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Psicologia e religião: um estudo de convergência (página 3)


[...] tratou um paciente com doença grave, sentindo seu pulso e recitando em voz alta o nome de províncias, cidades, bairros, ruas e pessoas. Verificando como mudava seu pulso, à medida que as palavras eram mencionadas, Avicenna deduziu que o paciente estava apaixonado por uma jovem, cuja residência Avicenna foi capaz de localizar, através da verificação do pulso (RAGIP, 2000, s/p.).

Conforme a Europa mergulhava no obscurantismo da Idade Média, a Ciência islâmica florescia mais que em outras partes do mundo em descobertas e avanços científicos. Progressos na Matemática, Astronomia e Cartografia tiveram grandes impulsos neste período, motivados por motivos práticos, como a localização da direção sagrada de Meca. Desenvolvimento estimulado pela própria cultura religiosa, que por meio do Corão e dos Hadiths[14]preconizavam o estudo e a deferência pela ordem indiscutível do mundo e pelos fenômenos naturais. O mundo material é parte de Allah, vez que foi criado por Ele, sendo assim naturalmente belo e bom. De maneira geral, esse respeito (ao mundo material) é compartilhado pelas tradições de origem semítica, como o judaísmo e o cristianismo (SMITH, 2007).

O desenvolvimento científico levado a cabo no apogeu da civilização mulçumana deve-se a importância atribuída a aquisição do conhecimento. É um fator crucial registrado pelas escrituras, e nortearam o contato dos mulçumanos com outros povos. Em um trecho do hadith, o profeta aconselha que "Busque conhecimento mesmo que seja necessário ir tão longe quanto a China" (RAGIP, 2000, s/p.), em outro hadith encontra-se que "A busca do conhecimento é obrigatória a todo mulçumano" (Idem, s/p.). A primeira palavra do Corão revelada ao profeta Muhammad é: "Lê" (surata 96:1).

Considerando-se esses tópicos, percebe-se que a crença generalizada de que os discursos e os códices religiosos são contrários a lógica e ao saber racional não é autêntica. Também não é fato que a interpretação de fiéis e sacerdotes atenha-se somente a uma leitura caduca e literal das escrituras canônicas. O Sufismo, vertente mística do islã, a muito reconhecia a utilização do simbolismo como linguagem alegórica da religião, como um degrau para a contemplação de algo mais elevado. Dizem os sufis que cada sura corânica contém ao menos sete significados, alguns deles chegando mesmo a setenta (SMITH, 2007).

Isso abre o assunto, proeminente neste contexto, que é a do simbolismo como um fator chave na vivência religiosa, vez que permite configurar uma participação além da dimensão corporal ou individual. A crença forma uma representação dinâmica que alça o sujeito a uma participação única e importante no quadro geral da existência.

A religião é, antes e acima de tudo, um sistema de idéias por cujo intermédio os indivíduos podem visualizar a sociedade da qual são membros, e as relações, obscuras porém íntimas, que mantém com ela. Eis a tarefa primordial de uma fé. E embora seja metafórica ou simbólica, nem por isso é falsa. Ao contrário, transmite tudo o que é essencial nas relações que pretende retratar [...] (DURKHEIM apud LANGER, 1989, p.169).

Durkheim expressa como um sistema religioso proporciona uma ambiência, uma significação de determinadas situações humanas, que tem por finalidade reunir os membros de uma comunidade, dando-lhes um papel e significado diante do conjunto comum dos acontecimentos. Este "sentido existencial" pode ser expresso através das cosmovisões[15]constituídas pela complexa conjugação de ritos, mitos e símbolos dos distintos segmentos sócio-culturais.

A questão não é corroborar a veracidade (no sentido factual) de uma determinada cosmovisão, mas de observar que cumprem um importante papel psicológico ao significar a existência do homem, transmitindo o que é essencial nas relações, como afirma Durkheim; "Nossa existência não é tanto um encadeamento de fatos reais quanto uma sucessão de significações com as quais as revestimos" (SEMINÉRIO, 1998, p. 164).

Trata-se de vivenciar um sentido diante da vida. A necessidade de expressar plenamente o ser-no-mundo está na base de todas as sacras elaborações míticas, das quais o rito tem um grande papel. É tão fundamental ao ser humano que "não existe nenhuma raça ou tribo de que haja registro que não tenha tido algum tipo de religião" (GAARDER et al, 2000, p.8) vez que expressam, através de suas histórias e rituais, a possibilidade de vivenciar os mitos interiores. As cosmovisões penetram esse sentido como um pano de fundo que constantemente afeta nosso modo de perceber e sentir o mundo, sustentando a função de preencher a necessidade de orientação de cada indivíduo (SMITH, 2010), de proporcionar-lhe um senso ordem (kosmos é palavra grega que designa ordem em oposição ao Kaos, que significa desordem, confusão) no universo que o circunda. Esta ordem pressupõe um lugar e uma importância para tudo que há e, dessa maneira, segurança e estabilidade.

