscos aos quais estão expostas as populações" (FAUGÈRES, 1991 apud REBELO, 1995, p. 66).
Levantamentos mais recentes como os realizados por Marandola Jr. e Hogan (2004) e por Veyret (2007), por exemplo, sugerem que a disputa por um conceito unificador para trabalhar com os problemas e alterações ambientais abrange muitos termos, tais como riscos, acidentes, áleas (do inglês, hazard), desastres, etc. Sendo que muitas vezes são utilizados nomes diferentes para tratar ou designar as mesmas coisas.
Entretanto, fugindo pela contra-mão deste movimento cartesiano de definições e de padronização, serão privilegiados os enfoques ligados de alguma forma ao "anarquismo metodológico" ou às formas mais libertárias de conceber o que é e o que não é ciência.
Nesse sentido as teorias da Relatividade (Einstein), da Incerteza (Heisenberg), da Probabilidade e da Lógica nebulosa ou difusa (no original, Fuzzy Logic), parecem colaborar numa definição de riscos que seja útil para esta pesquisa. Segundo Sevá Fº. (2005), e de acordo com estas teorias da física moderna, quanto mais perto se chega de uma conclusão objetiva e realista sobre o grau dos problemas e a qualidade dos riscos, mais a conclusão sobre este tema será relativa e incerta. Semelhante à máxima que afirma que quando se conhece a velocidade ou o movimento de um evento não se tem condições de determinar sua localização exata, e vice versa.
A saída para este dilema é reconhecer a possibilidade de se estar sempre mais ou menos equivocado nas certezas e que se deve contar com as experiências e percepções dos outros, sejam de uma cultura comum, sejam completos estranhos. Dessa forma, a interpretação sobre a possibilidade de algo ser definido como risco deve ser mediada pela experiência e honestidade individual do pesquisador aliada a memória coletiva daqueles que já vivenciaram algo semelhante.
De acordo com Amaro (2003, p. 117) a postura individual de negar ou subestimar um risco pode acarretar em um fenômeno conhecido pela psicanálise como recalcamento, que significa recusar inconscientemente em admitir imagens, acontecimentos, lembranças e representações de perigo. Dessa forma, parece plausível que a melhor forma de encarar o risco é não tratá-lo como uma ameaça rara, uma atividade incomum ou exógena, é admitir que ele representa uma ameaça possível, muitas vezes habitual ou familiar às atividades humanas. Segundo Amaro (2003, p. 117) essa é uma forma de não entrar em crise pessoal quando algo ocorrer, dado que: "a probabilidade do perigo aumenta com a convicção bem assente de sua impossibilidade".
Por outro lado, além das questões psicológicas e/ou individuais, segundo Di Giulio (2006, p. 48), a maior parte dos estudos de risco está preocupada com a escala coletiva. Provavelmente este seja o reflexo de uma abordagem sobre os riscos que dedica grande atenção para a política, a comunicação e a cultura. Veyret e Meschinet de Richemond (2007, p. 49) tratam desse assunto:
"Nesse sentido, "a cultura" do risco pode ser definida como um conhecimento e uma percepção da ameaça comuns a um grupo social."
Admitindo a possibilidade como o mecanismo de funcionamento do risco, parte-se em direção a uma classificação. Nela, o risco está presente em situações ou áreas em que existe a possibilidade, susceptibilidade, vulnerabilidade, acaso ou azar de ocorrer algum tipo de ameaça, perigo, problema, impacto ou desastre. Segundo Amaro (2005, p.7):
"O risco é, pois, função da natureza do perigo, acessibilidade ou via de contacto (potencial de exposição), características da população exposta (receptores), probabilidade de ocorrência e magnitude das conseqüências".
Em outras palavras o mesmo autor (idem, 2005, p. 8) expõe a face premonitória sobre a análise de riscos dado que:
"Embora as definições e interpretações sejam numerosas e variadas, todos reconhecem no risco a incerteza ligada ao futuro, tempo em que o risco se revelará".
De toda a vasta definição de riscos, devem ser destacadas quatro que serão detalhadas nesse trabalho: os riscos naturais, os riscos tecnológicos, os riscos sociais e os riscos ambientais.
