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A comunidade acadêmica das Ciências Sociais comemorou, em 1997, os 100 anos da clássica obra de Émile Durkheim, "O Suicídio". Foi de fundamental importância que um dos mais proeminentes autores e referência nacional no campo da sociologia da saúde, o professor Everardo Duarte Nunes, tenha nos brindado com uma reflexão sobre o tema, fazendo emergir um debate teórico que dispensa comentários pela sua relevância e pertinência. Pela iniciativa, os cientistas sociais do campo da saúde ficam devendo mais esse ato de generosidade a Everardo, ao mesmo tempo em que, com certeza, se sentirão mobilizados para aportar sua contribuição, porque é preciso dar seqüência à busca de respostas para as questões que motivaram o brilhantismo do autor. Houve um tempo no Brasil em que era muito difícil dar aulas de sociologia aprofundando os textos de Durkheim sem ser taxado de direitista, tempo este em que a própria sociologia acadêmica esteve muito confundida com o marxismo. No entanto, sempre Durkheim foi valorizado pelos sociólogos sérios de todo o mundo, ainda quando não comungassem com suas idéias positivistas. Assim a comunidade dos cientistas sociais permanentemente foi compelida a discutir os pressupostos e as conclusões de seus estudos, sobretudo no que concerne às relações entre o indivíduo e a sociedade. Este é o caso da obra "O Suicídio", porque se trata de uma aplicação exemplar, uma espécie de "tipo-ideal", lembrando Weber, de aplicação de "As regras do método sociológico". Essas duas obras primas do pensamento de Durkheim tinham como uma de suas intencionalidades, provar aos cientistas das áreas hard, que também a sociologia é e pode ser considerada ciência, tomando-se como base a pretensa objetividade positivista, até então propriedade das ciências naturais.
O esforço realizado por Everardo foi de retomar a obra e tornar públicas as controvérsias que vários autores realizam sobre ela. Neste sentido, não debaterei seu trabalho, e sim, buscarei acrescentar argumentos à discussão, ora concordando, ora discordando, e ora tornando atuais as condições de compreensão do tema. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que "O Suicídio" tem sido um livro de referência para a compreensão das relações entre ciências sociais e epidemiologia, sobretudo nas questões de método, muito embora os epidemiologistas discutam e critiquem o rigor das estatísticas apresentadas. Em segundo, vale ressaltar que o tema da violência, no interior do qual a autoagressão se inclui, ocupa hoje, prioritariamente, a pauta da saúde coletiva como objeto de reflexão, ação preventiva e atenção médica.
Diferentemente dos países europeus e do Japão, o Brasil não apresenta altas taxas de suicídio no seu quadro de mortalidade. A notificação desses eventos, um dos pontos mais vulneráveis para o conhecimento de sua magnitude, o coloca com um percentual de 4% a 5% do total das mortes pelas chamadas "causas externas", classificação utilizada pela Organização Mundial de Saúde para se referir ao conjunto de eventos fatais que podem ser resumidos como homicídios, acidentes e os suicídios. No entanto, esse fenômeno que tem pouca significância estatística, tem uma enorme significância social, como muito bem lembra Durkheim, que o coloca, no final do século XIX, como indicador de anomia da sociedade francesa. Ou seja, a comoção social provocada pelo fenômeno do suicídio está diretamente ligada a seu caráter revelador de complexas relações sociais e pessoais e envolvendo também o sentido da vida em sociedade e as razões da "opção" pela interferência humana no evento inexorável da morte, que no imaginário de muitas sociedades é interpretado como vontade de Deus, dos deuses, ou como ciclo natural da vida. Por outro lado, apesar do estranhamento que possa provocar em quase todas as culturas, o suicídio é um fenômeno universal, registrado desde a alta antigüidade, rememorado pelos mitos das sociedades primitivas, criticado pelas religiões como ato de rebelião contra o criador, aparecendo ainda, em muitos escritos filosóficos, como ato de suprema liberdade. Segundo vários estudiosos, o ato de atentar contra a própria vida acontece pari passu à emergência da consciência, sendo portanto, um fenômeno que acompanha a própria história da humanidade.