Salienta-se o fato de que a cosmovisão não é apenas um sistema de crenças, um simples devaneio que satisfaça a curiosidade escatológica ou dê uma definição aos eventos naturais. Determina antes uma postura, sendo uma fonte contínua de transformação da conduta humana, de orientação para o comportamento dentro de uma cultura. É portanto, formada e também formadora de sistemas psicológicos e/ou culturais. Neste aspecto Crema (1989) afirma:

Cosmovisão, além de significar uma visão ou concepção de mundo, expressa também uma atitude frente ao mesmo. Portanto, não é uma mera abstração, já que a imagem que o homem forma do mundo possui um fator de orientação e uma qualidade modeladora e transformadora da própria conduta humana. Implícito em toda cosmovisão há um caminho de ação e realização (CREMA, 1989, p.17).

A cosmovisão oriunda das histórias do Talmud, por exemplo, determinou o modo de como o Ocidente concebe a divindade e o mundo natural, e com eles se relaciona. Epelboim (2006) elabora um estudo de como as tradições judaicas, sua narrativa e visão de mundo, afetam os aspectos sociais e psicológicos dos fiéis, implicando a percepção e o delineamento de uma identidade étnica e religiosa comum. Segundo ela, essas dimensões (étnica e religiosa) são compostas por "crenças descritivas e avaliativas, ideológicas e utópicas, as quais podem revelar elevados níveis de consciência, aceitação subjetiva e congruência" (Idem, p.54).

Ponderando a respeito de outro contexto religioso, como o hinduismo, pode-se constatar a influência de sua cosmovisão desde os preceitos que constituem a organização social mais ampla até os mínimos aspectos que compreendem as atitudes individuais. O princípio por detrás da divisão em castas, por exemplo, tem origem na Téo-cosmogonia da criação hindu. No Purusha-Sukta ou "Hino ao homem primordial" lê-se que Brahma se identifica com Purusha, que tem o corpo divino sacrificado e desmembrado, e dele surgem as múltiplas formas do universo, sua classe de seres e castas[16]Neste sistema cada indivíduo tem um dever a cumprir frente ao desenvolvimento do todo, bem como deve colaborar para a melhoria e aperfeiçoamento da sociedade em sua perpétua evolução no interior do plano divino[17]

Como poderiam então o conhecimento e as tradições religiosas serem relegadas a segundo plano, ou reduzidas a conceitos psicológicos, quando em realidade, estão em maior ou menor grau nos fundamentos de nosso atual quadro social? Não é possível a um pesquisador avaliar objetivamente o quanto a ideologia cristã está imiscuída na elaboração sócio-cultural das civilizações ocidentais, nem saber quantitativamente o quanto o zoroastrismo persa influenciou os costumes no médio-oriente. Essas crenças, bem como suas cosmovisões, estão no alicerce da psicologia dos povos, onde ainda continuam a afetar os modos de ser, pensar e agir em âmbito coletivo e individual.

A influência de origem também está presente em graus distintos no surgimento das escolas psicológicas, ainda que seus fundadores digam-se ateus ou desligados de alguma espiritualidade. Autores como Hans Kung (2006) e Renato Mezan (1987), por exemplo, abordam a pertinência das tradições judaicas na construção da psicanálise e na vida de seu fundador. Outro caso, mais conectado aos temas espirituais, foi Friederich Perls, que buscou nas religiões orientais os princípios que o auxiliaram a compreender a si e aos demais, unindo-os em uma proposta psicoterapêutica que pudesse divulgar ao mundo, a Gestalt-terapia. A orientação de abertura, a fuga dos rituais, o domínio do pensamento, a atenção as emoções e ao corpo, o deixar fluir, a espera não-programada são nítidas influências do zen-budismo e do taoísmo. Devido a aderência desses princípios é que a Gestalt-terapia pode ser definida como uma arte e uma filosofia de vida, que contém um suave, mas agudo apelo à transcendência (RIBEIRO, 1985).

Perls (1973) dizia que o homem transcende a si mesmo somente através de sua real natureza [...] Isto significa que eu não posso decidir o que eu devo ser, nem me moldar em uma determinada direção sem me perder a mim mesmo. O que eu devo fazer é conhecer minha natureza e permitir que esta natureza flua, descubra, seja. Tal segredo com relação a natureza é central para o taoísmo e zen e foi incorporado ao pensamento dos psicólogos humanistas (SMITH, 1977 apud RIBEIRO, 1985, p.126).