O risco natural é a denominação preferida para fazer referência aos riscos que não podem ser facilmente atribuídos ou relacionáveis à ação humana. Embora, nos dias de hoje, essa seja uma tarefa cada vez mais difícil, Rebelo (2003, p. 11-22) apresenta a seguinte tipologia de riscos naturais: riscos tectônicos e magmáticos; riscos climáticos; riscos geomorfológicos, os mais típicos, tais quais ravinamento, de movimentações de massa (desabamento, deslizamento) e outros riscos geomorfológicos como os decorrentes da erosão eólica e do descongelamento de neves de altitude; e riscos hidrológicos. Outra expressão para designar o risco natural, bastante usada por Sevá Fº. (1988), é o termo Risco Telúrico.
Sobre risco tecnológico cabe destacar que, segundo Sevá Fº. (1988, p. 81), a abordagem desse tipo de risco deve levar em conta três fatores indissociáveis: o processo de produção (recursos, técnicas, equipamentos, maquinário); o processo de trabalho (relações entre direções empresariais e estatais e assalariados); e a condição humana (existência individual e coletiva, ambiente). Onde pelo menos um desses fatores for encontrado haverá risco tecnológico ou haverá a possibilidade de ocorrer um problema causado por um risco tecnológico.
Segundo Vieillard-Baron (2007, p. 276), devido a polissemia da expressão social, pode-se qualificar de risco social a maior parte dos riscos, "quer nos atenhamos às suas causas sociais, quer atentemos para suas conseqüências humanas". Nesse sentido, o Vieillard-Baron (2007, p. 279) distingue dois tipos de riscos principais que podem afetar ou ser afetados pelos riscos sociais e a sociedade humana, são os chamados riscos endógenos, relacionados aos elementos naturais e as ameaças externas (por exemplo, terremotos, epidemias, secas e inundações); e os riscos exógenos, relacionados diretamente ao produto das sociedades e as formas de política e administração adotadas (como o crescimento urbano e a industrialização, a formação de povoamentos e a densidade excessiva de alguns bairros).
Na interpretação de Vieillard-Baron (2007, p. 279), a abordagem transdisciplinar dos riscos sociais carece da conexão de diferentes saberes:
"Os riscos sociais implicam uma pluralidade de atores e resultam da combinação de um grande número de variáveis, particularmente difíceis de serem consideradas ao mesmo tempo. Para descrevê-los e contribuir para a formação de políticas de prevenção, o geógrafo é interpelado em primeiro plano, mas ele deve se situar no encontro de várias especialidades: geografia física e humana, evidentemente, mas também, e de maneira não exclusiva, na intersecção dos ensinamentos da história, das ciências políticas, do direito e da psicossociologia."
Neste trabalho será priorizado o termo risco ambiental, pois as situações de risco não estão desligadas do que ocorre em seu entorno (o ambiente, em seu sentido amplo), seja o ambiente natural, seja o construído pelo homem (social e tecnológico). Assim, o risco ambiental torna-se um termo sintético que abriga os demais sem que eles sejam esquecidos ou menosprezados. De acordo com a conceituação de Veyret e Meschinet de Richemond (2007, p. 63), os riscos ambientais:
"Resultam da associação entre os riscos naturais e os riscos decorrentes de processos naturais agravados pela atividade humana e pela ocupação do território."
Ademais, além dessas definições de riscos outros termos interessantes que podem ser incorporados ao vocabulário cindínico desse trabalho é o Sistema de Riscos e a Bacia de Risco.
Sistema de Riscos é utilizado para enfatizar quando um risco é fortemente interligado a outros, no espaço e/ou no tempo. Sistema de Riscos pode ser utilizado para explicar as ligações entre causa e efeito, tanto em macroescala, como no caso da bacia hidrográfica ou de região metropolitana, como em microescala, como no exemplo a seguir que trata de instalações industriais (PERROW, 1983 apud SEVÁ Fº., 1988, p. 111):
"Suponha que o sistema seja ‘fortemente interligado’, isto é, que as coisas aconteçam rapidamente, o sistema não possa ser desligado nem as partes defeituosas possam ser isoladas umas das outras, nem haja nenhuma outra maneira de manter a produção funcionando com segurança. Então, a recuperação da falha inicial não é possível, e ela irá se propagar rápida e irrecuperavelmente, pelo menos por algum tempo."
