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Ou ainda:
"Uma vez completado o livro, a primeira leitura crítica que consegui fazer dele todo me assustou: não dizia nada, ou pouco dizia que não tivesse dito antes. O pior é que não respondia às questões que propunha, resumíveis na frase que, desde então, passei a repetir: porque o Brasil ainda não deu certo?"
Peça literária constituída 470 páginas, dividida em quatro capítulos. Configurando-se num tratado antropológico explicativo e cultural, de "gestação de nosso povo" e seu processo civilizatório. Um livro escrito com um fim específico, de apontar caminhos que fizessem com que o Brasil encontrasse a si mesmo, sua gente, sua cultura e que finalmente desse certo enquanto Nação. Um livro capaz de responder as seguintes questões:
Quem sou eu?
Quando é que, no Brasil, se pode falar de uma etnia nova, operativa?
Quando é que surgem brasileiros, conscientes de si, senão orgulhosos de seu próprio ser, ao menos resignados com ele?
Quando começou a plasmar-se a configuração histórico-cultural nova, que envolveu seus componentes em um mundo não apenas diferente, mas oposto ao do índio, ao do português e ao do negro?
Quem éramos nós? Esses mestiços de pele de cobre?
Usando enquanto metodologia a narração detalhada de cada etnia, que se encontra nas raízes de origem do povo brasileiro, seu percurso histórico, contexto político, social e econômico. Traçando, constantemente, um paralelo com processo civilizatório de outros países americanos, numa viagem ao passado conjugado com o momento presente. Sem se limitar, contudo, descrever o processo formador, Darcy vai mais além: questiona, explica e contextualiza. Tendo como resultado uma obra tensa, de análise profunda dos primeiros anos da História do Brasil, após a invasão ocorrida no ano de 1500, na Ilha Brasil por Portugal.
No presente estudo, o Capítulo I – O Novo Mundo, será aquele a ser dado um maior enfoque. Capítulo, onde Darcy analisa as três Matrizes Étnicas, que são as formadoras do Povo Brasileiro: 1ª) o português invasor e colonizador; 2ª) os índios silvícolas vistos como seres brutais e imorais pelos colonizadores, e, 3ª) os negros africanos – aqui entendidos como uma sub-raça, igualada aos animais irracionais e devendo ser tratada como tal. Matrizes Étnicas, que vão sendo desfiguradas, mescladas, que se fundem enquanto avança o processo denominado como civilizatório, pelo invasor Lusitano. E, dão origem a um novo povo, novo por dar lugar a uma cultura diferenciada de suas matrizes formadoras, uma nova etnia nacional.
Uma coisa é certa, para o autor a Ilha Brasil já existia muito antes de 1500. Portugal apenas oficializou o nome quando de sua invasão a Ilha, para fins mercantilistas. São inúmeros registros de que pelo menos há 1000 (Mil) anos 1 a 8 milhões de pessoas aqui viviam. Uma humanidade que possuía costumes próprios, era autossuficiente, ocupava quase toda extensão do litoral brasileiro, se localizando em áreas privilegiadas, onde caça e a pesca eram abundantes. Toda uma comunidade indígena que dava os primeiros passos na revolução agrícola, domesticando várias plantas, dando a cada uma delas, assim como os rios e mares, um nome específico. Que possuía religião própria, acreditava na vida após morte e tinha por única finalidade da vida: viver.
Os Tupis eram um dos povos de maior número da etnia silvícola que ocupavam a costa brasileira, ao lado de outras tribos como: Boror, Xavante, Kayapó, Kaingange dos Tapuia em Geral, os Guaikuru; estes últimos também denominados de índios cavaleiros, que exerceram papel importante na política de aliança com espanhóis e lusitanos. Sem no entanto jamais se deixarem subjugar por eles.
Para os índios que aqui viviam a vida era tranquila, a sociedade solidária. O mundo era um luxo de se viver, tão rico de aves, peixes, de raízes, de frutos, de flores, de sementes. Na sua concepção sábia e singela, a vida era dádiva de deuses bons, que lhes doaram esplêndidos corpos, alimentação farta e rica de variedades. Portanto para que acumular? Devastar florestas e matas, poluir Rios e Oceanos com o único fim de acumular capital?
Para os recém-chegados, os lusitanos, pertencentes a uma civilização urbana e classista. A vida era uma tarefa, uma sofrida obrigação, que a todos condenava ao trabalho e tudo subordinava ao lucro. Aqui acumular bens, riquezas era um fim em si mesmo.
Os lusitanos se sentiam e se sabiam a flor da criação. E quando aqui chegaram das índias queriam usufruir de seus corpos e multiplicar-se em seu ventre. Dos homens indígenas que eles tombassem e juntassem todo pau-de-tinta que conseguissem, ou produzissem outra mercadoria para seu lucro e bem-estar.