Apesar de Perls não incorporar explicitamente o lado espiritual destas religiões na sua abordagem, suas obras contém vários momentos de profundidade espiritual e religiosa, quando diz, por exemplo, que "Sofrer a própria morte e renascer não é fácil" (RIBEIRO, 1985, p.125). Os direcionamentos acham-se tão intimamente ligados que Ribeiro (1985, p. 125) ao citar Greaves pontua "[...] que Gestalt-terapia, taoísmo e zen convergem para uma crucial juntura de espiritualidade pessoal".

Não só Perls foi influenciado pelo conhecimento espiritual ao desenvolver um sistema psicológico. Carl Rogers, criador da Abordagem Centrada na Pessoa, do mesmo modo apresenta importantes pontos de reflexão e abertura a uma visão integradora da realidade. Já nos anos 80 ele apontava para a inadequação dos conceitos vigentes utilizados para descrever a realidade e os fenômenos psicológicos, sugerindo a construção de uma hipótese mais ampla, que incluísse as dimensões espirituais e de transcendência humanas (BARRETO, 1992). Também ele considerava o processo espiritual importante na arena terapêutica, de maneira que chegou a afirmar que "tenho a certeza de que nossas experiências terapêuticas e grupais, lidam com o transcendente, o indescritível, o espiritual" (Idem, p.89).

Rogers enfatizava a existência de uma ordem subjetiva da realidade, ao qual denominou de tendência formativa, que indica uma disposição de organização sempre crescente a níveis cada vez maiores de complexidade e inter-relacionamento, tanto a nível orgânico como inorgânico, geradora de uma visão cada vez mais global de uma evolução manifesta e crescente. Em suas palavras:

Defendo a hipótese de que existe uma tendência direcional formativa no Universo, que pode ser rastreada e observada no espaço estelar, nos cristais, nos microorganismos, na vida orgânica mais complexa e nos seres humanos. Trata-se de uma tendência evolutiva para uma maior ordem, uma maior complexidade, uma maior inter-relação. Na espécie humana, essa tendência se expressa quando o indivíduo progride do seu início unicelular para um funcionamento orgânico complexo, para um modo de conhecer e de sentir abaixo do nível da consciência, para um conhecimento consciente do organismo e do mundo externo, para uma consciência transcendente da harmonia e da unidade do sistema cósmico (CARL ROGERS apud BARRETO, 1992, p.90).

Marx e Hillix (2001) observam como os pressupostos de Rogers guardam estreita correspondência com a crença hindu neste ponto, assegurando que:

[...] o anseio básico é, de acordo com a teoria hindu, dirigido para a felicidade eterna ou a libertação completa da servidão. Note-se sua semelhança com a teoria rogeriana que postula um impulso para o crescimento, saúde e ajustamento do indivíduo (Idem, 2001, p.690).

O hinduismo, por sua idade e diversidade, conta com um rico manancial de conhecimento cultural e religioso ainda pouco percebido ou notado dentro do contexto acadêmico ocidental. C. Jung, por exemplo, baseou sua tipologia no modelo hindu de tipos básicos de personalidade espiritual, embora as tenha modificado em certos aspectos[18](SMITH, 2007).

Várias fontes evidenciam que a existência de camadas não conscientes (subconscientes ou inconscientes) já era a muito conhecido pelo sistema filosófico indiano, antes mesmo das experiências hipnóticas de Charcot. A Raja yoga postula a teoria que o "eu" é dividido em várias partes: o corpo físico, a camada consciente na mente e, subjacente a ambas, uma terceira esfera, o subconsciente individual, que se constrói ao longo da história de vida pessoal, sendo uma integração de experiências passadas, impressões e tendências do indivíduo[19](SMITH, 2007; MARX; HILLIX, 2001).

Seminério (1998) aponta que na Índia não há sistemas rígidos de crença, e sim diversidades de pontos de vista que interpenetram-se a procura de interpretações includentes, não havendo um totalitarismo da racionalidade, mas acentuação do imaginário, a procura de alcançar pela intuição os conteúdos inconscientes. Ressalva que a unidade Brahman-Ãtman antecipa o conceito de inconsciente coletivo, sendo possível encontrar um filão genealógico da psicanálise haurida da filosofia indiana, e complementa:

O conceito de "consciência de reserva" – alâya vijñâna, em nosso entender, antecipa claramente o inconsciente dinâmico de Freud, bem distinto do inconsciente cognitivo de Leibnitz e descritivo de Herbart (Idem, p.163).