Esse é o tipo de risco que já ocorre atualmente quando vários riscos se interconectam, e que podem facilmente, se forem ampliados para macroescala, se tornar um desastre de proporções assustadoras. É o caso de acontecer alguma coisa grave com a maior refinaria de petróleo do país, a REPLAN, localizada há cerca de 10 km da Bacia do Ribeirão das Pedras e do Distrito de Barão Geraldo, no município de Paulínia.
Além disso, o Sistema de Riscos pode ser exemplificado por outro risco que esta região não esta totalmente imune, o risco de acidente nuclear (SEVÁ Fº., 1997, p.55):
"Na região de Campinas, SP, não estamos fora do raio de ação de um acidente nuclear grave, por exemplo, na hipótese de fusão de um reator com formação de nuvens radiativas, a partir de Iperó [onde existe uma base da Marinha Brasileira] que dista aproximadamente 100 km a Oeste, e fica na mesma altitude média de 650 metros, sem anteparos ou serras no caminho) - e, a partir da praia de Itaorna, entre Angra dos Reis e Paraty, RJ, a aprox. 250 km a Leste, com dois degraus de serra, a 900 metros de altitude (Serra do Mar) e a 1400 metros (Mantiqueira) nos separando do foco hipotético do acidente."
O outro conceito que pode ser incorporado a essa pesquisa aparece de maneira um pouco mais sutil do que o anterior. Trata-se o termo Bacia de Riscos, cunhado por Rebelo (2003, p. 262), e que procura reforçar igualmente a idéia de interligação:
"A convergência num local ou mesmo numa região de dois ou mais riscos, que até podem vir a manifestar-se ao mesmo tempo, originando crises complexas, leva a que a esse local ou região se dê o nome de bacia de riscos".
Esse é o caso quando existe a convergência de riscos de origem natural com riscos de origem tecnológica e/ou social; por exemplo, forte precipitação (natural), associada à ocupação de várzeas (social) e a construção de avenidas e a retilinização de um curso dágua (tecnológica). Fazendo aparecer uma área que é alagada constantemente onde antes havia brejos e matas ciliares. Neste caso existem vários riscos de origem diferentes e que juntos contribuem para formar uma bacia de riscos. Percebe-se que analisar independentemente um risco do outro perde sentido pois na realidade o problema diz respeito à complexidade e convergência dos diversos riscos formando uma situação particular.
Em outro trecho, Rebelo (2003, p. 266) reforça ainda mais a viabilidade de um uso do risco sob a perspectiva da geografia:
"E quando nos colocamos numa perspectiva geo-cindínica, isto é, quando fazemos intervir a Geografia na teoria do risco, o que se verifica é que para um só local podem estar presentes diversos riscos, levando à constatação da existência de verdadeiras bacias de riscos, não sendo de desprezar a hipótese de que eles possam até um dia manifestar-se em conjunto."
Se por um lado o conceito de Sistema de Riscos se assemelha ao de Metabolismo urbano, com suas seqüências e fluxos direcionados e bem conectados; por outro lado, existe certa semelhança entre a definição de Bacia de Riscos e o já mencionado conceito de Bacia Urbana, sendo que, para uma Bacia Urbana delimitada quase sempre corresponderá uma Bacia de Riscos, mais ou menos coincidente espacialmente.
Ao final, o importante é perceber que, apesar dos conceitos e suas definições, a utilização dos riscos como sinalizador de problemas ambientais é a convicção de que, quando se fala em risco se está direta ou indiretamente falando do ser humano individualmente ou em sociedade. Dessa maneira, o risco é sempre um objeto social, como afirma Veyret (2007, p. 11):
"Não há risco sem uma população [ser social] ou indivíduo [ser biológico] que o perceba e que poderia sofrer seus efeitos. Correm-se riscos, que são assumidos, recusados, estimulados, avaliados, calculados. O risco é a tradução de uma ameaça, de um perigo para aquele que está sujeito a ele e o percebe como tal."
O risco é sempre um objeto social. Seja quando uma comunidade ou indivíduo específico são atingidos, vivenciam ou sofrem com um risco natural ou telúrico (que de certa forma independe de suas ações diretas), seja quando um determinado grupo industrial polui um rio à montante e uma comunidade de pescadores sofre com isso à jusante; assim, o homem é o centro das atenções. Nas palavras de Rebelo (2003, p. 256-257):
"O homem existe à face da Terra e o que se passa num local é sempre susceptível de desencadear num outro qualquer local ou num outro tempo para o mesmo local."