Portugal invade a Ilha Brasil visando saque e, depois, posse de todo produto da capacidade produção dos povos conscritos. Embora não fossem assim que se vissem os gestores lusitanos, ao contrário se designavam enquanto salvacionistas, emissários de Deus. Salvadores de um povo que vivia na luxúria, praticava antropofagia, se alimentava de seus prisioneiros de Guerra. Tinha relações intimas com aquilo que denominavam de demônio. E que portanto precisava ser "civilizado", catequizado, submetido a uma nova cultura que lhe desse um novo sentido a vida e a tornasse produtiva, segundo os valores culturais da Europa.
O choque quando da invasão, não poderia ser maior, entre duas culturas tão distintas. Nada da cultura indígena tinha valor, nada prestava. Senão os próprios silvícolas enquanto objetos ou de gozo ou de instrumento de produção de mercadorias, as quais não consumiam. Mas o invasor tinha a nau cheia de machados, de contas, de ferramentas que eles, os indígenas, começaram a apreciar e precisar. E foi assim que tendo que pagar o preço que o invasor queria nossos índios, a princípio, se submetem a todo tipo de sofrimento para obtê-las, à medida que vão se tornando indispensáveis. Desfazendo-se aos poucos, uniformizado, o recém-descoberto Paraíso Perdido.
Porém isso não se dá de forma pacífica, ao contrário os índios ao perceberam as reais intenções dos invasores defendem seu modo de ser e de viver, lutando por continuarem humanos e não simples animais de carga, que os queriam transformar os europeus. E tal defesa acontece através de uma guerra secular de extermínio de quase toda uma etnia indígena. Onde os europeus armados de canhões e arcabuzes (arma de fogo portátil) lutavam com índios com tacapes, arco e flecha, zarabatanas (tubo originalmente de madeira, pelo qual são sopradas pequenos dardos ou Projeteis). Ou, ainda armas biológicas, onde milhares de índios foram dizimados por tuberculose, e tantas outras doenças que os brancos já haviam conseguido resistência. Desaparecendo, assim, em poucas décadas da costa brasileira todas as tribos indígenas aqui encontradas quando da chegada do invasor. Este, entretanto, é apenas o primeiro momento de muitos outros de dor e sofrimento de um povo em gestação, que se sucedeu não só aos com nossos índios, como também aos negros que mais tarde chegam aqui trazidos da África.
Barbárie nada fácil de concluir e provar, já que só se tem o testemunho de um dos protagonistas, o invasor, que nos fala de suas façanhas, Raramente dando aos índios ou aos negros a palavra de registro de suas próprias falas. O que a documentação copiosíssima nos conta é a versão do dominador, seus feitos heroicos, suas bravatas, sua ação salvacionista e catequizadora.
No lugar das tribos indígenas dizimadas pelos europeus, tomam lugar os negros trazidos da África enquanto escravos, A empresa escravista, fundada na apropriação de seres humanos através da violência mais crua e da coerção permanente, exercida através dos castigos mais atrozes, atuou como uma mó desumanizadora e deculturadora de eficácia incomparável. Num relato de grande sensibilidade o autor nos remete de volta aquela época:
"Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse à masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém - seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos -, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso."
O espantoso é que os índios como os negros, postos nesse engenho deculturativo, conseguiram permanecer humanos, retendo no mais recôndito de si, tanto reminiscências rítmicas e musicais, como saberes e gostos culinários de sua cultura de origem.
Darcy Ribeiro identifica dois estilos de colonização no norte e no sul do Novo Mundo. Cá, o Barroco (gente mestiça, negra, índia) que se alimenta de carne humana e nada produz. Gente degenerada, estranha, tortuosa, selvagens nus, que não se reconhecem direitos a não ser o de reprodução para mão de obra. Povo para quem a única coisa que se reserva era servidão, subjugação. Lá, os Góticos, povo perfeito e belo. Agentes da civilização ocidental e Cristã, já que se achavam perfeitos. E enquanto povos perfeitos, os Góticos que aqui chegavam recebiam terras em abundância. Enquanto que Cá, os Barrocos, eram escravizados uns e expulsos outros de sua terra de origem. Ou seja, um apartheid onde impossível assimilar qualquer coisa que partisse dos que viviam se misturando, os barrocos. Algo que Roberto DaMatta faz alusão em seu livro, O que faz do brasil, Brasil ao afirmar que, hoje, na realidade temos duas sociedades étnicas no Brasil: a dos colonizadores de um lado e de outro: negros, índios e mamelucos.
Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado. E o povo brasileiro não é uma exceção. Trazemos dentro de nós as marcas indeléveis do Gótico e do Barroco, ou essa dualidade impar sempre presente em nossa cultura. Já que por um lado somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. E que pode ser identificada na nossa cultura através do famoso "você sabe com quem está falando?"
De outro lado, apesar de uma história prescrita quase toda através da barbárie, trazemos presente alegria e simplicidade de nossos índios e dos povos africanos. Sua graciosidade e hospitalidade. Fazendo-nos mais ricos em humanidades, mais humanos nas palavras de Darcy Ribeiro. Somos um povo acolhedor, estamos sempre de braços abertos. Acolhemos milhares de imigrantes vindos da Europa, onde todos eles ou quase todos, foram assimilados e abrasileirados. Trazemos conosco esta dualidade constante: a crueldade e a bondade, o chicote do senhor de engenho e a solidariedade, doçura de nossos negros e índios. Assim como a prepotência e arrogância do senhor de escravos.