Para os hindus o subconsciente é o depósito dos Samskaras, impressões pretéritas que constituem a mente subconsciente. Em sua exposição no Karma Yoga, Swami Vivekananda escreve:

Cada ato que realizamos, cada movimento do corpo, cada pensamento que nos ocorre deixa uma impressão na despensa da mente, e ainda quando tais impressões não sejam visíveis sobre a superfície, serão bastante fortes para operar debaixo dela, subconscientemente [...] o caráter de cada homem se acha determinado pela soma destas impressões (VIVEKANANDA apud AKHILANANDA, 2005, p.39, tradução nossa).

Outra forte característica do hinduísmo acha-se na superação da dualidade da vida. Shankaracharya, reformador e comentador dos Vedas, considerado também fundador do Advaita Vedanta (ou Vedanta não-dualista; Advaíta significa não-dualidade) foi quem apontou enfaticamente a importância da transcendência das limitações entre as polaridades da existência em busca da unidade do ser em sua verdadeira essência. As tradições hindus ensinam que a pluralidade que observamos no mundo é apenas a apresentação do Uno em seus matizes infinitos de formas e que apenas o Absoluto é real, sendo ilusória a separação entre "eu" e "Deus", "vida" e "morte" ou "mente" e "corpo" tão conhecido pressuposto cartesiano (pode-se então interpretar que o modelo vigente de Ciência, como um fragmentador conceitual da realidade é, para as doutrinas hindus, um produtor de conhecimento ilusório). Crema (1985), convergindo nessa direção, assegura que a dualidade é a enfermidade basal do homem, e cita Viktor Frankl, que distinguia a falta de consciência da unidade com o Todo como a base das enfermidades mentais.

Pode-se citar ainda, como exemplo de sistemas oriundos da corrente psicológica que guardam estreita relação de convergência com princípios místicos, a Psicossíntese, de Assagioli, que busca um direcionamento pautado nem pela metafísica teológica, nem pela posição científico-filosófica, mas pela inclusão de fatores psicológicos que podem "relacionar-se com os anseios superiores que, dentro do homem, tendem a fazê-lo crescer no sentido de maiores realizações de sua essência espiritual" (ASSAGIOLI, 1997, p. 204). A Análise Transacional Centrada na Pessoa (AT) de Eric Berne, que sustenta a consideração cosmo-espiritual do homem como fator primordial na terapia e a Logoterapia, de Viktor Frankl, que incluiu o Logos (sentido) na psicoterapia, partindo da idéia de que o tratamento deve considerar o homem como um ser espiritual, denunciando os prejuízos de uma "psicologia sem espírito" na abordagem terapêutica (CREMA, 1985).

Muito ainda pode ser abarcado no tocante ao conteúdo religioso e sua relevância para o contexto psicológico. A expressão do desejo de imortalidade contida na epopéia sumeriana de Gilgames; a anulação simbólica da morte nos rituais funerários do Antigo Egito, bem como os pressupostos éticos envolvidos na confissão negativa a Ma"at, código de princípios morais centrado na evitação de danos a outros. A projeção dos conflitos interiores, entre bem e mal, contidos nas quatro partes (Nashks) do Zend-Avesta Persa, e a expectativa da vinda de um salvador (Shaosiat) capaz de levar todos a ressurreição e ao juízo final. As narrativas míticas indo-européias, principalmente as gregas e germânicas, e sua representação dos diversos componentes fragmentários do ego, ou arquétipos junguianos, personificadas nas forças da natureza. O Taoísmo, Confucionismo e o Budismo Chin na China, que valorizam o convívio social e o respeito ao próximo, propagando a deferência a ancestralidade familiar. O Shin-to, religião originária do Japão, que indica uma aceitação tácita do inconsciente projetado na figura dos Kamis, para o qual o homem é fundamentalmente bom, pervertido apenas por alguma força impulsora externa. As religiões semíticas, judaica-cristã-mulçumana, expressando o dinamismo psicológico do sentimento de pecado (do latim peccare, cometer uma falta), culpa, reparação através da rendenção, e o amor divino expresso pela salvação final (SEMINÉRIO, 1998).

5.1 A única revolução possível é a interior

Akhilananda (2005) chama a atenção para o fato de que muitos psiquiatras e psicólogos ocidentais são materialistas, no sentido mais amplo da palavra, sendo notável a necessidade de levar a Psicologia mais além do terreno fisiológico, concreto, racional e sensório da vida. Profere também, que Jung e outros eminentes profissionais da área assinalavam o fato de que "a menos que um psicólogo esteja perfeitamente assentado na integração e unificação de sua própria mente e haja solucionado seus próprios conflitos e frustrações, não poderá ser de utilidade alguma para seus pacientes e discípulos" (Idem, p.121), ou seja, não basta apenas a teoria psicológica para formar-se um psicólogo, mas um verdadeiro desenvolvimento humano.