Atualmente, nas camadas superficiais do planeta Terra não existem locais que já não tenham sido modificados e/ou estão imunes de sofrer algum tipo de risco originado pela ação humana. Seja em função das mudanças climáticas globais estimuladas pelo homem, seja através das diversas outras ações (e reações) motivadas pela sua presença, o ambiente habitável para a espécie humana (uma estreita camada de alguns quilômetros de espessura na crosta terrestre) é cada vez mais abalado pelos riscos provocados pela própria espécie.
Dessa forma, um tipo bastante abrangente de risco é o risco antropogênico (de anthropos, homem; e gênico, gênese, origem). Riscos antropogênicos são originados a partir da condição humana de ser social (cultura) e ser econômico (produção/reprodução da natureza).
A interdependência entre a natureza e as ações humanas é uma constante na história ocidental. Segundo Franco (2002, pág. 7-9) em Platão, aproximadamente 400 anos a.C., no diálogo intitulado Timeu, aparece a idéia de que o Universo pode ter sido criado como um "animal dotado de alma e de razão". O risco que representa a ação do homem sobre a natureza já estava presente embrionariamente desde a Bíblia e as interpretações zoomórficas de Kepler - com a idéia de que a Terra era viva (Anima Terrae) - até chegar mais recentemente na noção "hippie" de Gaia elaborada na década de 1970 por Lovelock (1989) e a obra de "marketing" sobre o aquecimento global de Gore (2006).
Apesar da relevância, esta análise filosófica sobre a história da relação natureza-homem e os problemas ambientais será deixada para outra oportunidade. Por ora serão tratados os riscos gerados pela ação humana que mais importam para o presente trabalho.
Na experiência de Sevá Fº. (2005b, p.287), em pesquisas ambientais realizadas atualmente é importante notar que existem novas entidades geográficas que não existiam em ambientes anteriormente escrutinados por outros observadores.
Estas novas entidades geográficas podem ser exemplificadas pelas relativamente simples novas formas de relevo, ocasionadas por aterros, cortes de estradas e sedimentos marinhos, até, de maneira mais complexa, os sistemas hídricos inéditos, ocasionados pela transposição de bacias ou pela construção de megahidrelétricas.
Neste aspecto existe um importante ponto de confluência entre diversas abordagens citadas até aqui: de um lado, as alterações no ambiente, traduzidas nos antropossolos, nos riscos, na ocupação do território, na aculturação das paisagens, na criação de novas entidades geográficas; de outro lado, na representação dessas alterações ambientais, através de mapas que estejam atentos e comprometidos com a mudança, com a diversidade das criações humanas. Este tipo de mapa parece ser a chave que falta para demonstrar as inter-relações e interdependências entre os eventos (causa-efeito) no espaço.
Porém, se antes, no texto, foi falado de filosofia e agora acabou-se de tocar no tema do mapeamento, que será exemplificado em breve, é chegada a hora de tratar da questão jurídica. Trata-se da confusão entre risco e impacto, patrocinada pela legislação brasileira.
A noção de risco ambiental utilizada neste trabalho não deve ser confundida com a de impacto ambiental, que entrou em voga a partir da aceitação e reprodução do vocabulário jurídico iniciado na Política Nacional do Meio Ambiente (BRASIL, 1981) e na Resolução 001/1986 do CONAMA, que trata do Licenciamento ambiental (BRASIL, 1986).
Risco ambiental remete à possibilidade da ocorrência de eventos danosos ao ambiente, enquanto que para a legislação, que trata de Licenciamento, a noção de impacto ambiental está ligada à repetição de algo que já aconteceu e que poderá significar um evento positivo ou negativo, podendo comprometer a licença para instalar um empreendimento em determinado local. Impacto ambiental tem a ver com a localização exata do fato ou a investigação da responsabilidade, que é necessário em qualquer perícia ambiental, e sua qualificação, que determinará se um impacto é altamente danoso ou não.
