Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
A razão para os altos índices de uso indevido de substâncias em indivíduos com transtorno bipolar do humor é desconhecida. Atualmente, reconhece-se que as relações etiológicas entre o consumo de álcool e drogas e os transtornos afetivos são complexas, heterogêneas, bidirecionais e variáveis ao longo do tempo. Algumas hipóteses já foram aventadas (Quadro 1). Apesar de observadas em algumas situações, nenhuma destas é aplicável a todos os casos, podendo também aparecer associadas em sinergismo (Brady 1999; McQueen e Young, 2001).
Sintomas depressivos podem predispor o uso de substâncias químicas (hipótese da automedicação). Podem também resultar de dificuldades socioeconômicas (desemprego, separações afetivas etc.) decorrentes de um consumo mal-adaptado (hipótese socioeconômica) ou serem decorrentes de alterações neuroquímicas (transitórias ou persistentes) produzidas pelo uso crônico ou pela síndrome de abstinência (hipótese neurotóxica). Por fim, é possível que sejam patologias independentes ocorrendo coincidentemente num mesmo indivíduo (hipótese genética) (Merikangas e Stevens, 1998; Strakowski e DelBello, 2000).
Algumas evidências apontam que o transtorno bipolar geralmente antecede o uso indevido de substâncias (Kupka et al., 2001; Kessler, 2004). Ainda assim, o uso de álcool e drogas pode contribuir para o surgimento da primeira crise (depressão ou mania) em certos grupos de pacientes, habitualmente em idade mais precoce do que a observada em pacientes bipolares não-usuários (Strakowski et al., 2000; Levin e Hennesy, 2004). Apesar de tais achados ainda serem escassos e carecerem de melhor entendimento (Krishnan, 2005), o transtorno bipolar é considerado fator de risco para o uso indevido de substâncias (Biederman et al., 1997) e o uso de álcool e drogas, um agente complicador e sinal de prognóstico reservado, tanto para a evolução do transtorno bipolar quanto para a resposta ao seu tratamento (Feinman e Dunner, 1996; Drake et al., 2004; Kessler, 2004).
O risco para o desenvolvimento dessa comorbidade é ainda maior quando o transtorno bipolar se inicia precocemente (Tohen et al., 1998) ou vem acompanhado ou precedido por transtornos de conduta (Levin e Hennesy, 2004) e impulsividade (Swann et al., 2004). Carlson et al. (1998) examinaram dados do Epidemiological Catchment Area (ECA) para determinar a ocorrência de transtorno bipolar, transtornos de conduta e abuso de substância em 132 indivíduos que preenchiam os critérios para o transtorno bipolar. Eles detectaram que aqueles com transtorno de conduta na infância tinham maior probabilidade de desenvolvimento do uso indevido de substâncias se comparados aos bipolares sem problemas de comportamento durante a infância. Há ainda a possibilidade de os transtornos de conduta e comportamentos disruptivos infantis serem, na realidade, sintomas de mania na infância, uma categoria nosológica que recebeu pouca atenção dos profissionais até recentemente, reforçando o elo causal entre o transtorno bipolar e o uso indevido de substâncias psicoativas na idade adulta (Faedda et al., 2004; Levin e Hennesy, 2004; Lima, 2004).
Se a relação de causalidade é ainda entremeada por inúmeras lacunas e incertezas, o papel do consumo de substâncias como fator de piora na evolução do transtorno bipolar do humor é bem estabelecido e consensual (Rush, 2003). Nolen et al. (2004) acompanharam, por um ano, 258 pacientes bipolares e constataram que a gravidade dos sintomas observados estava diretamente relacionada ao consumo de substâncias pelos pacientes, antecedentes de dependência de álcool e drogas pelos pais e baixo nível ocupacional. Segundo Krishnan (2005), as complicações do consumo de substâncias sobre o transtorno bipolar incluem maior incidência de episódios mistos e ciclagem rápida, aumento do tempo de remissão das crises, maior incidência de complicações clínicas e aumento dos índices de tentativa de suicídio e suicídio entre estes indivíduos. Outros achados apontam para uma estreita relação entre o consumo de álcool e drogas e o aumento da intensidade dos sintomas de depressão e mania, do fracasso na resposta às abordagens terapêuticas (medicamentosas e psicossociais) e do número e duração das internações (Salloum et al., 2002; Drake et al., 2004; Levin e Hennesy, 2004).