Embora persistam historicamente grandes sanções sociais sobre o suicida, há exatamente um século o debate sobre essa figura deixou o terreno apenas da criminologia, das religiões e da filosofia, para ingressar na pauta das ciências sociais, graças a Durkheim. Os pretextos que o autor utiliza para tratar o tema são de duas naturezas. Uma teórica e outra histórica. A primeira, a necessidade de aplicação empírica de "As Regras do Método Sociológico" por ele elaboradas; e segunda, a constatação do crescimento das taxas de suicídio, no decorrer do século XIX na Europa, um século de profundas transformações no modo de produção e nas relações sociais de trabalho em toda a Europa. Na verdade, Durkheim elaborou a primeira tentativa de interpretação sistemática do fenômeno, inspirando-se sobretudo em Quételet (1835) e em Morselli (1879), mostrando que o suicídio está ligado a forças sociais que transcendem a esfera dos sujeitos. Seu incremento, segundo o autor, "é inversamente proporcional ao grau de integração dos indivíduos à sociedade", e varia segundo as culturas: "cada povo tem pelo suicídio, uma tendência que lhe é própria". Essa posição de Durkheim, embora atacada e questionada, tem resistido, em muitos de seus aspectos, a provas e refutações. É nesse sentido que o autor o considera, primeiro, um fato social; segundo, um fato normal porque, como bem argumenta, não há sociedade conhecida, sem o suicídio, assim como não há sociedade sem lei e sem crime. No imaginário social e dentro de muitas teorias que se opõem às idéias de Durkheim, o suicídio é visto como desvio, fruto de doenças mentais, ou no outro extremo, ato supremo de liberdade, portanto, carregado de profunda humanidade. É contra o que considerou ideologia ora anatematizadora ora heróica que o autor se insurgiu e escandalizou a França, ao lançar o livro em pauta, colocando o suicídio como fato recorrente; logo, "normal" da cultura. Seu intento, todavia, era menos discutir a legitimidade do suicídio e sim a sua causalidade.
As oposições às idéias e teorias de Durkheim são de várias ordens, mas assinalarei duas nesta discussão. A primeira, mais fechada, é a que bate de frente com seu peremptório alijamento a segundo plano, dos fatores individuais (que a seus olhos são pretextos, ocasiões e não causas); e a invocação de correntes suicidógenas como explicação para o aumento de taxas do fenômeno em pauta. As maiores críticas ao autor vêm do mundo psi. Muitos consideram o suicídio como um acontecimento pessoal. "Os suicidas são alienados" dizia Esquirol (1827). Desde a psiquiatria mais primitiva até as correntes fenomenológicas e a psicanálise, a área vem admitindo que o suicídio é determinado por fatores psicológicos ou orgânicos individuais. Há autores que interligam os fatores psicológicos às noções mais atualizadas de predisposição genética (Baechler, 1975). A idéia de Baechler é de que não importa quem se mate; cada indivíduo herda, através de seu quadro genético, uma capacidade maior ou menor de enfrentar os desafios da vida. Ou seja, há indivíduos mais sujeitos à depressão, outros mais serenos. Dificilmente, nesse campo, vê-se posição tão aberta quanto a de Cassorla (1994; 1998) que assinala a complexidade das situações autodestrutivas, tanto em sua vertente social como em suas manifestações individuais.
A segunda crítica vem do próprio campo das ciências sociais, a partir de uma visão compreensivista. Os vários estudiosos que seguem essa corrente discutem o papel do sujeito, dos significados e das intencionalidades como parte integrante do fato e do ato social. Desta forma, recusam a posição de Durkheim que retira do âmbito da sociologia toda a gama de relações sociais e de reações que compõem a complexa dinâmica da autoviolência humana, para encerrá-la em variáveis e regularidades sociais. É claro que a posição de Durkheim se apóia na sua premissa básica de coerção da sociedade sobre o indivíduo, e é a partir daí que explica (para usar uma de suas categorias) esse fato social.