Da mesma forma que os indivíduos são afetados pela filosofia da sociedade em que vivem, um psicólogo é afetado pela filosofia da escola de pensamento que lhe é correspondente, na qual embasa e direciona sua atuação. Todavia, muitos profissionais continuam sustentando modelos arcaicos de visão humana, considerando-o em seu espectro negativista, instintivo, sexualizado, por vezes voltado prioritariamente para o passado, na investigação de experiências condicionantes do período infantil. Ou ainda modelos que destacam a experiência humana unicamente em seu sentido biológico, tratando-o excepcionalmente como um "organismo", supervalorizando o mensurável ao lidar apenas com a fachada exterior, a ponto de reduzir todo o complexo universo humano, e suas relações, a lógicas proposições de "estímulo-resposta".

Estes aspectos podem e devem ser considerados, mas sua fixação produzirá estagnação e desajustes. Sistemas puramente mecânicos ou focalizados na fisiologia dos fenômenos, por encontrar em suas fundações crenças destituídas de qualquer consideração espiritual ou superior, no que tange as possibilidades humanas, tendem a reduzir a psiquê apenas a esfera que lhes corresponde aos traços básicos instintivos, ou racional-mecanicistas. Em decorrência temos a disseminação na crença da "solução teórico-técnica", muitas vezes ineficaz frente as demandas terapêuticas que exigem uma profundidade existencial e/ou espiritual mais amplas. Esse conjunto de situações é que talvez tenham levado James Hillman e Michael Ventura a escreverem um livro intitulado "Cem anos de psicoterapia... e o mundo está cada vez pior". Ou ainda, impelido Kung (2006) a frisar que uma consulta a atual literatura psicológica-psiquiátrica-psicoterapêutica básica encontrará apenas assinalado de forma marginal algo sobre religiosidade (que dirá espiritualidade!) e normalmente relacionado-o a patologia, ao contrário da preponderância de proposições sexualistas, sobre o qual se encontrará volumes e mais volumes. Falta ainda a Ciência psicológica, em âmbito geral, o olhar para o lado elevado do homem, de seu universo simbólico, em busca de suas asas e não de seus grilhões, a procura daquilo que o salvará, e não de realçar aquilo que o condena[20]

Não se quer demonstrar, contudo, que as religiões são a solução dos problemas do homem. Não foi o foco do presente trabalho considerar propriamente a questão das religiões. Mas é premente o fato de que seus aspectos institucionais, dogmáticos e ideológicos, necessitam igualmente reformarem-se em prol de expressarem seus verdadeiros valores espirituais. Houtart (2002) assinala como a dessacralização do campo religioso lançou a modernidade a se opor as suas contradições. A derrocada de seu monopólio, no iluminismo, acarretou na revelação da corrupção que impregnava seus templos, o esvaziamento do sacro-simbolismo e a acusação de domínio sócio-político-cultural, acarretando o movimento de secularização e laicização das sociedades contemporâneas.

Não se pretende defender os valores religiosos em prol dos científicos, ou vice-versa, mas a re-estruturação de ambos, para que possam expressar sua complementaridade inerente. A sociedade contemporânea, vítima do hedonismo, individualismo, recortada pelas mazelas sociais, guerras e epidemias clama por uma revolução autêntica, mas não de elementos externos, que alteram apenas o cenário aparente. Quantos movimentos erigiram guerras em nome da paz, apenas para tornarem-se, no poder, os inimigos que combatiam nas trincheiras? A mudança profunda está na concepção ética, na insurreição contra as moléstias da consciência, que terá início apenas na esfera individual. Como disse Gandhi "A única revolução possível é dentro de nós". Propondo s

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após uma análise dos pressupostos que sustentam o conceito tradicional de "Ciência" assim como a abordagem dos pontos em que a Psicologia está em consonância com a "filosofia perene por detrás das doutrinas religiosas", observa-se que é necessária a reorientação do "como" e "por que" está se produzindo o conhecimento dentro do paradigma vigente. Um redirecionamento que volte a focalizar os valores humanos em detrimento da produção científica mercadológica, que busque promover a unificação das diversas formas de saber existentes na realidade, naturalmente multifacetada e abrangente, em vez de agenciar a contínua separação e fragmentação dos modos de conhecer o mundo, que são interdependentes.