Álcool
O uso indevido de álcool é a comorbidade mais associada ao transtorno bipolar do humor (Vieta et al., 2001), sendo essa condição até cinco vezes mais prevalente entre os pacientes bipolares do que na população geral (Kessler, 2004). O consumo de álcool entre pacientes bipolares aumenta o risco de crises (especialmente a depressão), internações e tentativas de suicídio (Cividanes, 2001). Salloum et al. (2002) conduziram um estudo com 256 pacientes em mania internados para tratamento. Os pacientes que também possuíam diagnóstico para uso nocivo/dependência de álcool apresentaram mais sintomas de mania, maior labilidade do humor, impulsividade e episódios de violência do que aqueles sem uso atual de álcool. Slama et al. (2004) estudaram 307 pacientes bipolares em tratamento ambulatorial e constataram que a presença de uso indevido de álcool aumentou o risco de suicídio da amostra.
Cocaína
O consumo de cocaína chega a acometer um terço dos pacientes bipolares, aumentando ainda mais quando o transtorno bipolar está associado a um transtorno de ansiedade (pânico, fobia, TOC) (Goldberg et al., 1999). A cocaína é utilizada mais comumente para manter ou potencializar o quadro de mania do que como "automedicação" dos sintomas depressivos (Crawford et al., 2003). A adesão é o principal problema dos usuários de cocaína (Goldberg et al., 1999; Crawford et al., 2003). Além disso, a associação entre o uso de cocaína e a ocorrência de problemas legais e transtornos de personalidade (Havassy e Arns, 1998) e a presença de uso concomitante de álcool e crack (Gossop et al., 2003) comprometem, per se, a evolução do curso da doença e do tratamento, representando mais um desafio para o especialista.
Maconha
Os efeitos deletérios da maconha estão relacionados à dose utilizada, à precocidade do início do consumo, às características de personalidade do usuário e à sua vulnerabilidade para complicações psiquiátricas (Os et al., 2002; Henquet et al., 2005). A relação entre o consumo de maconha e o desenvolvimento de depressão maior foi documentada por alguns estudos. Bovasso (2001) entrevistou, 15 anos depois, 1.920 indivíduos que haviam participado, em 1980, do Epidemiological Catchment Area (ECA), na cidade de Baltimore. Entre os usuários de maconha sem diagnóstico inicial de depressão maior, o risco de aparecimento de sintomas depressivos entre as entrevistas foi quatro vezes maior, quando comparado ao grupo de não-usuários e sem transtorno psiquiátrico. Lynskey et al. (2004) acompanharam 277 pares de gêmeos, sendo apenas um deles dependente de maconha, e 311 pares de gêmeos, tendo apenas um deles iniciado o consumo antes dos 17 anos. Apenas entre os gêmeos dizigóticos, a dependência de maconha aumentou o risco de depressão maior. O risco de tentativa de suicídio foi três vezes maior entre os dependentes, sejam esses mono ou dizigóticos. O início precoce do consumo esteve associado ao risco de suicídio para ambos os tipos de gêmeos, mas não ao desenvolvimento de depressão. Tais achados sugerem que essa comorbidade possui componentes genéticos e ambientais.
No entanto, a relação entre o uso de maconha e o transtorno bipolar é menos conhecida. O consumo de maconha aumenta o risco, a intensidade e o tempo de duração de uma crise, geralmente polarizada para a mania (Strakowski et al., 2000). Rottanburg et al. (1982) observaram que um grupo de pacientes psicóticos com testes de urina positivos para maconha possuía crises marcadamente hipomaníacas, agitação psicomotora mais intensa, maior desorganização e duração mais prolongada da crise após o início do tratamento, se comparados com pacientes psicóticos livres da substância. Goldberg et al. (1999) constataram, que o consumo de maconha ou álcool em um grupo de pacientes bipolares internados aumentou o tempo de remissão do quadro, em comparação com bipolares não-usuários de substâncias psicoativas ou usuários de cocaína.
