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Para Sérgio Silveira (2004) a propriedade dos bens intangíveis e das informações é o elemento decisivo da sociedade em rede. "Para os cidadãos do mundo pobre e dos países em desenvolvimento, a possibilidade de aproveitar o caráter ubíquo da informação, dos algoritmos, dos softwares e das redes digitais para se desenvolver pode estar sendo corroída pelo recrudescimento das exigências sobre a propriedade das idéias"[2].
O interesse pela harmonização (na realidade, o aumento do escopo) do sistema de patentes no mundo surgiu na Rodada Uruguai – no começo da década de 1990 – no governo Clinton, por interesse das indústrias farmacêutica e de entretenimento (veja entrevista com Joseph Stiglitz mais adiante). Culminou com a aprovação do Acordo TRIPs em 1994.
Após a implementação do Acordo TRIPs, que permitiu o patenteamento de produtos e processos químicos, farmacêuticos e alimentícios (para os países que ainda não reconheciam o seu patenteamento), o número de depósitos de patentes vêm aumentando significamente ano após ano.
A maioria dos depósitos de patentes no mundo são examinados pelo Escritório de Patentes do Japão (JPO), Escritório de Patentes e Marcas dos Estados Unidos (USPTO) e Escritório de Patentes Europeu (EPO), que juntos formalizaram e compreendem o Escritório Trilateral de Patentes (Trilateral Patent Office). O Encontro Técnico Trilateral (Trilateral Technical Meeting) e a Conferência Trilateral (Trilateral Conference) vêm se reunindo anualmente (desde 1983) visando solucionar os problemas comuns do Escritório Trilateral.
Nos três Escritórios de Patentes o patenteamento dos programas de computador são permitidos (não por acaso) e, como detém a maioria dos depósitos de patentes no mundo, pressionam os demais países para que permitam o patenteamento dos programas de computador. Ora, sabemos que a regra basilar do princípio da igualdade é a do tratamento igual para situações iguais e o tratamento diferente para situações desiguais.
Os países pobres e em desenvolvimento têm suas próprias tecnologias e indústrias locais (quando têm) e não podem serem submetidos à legislação de patentes harmonizadas pelas nações hegemônicas – o acordo TRIPs, por exemplo, somente beneficiou as grandes indústrias multinacionais dos países mais desenvolvidos.
O regime de propriedade intelectual apropriado para um país em desenvolvimento é diferente daquele para um país desenvolvido. Para Keith Maskus (1997), a lei de patentes tem um significado forte para economias desenvolvidas com capacidade de imitação e significado fraco para países de pequeno desenvolvimento, mas com grande tendência da importância do poder de mercado. Já para Janusz Ordover (1991), a história comum relata que a proteção forte de patente reduz a difusão porque reduz o spillover.
Sobre o Acordo TRIPs, o economista Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel em 2001, em sua recente passagem pelo Brasil, disse numa entrevista ao jornal "O Globo", em agosto de 2005:
"[...] Infelizmente, os negociadores comerciais que prepararam o Trips, acordo de propriedade intelectual da Rodada Uruguai, no começo da década de 1990, ou não sabiam disso ou, mais provavelmente, não tinham interesse na questão. Naquela época, eu trabalhava no Grupo de Conselheiros Econômicos do governo Clinton, e estava claro que havia mais interesse em agradar às indústrias farmacêutica e de entretenimento do que em estabelecer um regime de propriedade intelectual bom para a ciência, ou para os países em desenvolvimento. Suspeito que a maioria dos que assinaram o acordo não sabia perfeitamente o que estava fazendo. Se soubesse, teria conscientemente condenado à morte milhares de portadores da Aids, que talvez não mais pudessem obter remédios genéricos a preços acessíveis? Se a questão tivesse sido apresentada nesses termos aos parlamentos de outros países, acho que o acordo teria sido firmemente rejeitado.
A propriedade intelectual é importante, mas o regime de propriedade intelectual apropriado para um país em desenvolvimento é diferente daquele para um país desenvolvido. O esquema Trips não levou isso em conta. Na realidade, a propriedade intelectual nunca deveria ter sido incluída no acordo comercial, porque pelo menos em parte sua regulamentação está acima da competência dos negociadores comerciais [...]"[3].