Nesse sentido pode-se dizer que a identificação de um risco precede temporalmente a identificação de algo impactante, sendo a noção de risco mais abrangente para mostrar os diversos efeitos que um determinado evento pode ocasionar. Por outro lado, pode acontecer que um impacto constatado num determinado local origine a percepção sobre as alterações ambientais e a possibilidade de riscos em outros. Nesse sentido, o impacto tem a característica de algo rápido e "impactante" enquanto que o risco e a alteração podem remeter à algo lento e sutil.
Para Brüseke (1997, p. 124-125), apud Carpi Jr. (2001, p. 56):
"O risco ambiental não pode ser confundido com o anúncio de um fato x na hora y. O risco não expressa uma corrente de determinações que conduzam necessariamente a um resultado prognosticado. Por isso, falar sobre riscos, no campo ambiental, tem sempre o caráter de um alerta".
O uso do termo impacto deve ser evitado, optando-se pela proposta de Carpi Jr. (2001, p. 71) de um conceito abrangente de risco ambiental:
"Os impactos ou alterações do ambiente passam a se configurarem como formas de risco ambiental, que ao ser percebido ou conhecido pelo homem, pode se transformar como ponto de partida para as ações que visem a melhoria da qualidade de vida, juntando esforços dos diversos setores da sociedade."
Dessa forma, mesmo sendo conceitos diferenciados, a ocorrência de "impactos" ambientais em um local deve ser elemento indicativo na identificação e localização de riscos em outros locais ou épocas, em virtude da possibilidade de repetição, no espaço e no tempo, dos eventos em situações similares.
Ao deixar de lado a visão tecnicista ou jurídica sobre os efeitos de impacto e partir para a abordagem dos riscos, abre-se a porta para a percepção. Levar em conta a percepção riscos permite abrir espaço para que se questionem ou coloquem em dúvida laudos técnicos ou pareceres de pesquisadores sobre os quais pode pairar alguma desconfiança. O respeito pelas diferentes percepções que um risco pode ter, mediadas pela vivência e pelo olhar acostumado com os ritmos e as sutilezas das modificações ambientais, permite que se enxerguem desvios nas médias pluviométricas mensais, permite entender porque determinada área é mais vulnerável a sofrer com deslizamentos do que outra de feição geomorfológica semelhante. A percepção de riscos permite que se questione sobre a qualidade das águas em rios que esporadicamente (não por acaso, justamente quando os fiscais ambientais terminam o expediente ou tiram férias) são lançadas cargas incomuns de poluentes. Rios estes que podem até apresentar bons indicadores físico-químicos, mas que, segundo a população, podem ser mal-cheirosos.
A percepção ambiental sensível e atenta dos cidadãos - sejam eles, trabalhadores, agricultores, pescadores ou pesquisadores - deve ser considerada uma fonte ou parâmetro de indicador de qualidade ambiental. De acordo com pesquisa realizada por Lima e Silva (2002, p. 25), o ser humano pode ser considerado um importante bioindicador pelo fato de possuir alta sensibilidade às alterações ambientais, não só através dos efeitos de diminuição da vitalidade, como também por sintomas externos característicos, devido a sua alta capacidade perceptiva.
Tradicionalmente, quando são utilizados bioindicadores em pesquisas sobre qualidade ambiental, é dada preferência para algumas espécies de peixes sensíveis à poluição hídrica e/ou líquens e borboletas sensíveis à poluição atmosférica, como o caso recente de borboletas analisadas nas proximidades da Unicamp e que indica, pelo menos para as borboletas, que a qualidade ambiental está boa (NASCIMENTO, 2007).
Por outro lado o uso de bioindicadores humanos pode ser menos dispendioso e mais eficiente do que os outros tipos. Isto fica evidenciado em Zonneveldt (1983) apud Lima e Silva (2002, p. 26) que argumenta que os bioindicadores freqüentemente expressam valores cumulativos de alterações ambientais flutuantes e sutis que não podem ser medidos usando métodos físicos ou químicos; estes últimos são caros e/ou despendem de muito tempo para repetição; a combinação de efeitos pode ser mais importante que os fatores separados; e o uso de bioindicadores é uma maneira de perguntar ao paciente como ele está se sentindo. Em outras palavras e trazendo a questão dos bioindicadores para o âmbito dos riscos ambientais, cabe destacar as palavras de Carpi Jr. (2001, p.57):
"De qualquer forma, a referência principal para a avaliação dos riscos ambientais é o próprio homem, com as possibilidades de ser atingido pelas transformações do ambiente, mesmo que anteriormente afetando outros seres vivos. De forma progressiva, tem ocorrido um aumento da pressão antrópica sobre os recursos naturais, e conseqüentemente, mais populações ficam expostas às alterações do ambiente e situações de riscos."