Como acontece frente a qualquer fenômeno complexo do qual as ciências modernas se aproximam, as várias disciplinas tentam reduzir o problema do suicídio a sua própria visão e fazê-lo entrar em suas categorias convencionais. Como diz Chesnais (1981), cada especialidade tende a se tornar uma religião e a se fechar em suas própria verdade. Porém, ao contrário, frente aos reducionismos, os fatos mostram que a autodestruição humana é resultante de uma combinação de fatores. Sua natureza é simultaneamente histórica, cultural e individual, expressando-se nos indivíduos, numa síntese biopsicossocial, ou seja, existe um imbricamento de elementos exteriores e interiores que se cruzam, permitindo, inclusive, produzir certas previsões. Algumas dessas probabilidades dão razão a Durkheim: (a) nos seus aspectos biodemográficos os indicadores mostram ao mesmo tempo uma certa constância dos dados e a vulnerabilidade de determinadas faixas etárias; o risco maior do gênero masculino; a menor incidência entre os casados com filhos; o peso das enfermidades psíquicas e mentais. Entre os aspectos sociais e culturais desencadeantes os dados universais de que se dispõem, mostram a pertinência a determinadas etnias, grupos e classes sociais e a associação com alguns eventos históricos, como componentes de vulnerabilidade. As informações internacionais, que permitem um certo grau de comparabilidade, são, desde há dois séculos, as estatísticas de mortalidade, os censos demográficos, os arquivos policiais e judiciários.
Em suma, o trabalho de Durkheim é clássico no sentido a que se propõe metodologicamente: fazer as indicações das regularidades, recorrências e tendências. Contém ao mesmo tempo uma série de preconceitos próprios à filosofia positivista e tem a marca de seu tempo, quando soube catalizar as idéias da época. Nada substitui, porém, trabalhos empíricos, como este que ele próprio fez, levando em conta especificidades históricas e diferenciações de sociedades, culturas, grupos e condições dadas. Exemplo disso é um estudo citado por Chesnais (1981), feito na Hungria, um país onde persistentemente as taxas de suicídio permanecem as mais altas da Europa. Dos 853 suicídios ocorridos num ano em Budapeste, 2/3 eram de pessoas doentes: metade acometida de enfermidades crônico-degenerativas; um quarto, de internos de instituição psiquiátrica; e os outros 25% de doentes com perturbações neuróticas ou psicóticas. Outra evidência da pesquisa é o fato de apenas 10% dos suicidas, por ocasião do evento, gozarem de boa saúde. Da mesma forma, o exame do cérebro dessas pessoas, a maioria idosa, revelou arteriosclerose cerebral em 47,52%. Essa investigação empírica vem corroborar a idéia de que uma série de fatores externos (sócio-culturais) e internos (depressão, desesperança, pulsão de morte e outros) relativos aos sujeitos interagem nesse fenômeno social que nos instiga e provoca nossas culturas e nossa própria humanidade. Por outro lado, as especificidades culturais nos alertam para o fato de que as causas do suicídio na Hungria não podem, teoricamente, ser transportadas para analisar outras realidades. Certamente, como diria Mauss (1974), o suicídio é um fato social total, ou seja, está saturado de elementos e significados biológicos, emocionais, históricos e sociais propriamente ditos, simultaneamente.
Por fim, falta refletir sobre as semelhanças e as diferenciações entre homicídio e suicídio, um tema do qual se ocupou Durkheim e do qual continuam a tratar os estudiosos de hoje. Chesnais afirma que "na base do homicídio e do suicídio se encontram os mesmos impulsos agressivos do indivíduo" (1981: 199). A idéia de oposição complementar entre homicídio e suicídio é antiga, e vários autores mostram como o mapa de um é o inverso do mapa do outro fenômeno, em diferentes sociedades, representando ambos expressão da pulsão de morte dos indivíduos e fatores que Durkheim denominou como anomia. Para Lombroso, pai da criminologia italiana, por exemplo, os dois eventos são igualmente manifestações de degenerescência e de impotência individual e social. Nas sociedades fortemente estruturadas onde as regras morais que definem o bem e o mal são rigidamente codificadas, a razão entre suicídio/homicídio e a tendência autopunitiva são muito elevadas. Aquelas onde a ordem social é menos rígida e são mais frouxas as normas morais, teriam maior propensão a apresentar altas taxas de homicídio. Essa "lei" é assumida reiteradamente e muitas vezes acriticamente, inclusive por muitos epidemiologistas. Alguns a traduzem de forma totalmente banal: "os desenvolvidos se matam e os subdesenvolvidos matam uns aos outros". No entanto, essa constatação aparentemente muito comum não é tão simples assim. Para ficar apenas em dois exemplos, na Colômbia atualmente, são altos e crescem tanto as taxas de homicídio quanto as de suicídio. Ao contrário, na Inglaterra tanto são baixas as taxas de homicídio com as de suicídio. No Estados Unidos, embora as taxas de suicídio sejam mais altas que as de homicídio, ambas, de 1900 a 1980, seguem como numa curva paralela, os mesmos movimentos de subida e descida, sendo ambas mais altas na crise depressiva que o país viveu entre 1929 e 1930.