O diagnóstico de ambas começa pela identificação da presença simultânea do transtorno bipolar do humor e transtornos relacionados ao consumo de substâncias psicoativas, a partir dos critérios da Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10 / OMS ou do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV / APA) (Quadro 2). Os critérios diagnósticos são objetivos e de fácil detecção pelo profissional capacitado. A dificuldade diagnóstica, no entanto, está na "atribuição causal acerca do quadro afetivo observado". A décima edição da Classificação Internacional das Doenças CID-10 (OMS, 1993) não orienta os profissionais da saúde para essa questão, limitando-se a descrever os transtornos orgânicos do humor e os transtornos do humor propriamente ditos. Já o DSM-IV (APA, 1993) propõe algumas diretrizes para a identificação da natureza primária ou secundária dos transtornos mentais induzidos por substâncias (Quadro 3).
Um roteiro para a investigação de algumas hipóteses (Crome, 1999) pode ser útil para determinar a relação de causalidade entre as patologias observadas:
Apesar de úteis na prática clínica diária, tais diretrizes estão longe da operacionalidade total. Conforme discutidas anteriormente, as relações de causa e efeito entre o transtorno bipolar e o uso indevido de substâncias ainda não estão totalmente esclarecidas e podem não ser as mesmas para todos os pacientes. Além disso, os sintomas relacionados à dependência de substâncias psicoativas e ao transtorno bipolar freqüentemente se sobrepõem (Brady et al., 1999).
Todas as substâncias psicoativas, especialmente os benzodiazepínicos, possuem "síndromes de abstinência protraídas", cursando com sintomas depressivos que excedem o período estabelecido pelo DSM-IV (Juergens e Cowley, 2003). Requerem, por isso, um julgamento clínico apurado no diagnóstico diferencial (Ashton, 1991). As substâncias químicas, per se, são capazes de induzir ou piorar síndromes depressivas ou maniformes, que remitem ou melhoram apenas com a abstinência, muitas vezes não requerendo tratamento medicamentoso posterior (Brunette et al., 2003; Crawford et al., 2003; Rush, 2003). Períodos de abstinência de substâncias como álcool, hipnóticos, opiáceos e estimulantes podem ser marcados por sintomas depressivos, tais como disforia, lentificação e alteração do sono, do apetite e da concentração (Brunette et al., 2003; Rush, 2003; Krishnan, 2005). Ao contrário dos sintomas depressivos, os quadros maniformes são induzidos principalmente pelo uso de estimulantes e alucinógenos (Halpern, 2003). Por fim, a combinação de agentes depressores e estimulantes em usuários pesados pode tornar ainda mais difícil a diferenciação entre os transtornos afetivos induzidos e não-induzidos por substâncias (Strakowski et al., 2000; Strakowski e DelBello, 2000; Crawford et al., 2003).
Por outro lado, sintomas leves de mania, especialmente entre os cicladores rápidos e bipolares tipo II, são freqüentemente diagnosticados como sinais de recaída e fracasso dos pacientes em alcançar a abstinência ou como componentes da síndrome de abstinência da substância que utilizavam (Katzow et al., 2003). Sherwood et al. (2001) chamam a atenção para os altos índices de sintomas hipomaníacos entre pacientes de serviços ambulatoriais estadunidenses, ressaltando que estes, quando não diagnosticados, estão diretamente relacionados à baixa adesão e refratariedade ao tratamento instituído. Vieta et al. (2000) observaram que o transtorno bipolar tipo II é menos diagnosticado do que deveria, em decorrência da semelhança entre as suas sintomatologias e suas principais comorbidades, entre elas, o uso indevido de substâncias psicoativas.
Por fim, o transtorno bipolar do humor pode estar associado a outras patologias psiquiátricas, tais como déficit de atenção e hiperatividade e transtorno de personalidade borderline, ambos intimamente associados ao consumo de substâncias psicoativas (Sasson et al., 2003). Desse modo, a avaliação diagnóstica do psiquiatra deve ser cuidadosa, requerendo, na maior parte dos casos, algumas sessões com o paciente, familiares e grupos de convívio até a construção de um diagnóstico responsivo às estratégias de tratamento farmacológicas e psicossociais propostas.