O respeito às diferentes opiniões e interpretações sobre o ambiente e sobre o quê representa risco, e o estímulo para que essas diferenças venham à tona, contribuem para fortalecer o debate e o conhecimento de realidades diversas, como por exemplo, problemas enfrentados num determinado local e que se repetem noutro - a isso se dá o nome de comunicação de risco e tem conquistado cada vez mais espaço nos meios acadêmicos.
Além de um processo de auto-conhecimento e de exercício da participação em que o cidadão, ao identificar os riscos que lhe são próximos, pode ser despertado para perceber seu papel ativo em muitos processos generativos ou propagantes de riscos, e por outro lado, fornecer ferramentas que lhe permita buscar os responsáveis por tal risco. Sem desmerecer o debate sobre as indenizações das seguradoras e os ajustes de conduta quando fica comprovada uma situação de risco, o que mais interessa é a capacidade que os grupos sociais têm para ser informar e se conscientizar sobre os riscos.
Esse trabalho supõe que a população que convive com as situações de risco ambiental é tão capacitada para identificá-las quanto os técnicos e pesquisadores que as estudam. Esse trabalho só poderá ser considerado bem sucedido na medida em que for colocado em primeiro plano o respeito e a valorização da percepção e as formas pelas quais os diferentes setores da sociedade podem contribuir para a identificação das situações de risco e prevenção aos danos associados a eles.
Finalmente, poder-se-ia dizer que o termo Risco Ambiental utilizado neste trabalho é um híbrido formado a partir das noções utilizadas pelos participantes das sessões de mapeamento. A função da equipe de riscos foi estimular a imaginação durante aquelas reuniões, propondo os mais diversos tipos de risco. E isso, ao final, redundou em um conceito de risco muito mais complexo do que os pesquisadores jamais se permitiriam prever.
Este capítulo apresenta os dois conjuntos de procedimentos metodológicos empregados para levar a cabo a produção do Mapa de Riscos Ambientais: (a) Tratamento do Banco de Dados: análise, digitalização, filtragem, exclusão e reagrupamento dos dados obtidos pela equipe de Mapeamento de Riscos Ambientais do "Projeto Anhumas" - FAPESP; e (b) Adaptação da legenda de Journaux para a representação dos riscos na Bacia do Ribeirão das Pedras: adaptação da representação cartográfica da dinâmica do ambiente, correspondente à segunda parte da legenda de Journaux (1985) para a representação específica dos riscos ambientais. A seguir são apresentados estes dois conjuntos de procedimentos.
O primeiro conjunto: Tratamento do Banco de Dados
O primeiro conjunto de procedimentos, denominado de Tratamento do Banco de Dados corresponde às últimas etapas de trabalho da Equipe de Riscos durante o "Projeto Anhumas" - FAPESP e pode ser apreciado com maior detalhe na parte destinada à Equipe de Riscos dentro do Relatório Final do Projeto, em Carpi Jr. et al (2006).
Esta etapa de Banco de dados foi essencial para facilitar a interpretação das situações de risco, tanto pela mais elementar organização em linhas e colunas que permite uma visualização rápida dos cruzamentos entre os dados, seja com relação às derivações dessa organização elementar que são as análises de causa e efeito. Em função dos objetivos dessa pesquisa e do desejo de que outras pessoas futuramente possam trabalhar à vontade com os dados, essa etapa configura-se como uma condição necessária para a etapa seguinte, de adaptar a legenda da cartografia dinâmica para o mapeamento de riscos na Bacia do Ribeirão das Pedras.
Nesta etapa foi feito o tratamento dos dados levantados ao longo das reuniões públicas de mapeamento de riscos do "Projeto Anhumas", e durante trabalhos de campo e de validação, em etapa posterior. Assim como a digitalização dos mapas elaborados durante as referidas reuniões.