Na Europa, a pressão das pequenas e médias empresas (a maioria das indústrias na Europa) contra uma diretiva sobre o patenteamento do software no Parlamento Europeu foi fundamental para a derrota da diretiva. Elas pressionaram os parlamentares pela rejeição do projeto e exprimiram as suas preocupações e o efeito nocivo para a inovação e a competição, caso o software fosse patenteável. Em 6 de julho de 2005, o projeto de resolução legislativa foi para a votação em plenário e a assembléia, por esmagadora maioria, rejeitou o projeto por 648 votos contra, 14 votos a favor e 18 abstenções. Com isso, findou-se o processo legislativo em torno da Diretiva.
Para Manuel Castells (1996) somos cada vez mais uma sociedade tecnodependente. O controle da tecnologia torna-se vital e dita as possibilidades de desenvolvimento e de inclusão social. As funções e os processos principais da era informacional estão sendo cada vez mais organizados em rede e através da Internet. A morfologia das redes é uma fonte drástica de reorganização das relações de poder. "Uma vez que as redes são múltiplas, os códigos interoperacionais e as conexões entre redes tornam-se as fontes fundamentais da formação, orientação e desorientação das sociedades"[4].
No Brasil, o patenteamento do software foi questionado por Sérgio Silveira (2004), que relata: "Interessa-nos que protocolos de comunicação em rede, softwares, ícones e as linguagens de programação sejam patenteáveis? Linguagens básicas da sociedade em rede e das cidades virtuais devem ser propriedade de um grupo econômico? Qual a vantagem para a humanidade, em geral, e para o mundo pobre e em desenvolvimento, em particular, de tornar as rotinas matemáticas submetidas a legislação de propriedade intelectual forte"?[5]
A harmonização do sistema de patentes não atingiram os Estados Unidos e Japão. O acordo TRIPs, referendado pelo Decreto n. 1.355/94, estabeleceu no art. 27(1) que qualquer invenção de produto ou de processo, em todos os setores tecnológicos, será patenteável, desde que seja nova, envolva um passo inventivo e seja passível de aplicação industrial. Os dois países aplicam conceitos distintos do estabelecido por TRIPs (não utilizam o requisito de aplicação industrial) para patentearem software, biotecnologia etc. Pregam a harmonização do sistema de patentes, mas não as cumprem. Visam uma legislação "não harmonizada" com os demais países do hemisfério para, com isso, defenderem seus próprios interesses comerciais e econômicos locais.
O patenteamento do programa de computador abriu o caminho para as patentes de modelo de negócios (incluindo até a Internet) nos Estados Unidos e Japão.
A Constituição Federal de 1988 estabelece no art. 5, inciso XXIX, que a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.
O art. 2 da LPI n. 9.279/96 determina que a proteção dos direitos relativos à proteção industrial considera o seu interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.
Tanto a Constituição quanto a LPI não deixa dúvida que a invenção visa o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.
Portanto, é necessário desenvolvermos projetos e soluções alternativas que condizem com a nossa realidade. O sociólogo Niklas Luhmann, (1997) argumenta que a constituição/integração da sociedade não se dá por consenso, mas sim pela criação de identidades, referências, valores próprios e objetos através de processos de comunicação na sua própria continuação. Segundo ele, "a diferenciação funcional dos sistemas sociais está tão enraizada dentro da sociedade, que mesmo o uso de meios políticos e organizacionais dos mais fortes não consegue boicotá-la regionalmente"[6].
As Diretrizes de Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE) publicadas em 26 de novembro de 2003 definiu como objetivo na linha de ação oficial "opções estratégicas" a concentração dos esforços em áreas intensivas em conhecimento, como semicondutores, softwares, fármacos e medicamentos, e bens de capital. Estes quatro setores apresentaram déficits comerciais, que tendem a se ampliar com o crescimento da economia.
A Lei n. 11.196, de 22 de novembro de 2005, na esfera da PITCE, prevê medidas para desonerar o investimento produtivo, estimular o setor de software e a inclusão digital, assim como incentivar a inovação tecnológica. Na questão da Tecnologia da Informação (TI) determina que serão suspensos o PIS/Pasep e a Cofins incidentes sobre as contas no mercado interno e sobre as importações de produtos e serviços destinados ao desenvolvimento no país de software e de serviços de TI para exportação.
Uma política industrial para o incremento das exportações do software brasileiro é importante e necessário, mas não é o suficiente. Na balança comercial de serviços do Relatório Anual 2005 do Banco Central do Brasil, verificamos que as despesas líquidas ao exterior com serviços de computação e informação somaram US$ 1,713 bilhão, ante US$ 1,281 bilhão em 2004 (aumento de 33,7%) e as receitas líquidas alcançaram US$ 88 milhões, ante US$ 53 milhões em 2004 (aumento de 66%). As despesas líquidas ao exterior de royalties e licenças atingiram US$ 1,404 bilhão, ante US$ 1,197 bilhão em 2004 (aumento de 17,3%) e as receitas líquidas alcançaram US$ 102 milhões, ante US$ 114 milhões em 2004 (diminuição de 11%)[7].