O indivíduo com transtorno bipolar do humor, que faz uso indevido de substâncias psicoativas, requer acompanhamento multidisciplinar especializado, de longa duração, preferencialmente em ambiente ambulatorial e supervisionado por uma única equipe profissional (NIDA, 2001; Department of Health, 2002).
Ainda que o tratamento apresente melhores resultados quando o transtorno bipolar e a dependência de substâncias psicoativas aparecem em suas formas puras, a abordagem dessa comorbidade pode ser bem-sucedida. Drake et al. (2004) acompanharam por três anos o tratamento multidisciplinar de 51 pacientes com história de transtorno bipolar há mais de dez anos e dependência de substâncias psicoativas. Ao final do seguimento, observaram que a maioria estava abstinente e vivendo de maneira autônoma, com trabalho, contatos sociais com não-usuários de álcool e drogas e satisfeitos com sua qualidade de vida. No entanto, houve pouca ou nenhuma melhora dos sintomas psiquiátricos, que os autores consideraram "crônicos" e "arraigados".
A primeira meta terapêutica deve ser a remissão dos sintomas afetivos agudos e a obtenção de uma abstinência estável (McElroy, 2004). Isso aumenta a adesão ao tratamento e melhora o prognóstico de ambas as patologias (Department of Health, 2002). A gravidade da comorbidade não é per se um preditor de fracasso, mas o profissional deve possuir a sua dimensão exata (Figura 1), para que possa escolher a estratégia medicamentosa e o ambiente de tratamento mais adequados (Department of Health, 2002; Crawford et al., 2003).
Há pouco conhecimento acerca de estratégias medicamentosas específicas para essa população. Segundo Kosten e Kosten (2004), a medicação ideal para o tratamento da comorbidade transtorno bipolar do humor e uso indevido de substâncias psicoativas deveria possuir as seguintes características: 1) remitir completamente as polarizações de humor (mania e depressão); 2) aliviar os sintomas de abstinência e fissura; 3) prevenir recaídas; 4) baixo potencial de abuso/dependência; 5) via de administração e posologia de fácil manejo; 6) alta tolerabilidade pelo paciente. Os fármacos que melhor se aproximam desses critérios serão apresentados a seguir.
Estabilizadores do humor
Em pacientes com transtorno bipolar do humor e dependência de substâncias psicoativas, a utilização de qualquer tipo de estabilizador do humor contribui para a redução e melhora do padrão de consumo (Brown et al., 2001). O lítio, mesmo considerado a melhor opção terapêutica para o transtorno bipolar em sua forma pura (Macritchie et al., 2001), é significativamente menos eficaz entre bipolares com dependência de álcool e drogas (Kleindienst e Greil, 2003).
Estudos preliminares, em sua maioria abertos e não-controlados, têm sugerido o valproato e o divalproato de sódio como alternativas eficazes ao lítio, pois além de sua ação estabilizadora do humor, ambos têm-se mostrado capazes de diminuir a impulsividade, os comportamentos explosivos e a fissura em usuários de álcool e cocaína (Kosten e Kosten, 2004). Em um recente ensaio clínico, Salloum et al. (2005) acompanharam 59 pacientes bipolares tipo I e dependentes de álcool, randomizados em dois grupos. O grupo de pacientes tratado com lítio e divalproato reduziu significativamente seu padrão de consumo de álcool, se comparado ao grupo-placedo. O impacto sobre os sintomas afetivos foi semelhante para ambos os grupos. Parece haver uma relação entre a dose e a eficácia do divalproato sobre o uso indevido de drogas: Halikas et al. (2001), em um estudo aberto com usuários de cocaína tomando divalproato, encontraram menos testes de urina positivos para a substância entre aqueles com níveis séricos do medicamento acima de 50 mg/ml.