Muitas críticas poderão ser realizadas aos temas propostos no presente trabalho, como, por exemplo, apontar a incompatibilidade de unir as doutrinas, como as budistas, que falam em termos de Samsara (clico de reencarnações infinitas), Nirvana, iluminação e transcendência ao pensamento psicanalítico freudiano, que é por origem, não-teísta, vendo a religião como projeção de desejos infantis e o amor ao próximo como uma impossibilidade psicológica. Também poderá se indicar a incoerência de conciliar o pensamento cientificista das escolas behavioristas, que falam do homem em termos de "reforço", "punição" e "condicionamento operante" em oposição a realização interior do Atmã (Eu superior) do sistema de crença hindu. Poderá se argumentar ainda que os códices religiosos, ao falarem de termos como "Eu", "Ego", "Sofrimento", "Esperança" ou "Ser" remetam-se a conceitos completamente distintos dos homônimos psicológicos, assim como asseverar que as diferentes escolas filosóficas da psicologia são radicalmente opostas em muitos pontos e, portanto, irreconciliáveis conceitualmente no tempo e espaço.

Contudo, tal maneira de proceder seria ordinariamente a do velho padrão científico, que está centrado em observar continuamente a diferença. A tendência a fragmentar, discriminar, neutralizar e objetificar a realidade proporcionará, como vem proporcionando, o distanciamento do saber "erudito" do "popular", o desencantamento simbólico do mundo e desgaste dos valores ético-culturais do seio social.

Este trabalho, na medida em que menciona o novo paradigma como a superação dos antigos padrões combativos, já se propõe a estar nele, pois entende que uma verdadeira crítica não é agente de mudanças enquanto não se concretiza como fato real no mundo. Recomenda pensar que Psicologia e Religião são apenas mais dois componentes de uma realidade repleta de sistemas interdependentes, os quais podem colaborar entre si em harmonia enquanto mantiverem-se em equilíbrio. Estando ligados, a degradação de um componente gerará percas para todo o sistema.

Citaram-se vários pontos onde os estudos psicológicos estão consoantes com as verdades religiosas, não no intuito de afirmar que a Psicologia ou as ciências, devam reporta-se a estes visões como detentoras do conhecimento último e transcendente, mas para demonstrar que a Verdade (ainda que não se saiba o significado último desta palavra) é universal, e portanto pode ser abordada sob qualquer ângulo do qual se imagine. Cada perspectiva é apenas uma construção mental hipotética, uma interpretação da realidade, e esta por si só, pode abrigar infinitos pontos de vista. "Um ponto de vista, é apenas a vista de um ponto" já afirmara Leonardo Boff. Daí que o preconceito (epistemológico, racial, étnico, cultural e etc) é um entrave para aquisição do conhecimento comum.

O ecletismo das correntes psicológicas é vista com certa descrença, ou mesmo como "perigosa" atualmente nos meios intelectuais, mas a visão unidimensional da realidade é que deveria ser tratada como um ponto de incongruência a ser dissolvido. Uma analogia poderá tornar mais claro este ponto: ao se considerar duas pessoas, posicionadas em lados contrários de uma sala, poder-se-á ponderar que ambas possuem visões distintas do mesmo cômodo e que ambas sustentam uma perspectiva completamente oposta segundo sua disposição. Se o piso desta sala for inclinado, por exemplo, uma afirmará sem sombra de dúvidas que o piso está subindo, enquanto a outra rebaterá veementemente que o piso é, em realidade, descendente.

Entretanto, obviamente tal contradição seria ilusória visto que permanecem ainda na mesma sala. Tal miragem consolidou-se na Psicologia, já que ainda há tantos embates teóricos a cerca dos diversos pontos de vista. Cada abordagem coloca-se em uma dimensão distinta do homem, e provavelmente aí encontra-se a aparente ausência de conciliação. Quando as duas pessoas na sala perceberem que ambas as descrições, longe de serem falaciosas em relação uma a outra, são igualmente necessárias para descreverem o cenário geral, construirão uma noção mais próxima do panorama autêntico. São de fato, complementares. Provavelmente foi contemplando essa disposição que Sri Ramakrishna expressou: "O conhecimento leva a unidade, porém a ignorância leva a diversidade".

Não teria pois, a psicologia a aprender algo da religião e virse-versa? Será que não é hora de ampliar o foco e voltar a unificar o que jamais, em realidade, esteve separado? De reconhecer aquilo que está sendo ignorado e que nunca deveria ser: a dimensão subjetiva e espiritual do ser humano?

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Dedico este trabalho ao impulso originário

que reside por detrás de toda a aparência.

Bem como à Verdade, pois não há

Ciência ou Religião a ela superior.

Agradeço a ciência da paz, pela paciência.