Em pormenores, as informações relatadas verbalmente nas reuniões eram preenchidas à lápis ou caneta em tabelas previamente elaboradas pela equipe, depois disso as informações eram digitalizadas em formato de planilhas. Formando-se assim uma série de planilhas em extensão "DBF", compatível com os Softwares utilizados tanto para o Geoprocessamento (Arcview, da empresa ESRI) quanto para o tratamento estatístico (Excel, da Microsoft). As bases cartográficas utilizadas pela Equipe de Riscos durante o "Projeto Anhumas", que também foram utilizadas nessa dissertação, bem como o tratamento e adaptação que elas sofreram é explicitado em Adami et al (2006) e Briguenti (2005).
A partir disso, os dados dos mapas provenientes das reuniões públicas de mapeamento de riscos foram digitalizados em forma de pontos, linhas e áreas por meio do software Arcview. Isto permitiu que se trabalhasse digitalmente, associando as tabulações de dados e informações estatísticas (da etapa anterior) com os dados espaciais (resultantes desta etapa) através da interface computacional.
Durante o "Projeto Anhumas" foram realizados procedimentos técnicos, utilizando os softwares anteriormente citados, que envolveram a filtragem, exclusão e reagrupamento de dados. A intenção de realizar estes procedimentos foi a de encontrar semelhanças e feições desviantes do padrão dos riscos mapeados. Ao final deste processo foram obtidas 675 situações de risco para a Bacia Hidrográfica do Ribeirão das Anhumas e algumas áreas de entorno, que haviam sido mencionadas nas etapas de mapeamento participativo.
Para este presente trabalho, foram excluídos os riscos que não diziam respeito à bacia hidrográfica do Ribeirão das Pedras e áreas limítrofes. Assim partiu-se de aproximadamente 200 riscos mencionados em três reuniões públicas de riscos do "Projeto Anhumas", sendo que 170 foram mencionados em duas reuniões em Barão Geraldo, na escola Barão Geraldo de Resende (ocorridas nos dias 27/11/2004 e 4/12/2004 e que contaram com a participação de 44 e 42 pessoas, respectivamente). Além disso, mais algumas informações coletadas no dia 10/9/2005, durante a reunião na Escola Ana Rita Godinho Pousa, que contou com 79 participantes e que levantou 235 situações de risco no trecho médio e baixo da bacia do Rib. das Anhumas. Nesta reunião o que mais interessou foram os dados referentes à parte baixa da bacia, como foi chamada durante o "Projeto Anhumas" a área onde se localiza o Ribeirão das Pedras.
Após o processamento dos dados foi feito um trabalho que permitiu filtrar, excluir dados repetidos e incluir riscos que haviam ficado de fora do mapeamento. Ao final desta etapa, restaram 120 situações de risco para a Bacia do Ribeirão das Pedras e entorno. Com o reagrupamento, que será tratado com detalhe adiante, conseguiu-se perceber 26 padrões de riscos agrupados em 8 situações ou temas principais.
Com a construção do Banco de Dados e sua posterior análise conseguiu-se atingir outro objetivo, que foi o de adotar uma legenda para demonstrar de maneira sintética a distribuição dos temas abordados, além da relação causal entre a origem e os efeitos dos riscos percebidos em cada tema.
Os trabalhos de campo foram constantes devido ao fato de que é uma bacia que drena as águas da Unicamp (instituição que proporcionou a realização deste trabalho) e dos bairros onde moram alguns pesquisadores que colaboraram neste trabalho. Dessa forma, ao longo da pesquisa a percepção dos pesquisadores foi sendo aguçada, de um lado, pela própria realidade que ia sendo descoberta, por outro, pelas leituras, relatos e dados, que iam sendo absorvidos e compilados.
Cabe lembrar que este não é um trabalho que tem objetivos quantitativos e nem qualitativos em termos técnicos. A idéia não foi levantar em campo dados de qualidade da água, tais como Oxigênio Dissolvido, Demanda de Oxigênio, Turbidez, pH, e outros do tipo. A idéia foi colocar em evidência a poluição e contaminação da Bacia Hidrográfica do Rib. das Pedras e as principais situações de risco que podem estar contribuindo para isto. Ao usar a percepção ao invés de dados "técnicos" a pesquisa ficou mais barata e pode-se tornar evidente aquilo que boa parte da população e pesquisadores já sabem (embora muitos evitem comentar).
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