Outra alternativa com potencial terapêutico é o topiramato: este estabilizador de ação gabaérgica tem-se mostrado eficaz na redução do craving e recaídas entre usuários de álcool (Kenna et al., 2004) e cocaína (Kampman et al., 2004; Rounsaville, 2004; Sofuoglu e Kosten, 2005). Por fim, a lamotrigina (Brown et al., 2003) e a gabapentina (Sokolski et al., 1999) mostraram-se eficazes na melhora dos sintomas depressivos e maniformes, do craving e da recaída em estudos abertos e não-controlados com usuários de cocaína. Não foram encontrados na literatura médica estudos acerca da eficácia do topiramato, da gabapentina e da lamotrigina em pacientes bipolares e usuários de substâncias psicoativas, tampouco estudos controlados e com maior índice amostral.
Antipsicóticos
Os antipsicóticos atípicos, especialmente entre pacientes bipolares tipo II e usuários de álcool e drogas, têm-se mostrado eficazes como coadjuvantes dos estabilizadores do humor, tanto na remissão das crises de mania quanto no manejo da ansiedade (Albanese e Pies, 2004). Algumas questões acerca dessa classe medicamentosa ainda precisam de mais esclarecimentos, a fim de proporcionar mais segurança e precisão às estratégias farmacoterápicas dos especialistas. Por exemplo, alguns estudos aventam que a prescrição de neurolépticos poderia funcionar como um "gatilho" para o consumo de cocaína entre pacientes em mania que a utilizam para potencializar esse estado. Tal hipótese é corroborada por experimentos que demonstram aumento do consumo de estimulantes em animais tratados com neurolépticos típicos. Apesar de esse fenômeno ser menos recorrente entre os neurolépticos atípicos, há necessidade de mais estudos para elucidar melhor a questão (Brown et al., 2001).
Antidepressivos
O potencial terapêutico dos antidepressivos no tratamento da comorbidade depressão maior e uso indevido de álcool e drogas tem-se mostrado bastante desanimador. Nunes e Levin (2004) realizaram uma metanálise de artigos da literatura acerca do tema. Apenas artigos longitudinais, duplo-cegos e controlados foram incluídos. Os autores concluíram que os antidepressivos trazem apenas "benefícios modestos" para esses pacientes. Desse modo, nunca podem ser a única, tampouco a principal, abordagem instituída, devendo sempre estar associada a estratégias (farmacológicas e/ou psicossociais) direcionadas ao uso indevido de substâncias. Pettinati (2004) chegou a resultados semelhantes ao revisar a literatura acerca do uso de antidepressivos em dependentes de álcool com depressão maior. Apesar de contribuir para a remissão dos sintomas depressivos nesses indivíduos, tal melhora não teve impacto positivo sobre seu padrão de consumo de bebidas alcoólicas.
As evidências acerca do papel dos antidepressivos no tratamento da comorbidade em questão são escassas e carentes de mais embasamento científico. No entanto, parecem seguir a mesma tendência observada com a comorbidade depressão maior: são ineficazes quando desacompanhados de outros tratamentos (Salloum e Thase, 2000). Estudos abertos com inibidores seletivos da recaptação de serotonina são os mais recorrentes. Entre estes, a fluoxetina encontra melhor aceitação, em virtude da sua segurança, ação farmacológica sobre a impulsividade e baixa interação medicamentosa com substâncias psicoativas (Kosten e Kosten, 2004). Um estudo piloto com 13 usuários de cocaína deprimidos utilizando venlafaxina demonstrou que esta foi capaz de remitir os sintomas depressivos e reduzir o consumo de cocaína na maioria dos participantes (McDowell et al., 2000). Um estudo maior e com grupo controle está sendo realizado no momento (Kosten e Kosten, 2004).
Benzodiazepínicos
Os benzodiazepínicos são prescritos com bastante freqüência (e eficácia comprovada) para os pacientes com transtornos do humor (Licht, 1998). O mesmo não pode ser comprovado quando o transtorno bipolar vem associado ao uso indevido de substâncias psicoativas: nesses casos, além de não ser eficaz no manejo dos sintomas de depressão, mania e ansiedade, aumentam consideravelmente o risco de dependência ao medicamento (Brunette et al., 2003). Desse modo, essa classe de substâncias deve ser utilizada com bastante reserva (ou mesmo evitada) para essa população (Roache et al., 1995; Johnson et al., 1998).