A C. G. Jung, pela orientação.

A M. Luther King jr, pela ação.

A M. K. Gandhi, pela revolução.

A J. R. R. Tolkien pela inspiração.

Ao Oriente, pela iluminação.

Ao Ocidente, pela realização.

A Filosofia, pela compreensão.

A dificuldade, pela construção.

Ao esforço, pela lapidação.

A família, pelo fundamento.

Aos amigos, pelo crescimento.

E a grande Escola da Vida,

pelo ensinamento.

 

 

Autor:

Walério de Andrade Menezes

walerio.am[arroba]gmail.com

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção do grau de Psicólogo do Curso de Psicologia do Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA), orientado pelo Professor Mestre Wayne Francis Mathews.

Monografias.com

Palmas

2011


[1] - Segundo Jung (1978, p. 9) o numinoso é "uma existência ou efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade [...] pode ser a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência".

[2] Série de livros que surgiram como comentários e especulações filosóficas a respeito dos Vedas e da identidade cósmica entre Brahman (O Absoluto) e o Atman (O Ser individual). Fazem parte das escrituras Shruti, termo que representa tudo aquilo que foi ouvido (intuído) e catalogado pelos sábios nos quatro principais livros do cânone literário hindu, o Rig Veda, Sama Veda, Yajur Veda e Atharva Veda (SARASWATI, 2007).

[3] Outro termo utilizado neste trabalho é a "religiosidade", entendido como "conjunto dos sentimentos religiosos" (DICIONÃRIO BRASILEIRO, 1981), que aproxima-se mais de uma expressão ecumênica comum a todas as tradições.

[4] - "Podemos traduzir este termo alemão com a palavra 'espírito'(ou índole) do tempo. Wolfgang Goethe - poeta e pensador alemão - definia Zeitgeist como um conjunto de opiniões que dominam um momento específico da história e que, sem que nós nos apercebamos - de modo inconsciente, determinam o pensamento de todos os que vivem num determinado contexto.[...] Tratam-se de conhecimentos, crenças, atitudes, de pessoas que vivem num tempo e num lugar específicos" (BROZEK, 2002, s/p.).

[5] - Religionswissenschaften: "Disciplina ("ciência da religião") ou grupo de disciplinas que equivale á história das religiões, á religião comparada e á fenomenologia da religião, ou que as compreende (HINNELLS, 1995, p.232)

[6] O conceito de paradigmas (do grego parádeigma, ou modelo) foi cunhado por Thomas Kuhn. Os paradigmas seriam modelos que orientam a atividade científica. São matrizes ou conjuntos de pressupostos filosóficos que definem e referenciam o estudo em um campo científico. Kuhn afirma que "um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma" (KUHN, 1997, p. 219). Esse modelo proporciona uma espécie de "mapa do conhecimento" ou um roteiro para a zona limitada de conhecimento ao qual escolha o pesquisador, "o estudo dos paradigmas [...] é o que prepara basicamente o estudante para ser membro da comunidade científica na qual atuará mais tarde" (Idem, 1997, p. 31).

[7] Leonardo Boff (2009, p.37) define ética como uma parte da filosofia que considera "concepções de fundo acerca da vida, do universo, do ser humano e de seu destino, estatui princípios e valores que orientam pessoas e sociedades". Sobre a moral ele diz "é parte da vida concreta. Trata da prática real das pessoas que se expressam por costumes, hábitos e valores culturalmente estabelecidos [...] Estes podem, eventualmente, ser questionados pela ética" (Idem, p.37).

[8] Acha-se importante distinguir que o saber religioso, como qualquer outra forma de conhecimento, está sujeita a utilização que dela o homem faz. Diversos crimes, guerras e barbáries já foram erigidas em seu nome por instituições ou mesmo pessoas imbuídas de suas ideologias, como a Santa inquisição, as Cruzadas, atentados suicidas, atos de fanatismo, dentre outras registradas na história. Este trabalho tem como objetivo focalizar-se no aspecto evolutivo das tradições no que concerne ao crescimento ético, psicológico e sócio-cultural do ser humano e, portanto, não abordará polêmicas a respeito de seu uso para fins bélicos ou quaisquer outros interesses escusos, manipulação ideológica ou deturpação dos direitos humanos.

[9]  As informações dadas referente aos distintos sistemas religiosos são de maneira abrangente e de caráter generalista, dado as limitações de se expor todo o complexo desenvolvimento doutrinário religioso bem como suas diversas ramificações filosóficas em cada contexto sócio-cultural neste presente trabalho.