Chesnais (1981: 230-251) mostra em seu estudo que o fenômeno do suicídio está impregnado de fatores antropológicos incontestáveis. Diz isso depois de estudar as taxas de diversas regiões da Europa, chama atenção para aspectos históricos, religiosos, étnicos, culturais e inclusive climáticos, mostrando uma tendência a se manterem as mesmas taxas em períodos históricos longos, e grandes diferenciações entre sociedades muitas vezes geograficamente próximas.
No seu clássico estudo sobre o tema, Durkheim define o suicídio como "todo caso de morte que resulte direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo, praticado pela própria vítima, sabedora de que devia produzir esse resultado" (1982:16) e acrescenta, delimitando claramente seu objeto de análise: o ato assim definido, mas interrompido antes de resultar em morte não deve ser considerado"(1982:16). A hipótese de Durkheim é que, se em lugar de olharmos para o suicídio como algo isolado, o vemos como um fato social, nele teremos inúmeras informações sociais e culturais, devendo, portanto ser tratado de forma coletiva, indo do todo às partes.
Citei mais uma vez a hipótese central de Durkheim porque os estudo brasileiros em geral se encaminham na negação ou na afirmação dela. De um lado temos inúmeros trabalhos realizados pela epidemiologia, buscando apresentar a magnitude do problema através da análise de taxas (Barros, 199l; Almeida Filho et al. 1992; Barbosa, 1974; Bucher, 1978; Mautone, 1985; Micheletti, 1972), e uma quantidade muito maior, quase todos provenientes na área psi, analisando exatamente aqueles fatores que Durkeim conscientemente excluiu de seu trabalho, os fatores individuais e relacionais tomados como parte do contexto social (Cassorla, 1984a; 1984b; 1984c; 1985; 1987; 1991a; 1991b; Cassorla & Knobel, 1995; Cassorla & Smeke, 1994; Cosdas, 1988; Vansan, 1987; 1988; Bastos, 1983; Sonenreich & Friedrich, 1984; Freitas, 1983; Amaral, 1985).
Quando em 1991 fizemos uma ampla revisão bibliográfica de mais de 400 títulos (Minayo et al., 1990) abrangendo a produção brasileira sobre o "impacto da violência sobre a saúde", chamou-nos atenção que, embora o suicídio se constituísse, no conjunto de "causas externas" como a de menor freqüência, era o que, até então, provocava o maior número de estudos entre os cientistas da área da saúde. Na época levantávamos duas hipóteses: a primeira, do intenso significado social e emocional de que o fenômeno se reveste, hipótese que a meu ver continua a mais forte. A segunda, indagávamos sobre um certo colonialismo e mimetismo acadêmico, que nos levaria a enfatizar temáticas de maior relevância para os chamados países centrais, pelo fato de que em todos eles, o suicídio é, estatisticamente a forma de violência mais significativa, no grupo de causas externas. Para se ter uma idéia, naquele momento não havia, na bibliografia consultada, nenhum estudo específico sobre homicídios na literatura de saúde pública brasileira, quando esse fenômeno já apareceria como o mais preocupante nas pesquisas epidemiológicas, pelo seu expressivo crescimento, particularmente nas grandes áreas metropolitanas do país. Hoje a situação é outra, pois os homicídios saíram do estrito mundo criminalístico e das páginas policiais dos jornais para se constituírem objeto de estudo e de propostas de prevenção, seja do campo da saúde pública, seja no campo da sociologia e da antropologia, seja dos movimentos sociais. Na área de saúde essa exposição do tema se deve sobremodo a duas autoras, Edinilsa Ramos de Souza, do Claves/Fiocruz e Maria Helena Melo Jorge da FSP/ USP.