E é desta forma que Darcy Ribeiro descreve nossa cultura, contendo todas essas variantes, coloridos herdados dos índios americanos e dos negros africanos, ligados fortemente a matriz portuguesa. Mas que singularmente faz com que o povo brasileiro se sinta, se sabem e se comportam como uma só gente pertencentes a uma mesma etnia. Um povo-nação, uma etnia nacional. Ao contrário de alguns países Europeus. Apesar da profunda distância social, que tem por base o tipo de estratificação que o próprio processo de formação nacional produziu, gestando uma sociedade onde se tem total ausência de uma classe social dominante nativa.
Uma ideologia que se plasma, entre outros, através da ficção muito bem orquestrada da difusão de uma só língua que é a portuguesa, por um pequeno núcleo europeu de letrados, que está à frente da governança do Estado e difunde conhecimentos, crenças e valores; uma igreja Oficial, associada a um Estado Salvacionista, que exerce intenso controle social e intelectual, de forma a impedir qualquer outra ideologia. Com a classe artística exercendo suas atividades obedientes aos gêneros e estilos europeus, principalmente o barrroco. Uma cultura implantada pela colônia europeia, que absorve múltiplos traços, não determinantes, de origem indígena e africana.
O povo brasileiro pagou historicamente, um preço terrivelmente alto por tudo isso, em lutas das mais cruentas de que se tem registro na história, sem conseguir sair através delas, da situação de dependência e opressão em que vive e peleja. Um quadro que continua presente no Brasil atual, onde em nome do progresso, ao longo desses cinco séculos, essa classe dirigente exógena e infiel a seu povo, no afã de gastar gentes e matas, bichos e coisas para lucrar, acabam com as florestas mais portentosas da terra. Desmontam morrarias incomensuráveis, na busca de minerais. Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente, aos milhões.
Mesmo se levando em conta tal cenário, a título de conclusão quero discordar quando Darcy afirma, que o livro não o levou as respostas que queria. Discordo ainda, quando o autor afirma, que fracassou:
"Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu"
Acredito que o autor ao traçar um perfil do povo brasileiro, suas singularidades, principais traços culturais, seu processo civilizatório. Acaba encontrando as respostas que tanto procurava, mais que isso constrói os instrumentos necessários para transformação do País, aquilo que deveria ser feito para que a Nação Brasileira desse certo. Ou ainda nas palavras de Roberto DaMatta pudesse transformar o "brasil" em Brasil. E até mesmo começou a construção dessas ferramentas: Universidade de Brasília o Projeto dos CIEP´s, fundação do Museu do Índio, estabelecimento dos princípios ecológicos da criação do Parque Indígena do Xingu, entre outros. Só que a figura do senhor de engenho, ainda fortemente presente nas classes dominantes do País, vem impossibilitando o enraizamento de tais construções. Mas o exemplo ficou, a história registrou. E não tenho dúvidas que será partindo do amadurecimento do Povo Brasileiro, sua crescente indignação diante de tanta injustiça social, que iremos acumular forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária. Pois está também em nossas raízes que se expressam nas diversas formas de representação da arte da cultura, entre elas a musical, que um Novo tempo irá surgir:
Um novo tempo, apesar dos castigosEstamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivosPra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrerNo novo tempo, apesar dos perigosDa força mais bruta, da noite que assusta, estamos na lutaPra sobreviver, pra sobreviver, pra sobreviverPra que nossa esperança seja mais que a vingançaSeja sempre um caminho que se deixa de herançaNo novo tempo, apesar dos castigosDe toda fadiga, de toda injustiça, estamos na brigaPra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrerNo novo tempo, apesar dos perigosDe todos os pecados, de todos enganos, estamos marcadosPra sobreviver, pra sobreviver, pra sobreviverNo novo tempo, apesar dos castigosEstamos em cena, estamos nas ruas, quebrando as algemasPra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrerNo novo tempo, apesar dos perigosA gente se encontra cantando na praça, fazendo pirraça
(Novo Tempo – Ivan Lins)
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna – Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos: Estampa, 1988
DAMATTA,Roberto. O que faz o Brasil, Brasil?Editora Rocco Ltda., Rio de Janeiro, 1984.
HENRIQUES, Affonso, Ascensão e Queda de Getúlio Vargas, 3 volumes, Editora Record, 1965
LESSA, Carlos. À guisa de introdução. A longa marcha pela construção da cidadania. Casa da Palavra,. Rio de Janeiro, 2005
LESSA, Carlos. Rio de Todos Os Brasil, Editora: Record, Rio de Janeiro, 2000RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. Companhia das Letras, São Paulo, 1995
Revista Educação Pública, www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao, 13 de julho de 2011
Autor:
Albana Lúcia Brito de Azevedo
albana.lucia[arroba]yahoo.com.br
Pedagoga
Pós-Graduação Arte e Cultura
Julho/2011
Instituto Humanidades
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