[10] Embora "sofrimento" seja o termo geralmente empregado para Dukkha, nele "estão implicadas noções mais profundas e filosóficas, entrelaçadas entre si, de impermanência, insatisfatoriedade, imperfeição, conflito, não substancialidade ou impessoalidade (inexistência de uma individualidade eterna e imutável, a ilusão de um eu substancial" (SILVA; HOMENKO, 2002, p.40).

[11] Segundo as escrituras antigas As dez perfeições são: 1) Caridade (Dana); 2) Conduta ética e dever (Sila); 3) A renúncia (Nekkhamma); 4) A sabedoria (Panna); 5) O esforço, energia (Virya); 6) A paciência (Khanti); 7) A fidelidade (Sacca); 8) A determinação (Adhitthanna); 9) A bondade (Metta) e 10) A equanimidade (Upekka).

[12] Resiliência é entendida como "processos que explicam a 'superação' de crises e adversidades em indivíduos, grupos e organizações" (YUNES, 2003, p.47). Termo originário da física dos materiais, sendo compreendido como a capacidade que um material pode retornar a sua forma original depois de ser submetido a uma forte pressão ou deformação. Atualmente, para a psicologia, esse conceito refere-se capacidade de um ser humano manter-se resistente e perseverante frente as dificuldades da vida.

[13] O conceito de meditação (em sânscrito: bhavana), corresponde a diferentes práticas realizadas por inúmeras tradições religiosas ou espiritualistas, influenciadas por diferentes contextos culturais e finalidades, entre elas: focalização da consciência; Distensão (relaxamento) do físico, mental e emocional; Identificação plena com uma qualidade, princípio ou imagem devocional; Silêncio mental ou abandono do modo mental que produz fragmentações; Atingir um estado reflexivo ou contemplativo; Alcançar um estado dissociativo, no qual fenômenos como o transe podem ocorrer, entre outros (LIMA, 2005).

[14] Os Hadith são os ensinamentos e declarações do Profeta Mohammad (conhecido no Ocidente como profeta Maomé), segundo sua vivência nas situações cotidianas. São consideradas a segunda fonte da lei islâmica após o Corão.

[15] A cosmovisão é uma visão geral de mundo, "uma espécie de panorama geral de todo conhecimento, formando uma totalidade de visão, uma coordenação de opiniões entrelaçadas entre si. Com essa sistematização lhe é possível formular, não só uma opinião geral de todo o acontecer, mas também compreender e relacionar um facto individual com a visão geral formada do todo" (SANTOS, 1955, p.123).

[16] "Segundo algumas lendas, pela união de Brahma com Bakchase (uma mulher da raça dos gigantes), provieram os Brahmanes, a casta de sacerdotes e doutores, destinada a propagação das leis religiosas. Do braço direito de Brahma surgiu um homem (Kshatrya) e do braço esquerdo, uma mulher (Kshatryani). O enlace desses dois seres deu origem a casta de guerreiros. Da coxa direita de Brahma surgiu um terceiro homem (Vaishya) e da coxa esquerda, uma mulher (Vaishyani), para dar origem á casta dos comerciantes e lavradores. Finalmente, do pé direito de Brahma surgiu um quarto homem (Sudra) e do pé esquerdo, um mulher (Sudrani), para dar origem á quarta casta, constituída por artistas, operários e toda espécie de trabalhadores" (SARASWATI, 2007, p.104).

[17] Porém, ao longo do tempo, essa constituição social degenerou-se, tornando-se basicamente um código de exclusão e segregação econômico-racial.

[18] "[...] a Ciência da Yoga [...] está, por sua vez, dividida em quatro escolas principais, que estão de algum modo relacionadas as quatros funções psíquicas de Jung: sensação (Hatha Yoga); sentimento (Bhakti Yoga); pensamento (Jñana Yoga); e, vontade (Raja Yoga), que está na raiz da função transcendental de Jung, quando a pessoa é capaz de sublimar o fogo do desejo cego - como Sidarta, e mais tarde, Schopenhauer, definiram bem - em Luz" (LOUCEIRO, 2007, p. 113).

[19] Na hipótese hindu figura ainda um quarto componente, menos percebido pela mente consciente e ao qual não possui correlativo exato na cultura ocidental, o superconsciente (samadhi). Nesse estado vive-se uma integração perfeita entre a individualidade e o mundo. Nela (superconsciencia) está o verdadeiro ser, desimpedido e eterno (SMITH, 2007; MARX;HILLIX, 2001).

[20] Como vem demonstrando o advento da Psicologia positiva, que propõe uma visão mais congruente com as potencialidades e capacidades do ser humano, apoiando uma mudança de focalização dos aspectos patológicos para disposição de saúde e bem-estar.

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