Nos estudos da área psi no país, embora o tema esteja muito presente, creio que sem dúvida o estudioso de maior transcendência é o professor Roosevelt Cassorla que há mais de 20 anos vem acompanhando casos, discutindo-os teoricamente e articulando os aspectos individuais aos coletivos. Ele é, pois, nossa referência mais importante para analisar algumas questões.
1) Em primeiro lugar é preciso observar que, se do ponto de vista geral, no Brasil as taxas de suicídio são mais ou menos constantes, vivemos um período histórico de incremento das taxas de suicídio e de homicídio entre jovens. Essa constatação se encontra em Cassorla nos seus estudos que vão de 1982 a 1998. De todos os casos que o autor tem acompanhado 75% são de jovens menores de 27 anos (Cassorla, 1994:62) Souza & Malaquias (1988) em recente estudo a partir do Sistema de Informações sobre Mortalidade/MS, no período de 1979 a 1995 constatam que o suicídio é a 6a causa de morte na faixa etária de 15 a 24 anos nas regiões metropolitanas. A incidência dos suicídios nesse grupo de jovens aponta uma certa elevação que se pode observar a partir das taxas anuais: para os anos de 1979, 1985, 1990, 1995 temos respectivamente as taxas de 4,33; 4,10; 4,48; 5,86 para 100 mil habitantes. Considerando-se as capitais individualmente, as taxas são bastante diferenciadas. Veja-se em ordem decrescente: Porto Alegre 7,63; Curitiba 7,29; Belém 6,70; Recife 6,33; São Paulo 5,77; Belo Horizonte 5,57; Fortaleza 4,81; Rio de Janeiro 1,84; Salvador 0,37.
2) Em segundo lugar, a maioria dos estudos, diferentemente da recomendação de Durkheim, tratam das morte e das tentativas de morte por suicídio, por três motivos. (a) De um lado, porque quase sempre os indivíduos que morrem por autoviolência costumam anunciar o evento fatal através de vários sinais anteriores, quase nunca levados a sério pelos que os cercam. Cassorla (1994: 62), revisando vários autores mostra que a relação entre ato suicida e suicídio é de 7% a 33%. (b) Depois porque, freqüentemente, o perfil sócio-demográfico dos que se suicidam costuma ser diferente dos que ameaçam fazê-lo. Por exemplo, as meninas e adolescentes do sexo feminino são o grupo que apresenta o maior número de tentativas, várias vezes maior do que o do sexo masculino. Notificações no Hospital das Clínicas de São Paulo, registradas pelo Ceatox (Centro de Assistência Toxicológica), Dimenstein, (1988:3) de agosto de 1991 até março de 1998, mostram que deram entrada para tratamento por tentativa de suicídio, 192 meninas e 39 meninos, a maioria delas em plena puberdade e algumas com processo de gravidez precoce e indesejada. Da mesma forma, as mulheres idosas são um segmento muito vulnerável no país quanto a tentativas de autodestruição, mas são relativamente baixas as taxas de perpetração do suicídio entre elas, ocorrendo nos homens com uma freqüência três vezes maior. (c) Por fim, o crescimento das notificações e da busca por atenção dos que ameaçam se matar, é um fenômeno que merece atenção do setor saúde. O Sistema de Informação Toxicológica, Sinitox, da Fiocruz/MS (1998) registra um impressionante incremento do número de notificações de tentativas de suicídio por ingestão de medicamentos e produtos tóxicos. Em 1993 foram 7.965 casos e em 1994, 9.519; em 1995, 10.511 (Bochner, 1998). Os dados para 1996, que ainda estão sendo tratados apontam um crescimento para além de 12.000 notificações. E fica patente a vulnerabilidade maior dos jovens (15 a 39 anos). Se dermos atenção ao que mostram os estudos dos especialistas, estamos assistindo a um aumento concomitante de violência por homicídio e por suicídio nas faixas etárias de 15 a 39 anos, o que pode ser mais um forte indicador da crise social que atravessa o país.