Podemos observar que os pontos mais importantes e cruciais no déficit da balança comercial são as despesas em computação e informação, e royalties e licenças.
O eng. Antonio Carlos Abrantes (2006), examinador de patentes do INPI, relata numa palestra em São Paulo que: "Dos 590 pedido decididos, 512 (87%) são de não residentes, sendo 425 deferidos (83%) e 87 indeferidos (17%); dos 590 pedidos decididos, apenas 78 foram de residentes (13%) sendo 14 deferidos e 64 indeferidos (82%). Poucas empresas nacionais: CMW Equipamentos, Petrobrás, Lotomídia, Tecnologia Bancária, Telebrás e Unicamp com apenas 2 pedidos"[8].
Como podemos verificar é necessário, além de uma política de exportação, uma política que reduza a despesa em serviço. O patenteamento do programa de computador (com poucas patentes residentes e muitas patentes não residentes) certamente irá contribuir ainda mais para o aumento da despesa na balança comercial de serviços.
De acordo com Jorge Sukarie (2006), presidente da Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES), o mercado brasileiro de software e serviços de tecnologia cresceu 24% no ano de 2005, movimentou US$ 7,41 bilhões e passou a ocupar o 12º lugar no ranking mundial. Em 2004, estava em 15º. As áreas que mais cresceram foram a de segurança da informação, de software de gestão ERP [Enterprise Resourse Planning é uma arquitetura de software que facilita o fluxo de informações entre todas as atividades de uma empresa, como fabricação, logística, finanças e recursos humanos] e voz sobre protocolo de Internet. As grandes empresas brasileiras são especializadas em ERP
Ainda segundo Sukarie, no ano de 2005 o setor de software movimentou US$ 2,72 bilhões e o de serviços correlatos, US$ 4,69 bilhões [US$ 7,41 bilhões no total]. O mercado brasileiro de programas para computador representa 1,2% do mundial e 41% do latino-americano. O Estados Unidos, líderes do setor, movimentaram US$ 287,5 bilhões em 2005, o que representou 43% do mercado mundial. Globalmente, o mercado de tecnologia da informação movimentou US$ 1,08 trilhão, sendo 40,8% serviços, 20,5% software e 38,7% equipamentos. Incluindo equipamentos, o Brasil movimentou US$ 11,9 bilhões no ano de 2005, o que representou 39% da América Latina.
O PITCE revela que as empresas de desenvolvimento de programas, processamento e bancos de dados passaram de 4.300 em 1994 para 5.400 em 2000.
Qual seria o impacto econômico e social sobre as empresas do setor de software e serviços correlatos se o software for patenteado?
O uso crescente das tecnologias da informação e comunicação aproximam as pessoas e instituições e contribui para uma maior sinergia dos fluxos informacionais em velocidades cada vez maiores. Ao mesmo tempo, introduz o risco de um novo tipo de exclusão social que vem sendo chamada de "exclusão digital". Nos países em que o processo de penetração de tais tecnologias se expande em ritmo acelerado, observa-se, como em nenhum outro momento da história, um crescimento econômico a taxas cada vez mais significativas.
A evolução das tecnologias digitais é mais veloz do que as transformações de valores e atitudes da sociedade. Assim, para inserir minimamente, em termos competitivos as diferentes populações e subespaços no processo de competição mundial, é fundamental garantir o acesso às redes de informação e comunicação e, simultaneamente, capacitar diferentes substratos da população no uso e domínio da linguagem apropriada. Um grande desafio a ser enfrentado na criação de oportunidades de inclusão digital é a universalização dos serviços. Para isto, é necessário criar competências e desenvolver equipamentos de acesso baratos, promover a alfabetização digital em larga escala, capacitar pessoas em todo o ciclo de geração e desenvolvimento de TIC, conteúdos adequados em língua portuguesa, além de desenvolver novos modelos de acesso à Internet. São inúmeros os desafios e oportunidades de desenvolvimento científico e tecnológico que se apresentam na transição para uma sociedade da informação a que estamos assistindo.
Neste contexto, o patenteamento do software no Brasil, além de prejudicar às pequenas e médias empresas, irá também prejudicar o esforço do Governo Federal em reduzir a exclusão digital no país.
Nos Estados Unidos e Japão, o software, além de ser patenteado como programa de computador também está sendo patenteado como modelo de negócios, tal como métodos administrativos, financeiros, comerciais etc.