Abordagens voltadas para a abstinência de substâncias psicoativas
Qualquer abordagem famacoterápica para o tratamento da depressão ou mania perde eficácia diante do uso de drogas (Nunes e Levin, 2004). Desse modo, não se pode pensar no tratamento do transtorno bipolar do humor em usuários de substâncias psicoativas sem estruturar abordagens e atuar diretamente sobre o consumo de álcool e outras substâncias psicoativas. A abstinência continua a ser o melhor parâmetro para a execução de uma boa avaliação clínica e planejamento terapêutico do transtorno bipolar do humor (Brown et al., 2001; Nunes e Levin, 2004).
As abordagens motivacionais e cognitivo-comportamentais têm-se mostrado as mais promissoras (Department of Health, 2002; Carroll, 2004). Diversos programas específicos de tratamento têm aumentado a adesão, reduzido recaídas, remitido sintomas afetivos e melhorado a reinserção social entre os indivíduos bipolares com problemas relacionados ao consumo de álcool e drogas (Carroll, 2004).
Programas de tratamento estruturados
O tratamento das comorbidades deve ser planejado e estruturado longitudinalmente, com a participação do paciente e seus familiares. O Department of Health (2002) propõe um modelo de atenção multidisclipinar dividido em quatro etapas: engajamento, motivação para a mudança, tratamento ativo e prevenção da recaída com treinamento de habilidades sociais. Inicialmente, deve-se buscar o engajamento de todos para o tratamento, por meio de abordagens não-confrontativas e empáticas. Nesse período, a observação e o manejo de necessidades prementes, tais como complicações clínicas, resolução de conflitos interpessoais e melhora da qualidade de vida, podem ser mais importantes do que a abstinência imediata.
A partir do estabelecimento de um bom vínculo terapêutico, a motivação para a mudança deve ser trabalhada, visando a um estilo de vida livre de substâncias e mais compatível com a eutimia. Cabe nesse momento desenvolver atividades psicoeducativas com o paciente sobre o consumo de substâncias e suas repercussões na sua saúde física e mental, apresentar dados objetivos acerca da evolução do seu estado (exames do perfil hepático, testes neuropsicológicos etc.), promover um balanço dos prós e contras da abstinência e da permanência do uso, avaliar as barreiras e ameaças ao tratamento, levantar os problemas passados relacionados ao consumo de drogas e ao transtorno bipolar do humor e escolher a estratégia farmacoterápica mais adequada.
Superadas as etapas anteriores, começa o tratamento ativo. Ele deve ser implementado de maneira integrada, a partir de abordagens motivacionais e cognitivas, aconselhamento individual e em grupo, e com preocupação voltada ao suporte social. O período de tratamento é de longa duração. A quarta etapa complementa a terceira e consiste na instituição de técnicas de prevenção da recaída e habilidades sociais, a partir da identificação de fatores de risco de recaída e das necessidades do paciente.
Há uma série de lacunas acerca do entendimento etiológico do transtorno bipolar do humor associado ao uso indevido de substâncias psicoativas. Por outro lado, há uma grande variedade de estratégias medicamentosas e psicossociais em desenvolvimento, que ainda necessitam de estudos mais elaborados e por tempo mais prolongado. Entre as pesquisas farmacoterápicas em curso, merecem atenção especial aquelas acerca dos novos estabilizadores do humor, cujo potencial terapêutico parece contribuir tanto para a remissão dos sintomas afetivos, quanto para a melhora dos padrões de abstinência. A criação de programas estruturados de atenção, com participação da família e supervisionado por equipe multidisciplinar parece ser o caminho mais promissor.
Marcelo RibeiroI; Ronaldo LaranjeiraI; Giuliana CividanesII
laranjeira[arroba]uniad.org.br
I. Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD) Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
II. Programa de Doenças Afetivas (PRODAF) Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
|
|