3) Outro ponto de fundamental importância assinalado por todos os que estudam o fenômeno em pauta é resumido por Cassorla como a dificuldade de se dimensioná-lo, sendo os dados registrados falhos e as taxas oficiais precárias. Os motivos para tal situação são vários. De um lado, todas as informações sobre violência no país padecem de imprecisão na sua fonte de produção: polícia, institutos de medicina legal, sem falar na ausência total de dados por não registro devido à existência de cemitérios clandestinos, destruição de cadáveres e outros. De outro, fatores sócio-culturais têm um peso muito grande nos sub-registros, quando particularmente os familiares tentam mascarar a existência do suicídio, para não revelarem problemas relacionais e dificuldades nucleadas por seu membro suicida, assumindo o ato como pertinente à esfera privada, ou seja, exatamente o contrário do que Durkheim quis provar, ao apresentá-lo como um evento do âmbito público. Mas Cassorla (1994; 1998) e outros autores como Toolan (1975) apontam outro ponto complicador. É a própria dificuldade de se isolar o que é suicídio no conjunto dos eventos violentos. Toolan (1975) por exemplo afirma que 50% dos suicídios são rotulados como acidentes nos Estados Unidos. Cassorla (1994; 1998) chama atenção também para o que denomina "suicídio inconsciente" exemplificando com os casos dos homicídios precipitados pelas vítimas; os acidentes (sobretudo os de trânsito) provocados pelos que os sofrem; os envenenamentos pretensamente acidentais em crianças e adolescentes etc. Ou seja, é certo que muitos indivíduos se colocam em situação de risco fatal. Em resumo vários autores consideram que os dados sobre suicídio são subestimados em duas ou três vezes.
São algumas questões apresentadas acima que, sem esgotarem o tema, permitem a continuidade da discussão que o artigo de Nunes (1988) buscou reacender.
Nestas reflexões, em momento algum busquei identificar causas ou diagnosticar tratamentos específicos para a questão do suicídio. O tema requer, de um lado, a especialização dos que trabalham os gritos do insconsciente, o sofrimento não suportável de viver em sociedade por parte de muitos indivíduos; e de outro, o necessário coro de muitas vozes das várias disciplinas que podem chamar atenção para os riscos e as possibilidades de prevenção. Ao comentar o trabalho de Everardo D. Nunes rememorando os cem anos de Suicídio de Durkheim, quis apenas assumir o tema como de grande relevância para a análise da situação social e de saúde do país. De certa forma, quis até retratar-me, pela minha queda quantitativista, quando na revisão bibliográfica sobre violência, em 1991, fui levada pelo critério de relevância estatística para refletir sobre o problema. Na verdade, as análises que fazemos hoje nos levam a pensar que não podemos a não ser com finalidade analítica desmembrar as diferentes formas de violência, fenômenos que configuram hoje a segunda causa de mortalidade no obituário geral do país. Por outro lado, não dá também para aceitar apenas os dados aglomerados para medir a relevância do problema do suicídio, pois temos já conhecimento social e acadêmico no país para perceber os riscos e os casos fatais por grupos sociais, faixas etárias, etnias (sobretudo quanto às nações indígenas, muitas delas em processo de desintegração cultural) e muitas outras variáveis já analisadas por especialistas. Entender as tendências autodestrutivas da sociedade através de suas altas taxas de homicídio, suicídio e acidentes fatais de trânsito e de trabalho, é princípio de caminho a ser trilhado por todos os que acreditamos que os impulsos de vida podem ser mais fortes que os causadores de morte.
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Maria Cecília de Souza Minayo 1 -
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Centro Latino Americano de Estudos sobre Violência e Saúde, Fundação Oswaldo Cruz. Praia do Flamengo 194/601, Rio de Janeiro, RJ 22210-030, Brasil.Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
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