Portanto, a política da implantação e utilização do software livre pelo Governo no Brasil torna-se cada mais importante e estratégico para o País. É extremamente necessário que as "Diretrizes da Implementação do Software Livre" [9] do Governo Federal sejam totalmente executadas.
O patenteamento do software no Brasil irá prejudicar o esforço do Governo em executar as diretrizes do software livre no país.
No cenário internacional, o Brasil e a Argentina apresentaram, em 26 de agosto de 2004, uma proposta na OMPI para estabelecer uma agenda para o desenvolvimento. No item IV do anexo, referente à "Dimensão de desenvolvimento e a criação de normas da propriedade intelectual: salvaguardar a flexibilidade necessária em áreas de interesse público", foi proposto, entre outros, que: "Para aproveitar o potencial de desenvolvimento oferecido pelo ambiente digital, é necessário levar em conta a relevância dos modelos de acesso abertos para a promoção da inovação e da criatividade. Nesse sentido, a OMPI deveria considerar a necessidade de iniciar e sondar as perspectivas que oferecem certos projetos de colaboração aberto com vista ao desenvolvimento de bens públicos, tais como o Projeto de Genoma Humano e o software de código aberto (Open Source Software)"[10].
A Internet, que é a maior rede mundial de computadores, só se tornou viável por causa da disponibilidade do código-fonte de implementações da pilha de protocolos TCP/IP. Isso tornou interoperáveis todas as demais redes. Esse protocolo de comunicação é desenvolvido mundialmente, de modo compartilhado e público.
Devemos perseguir o acesso livre à informação e ao conhecimento como elementos fundamentais para a inovação e o desenvolvimento social e tecnológico do país. O caminho da sociedade da informação é o da liberdade de informações e do intercâmbio de conhecimentos, não o da exclusão na forma de monopólio sobre as patentes.
Com o surgimento de novas tecnologias e do novo paradigma tecnológico no mundo, surgem novos setores estratégicos como, por exemplo, o software, a biotecnologia, a nanotecnologia, o biodisel etc. Nesse sentido, Governo Federal precisa fortalecer a propriedade industrial e intelectual no Brasil, criar um sistema nacional integrado de propriedade intelectual para beneficiar a sociedade brasileira e servir de instrumento para o desenvolvimento tecnológico, econômico e social do país. É necessário também formamos quadros capacitados e especializados em análise de políticas públicas relacionados à propriedade intelectual no INPI e no país.
Precisamos de alternativas. Alexandre Graham Bell, o inventor do telefone, ensinou-nos para nunca andarmos pelo mesmo caminho traçado, pois ele nos conduzirá somente até onde os outros foram.
[1] Castells, 1996: 469
[2] Silveira, 2004: 24
[3] Entrevista de Josepht Stiglitz ao jornal "O Globo", 2005, está disponível em: <http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=216610>
[4] Castells, 1996: 499
[5] Silveira, 2004: 31
[6] Luhmann, 1997: 161
[7] Boletim do Banco Central do Brasil, Relatório Anual 2005: 136
[8] Palestra de Antonio Carlos S. Abrantes. Patentes de software no Brasil. São Paulo, abr. 2006. Disponível em: <http://www.pff.org/digitalamerica/presentations/saopaulo/AntonioCarlosAbrantes11042006.pdf>
[9] Site do Governo Federal sobre software livre, disponível em:
<http://www.softwarelivre.gov.br/diretrizes>
[10] Proposta do Brasil e Argentina apresentada no World Intellectual Property Organization – WIPO para estabelecer uma agenda para o desenvolvimento. Anex, item IV: The Development Dimension and Intellectual Property Norm-setting: safeguarding public interest flexibilities, 2004, disponível em: <http://www.wipo.int/documents/en/document/govbody/wo_gb_ga/pdf/wo_ga_31_11.pdf>
ABRANTES, Antonio Carlos S.. Patentes de software no Brasil. São Paulo, abr. 2006. Disponível em:
<http://www.pff.org/digitalamerica/presentations/saopaulo/AntonioCarlosAbrantes11042006.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2006.
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Luiz Antonio Xavier dos Santos
lxavier[arroba]igs.microlink.com.br
Luiz Antonio Xavier dos Santos é engenheiro mecânico e examinador de patentes do Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, pós-graduado em Propriedade Industrial na COPPE/UFRJ e pós-graduado em MBA – Inovação e Propriedade Intelectual na UFRJ.
Brasil, Rio de Janeiro, 19 de junho de 2007
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