4. Pesquisa em comunicação clínica
Há de se reconhecer, a área de pesquisa da comunicação clínica tem, habitualmente, uma base conceitual precária; e, para piorar, também o são as possibilidades experimentais. Como o processo de desenvolver a base conceitual leva tempo e exige investimentos, via de regra, tenta-se explorar ao máximo as condições experimentais já existentes. É costume tentar extrair padrões dos experimentos realizados (padrões e não quantidades; o instrumental utilizado é o mesmo de tratamento de sinais), para construir modelos simbólicos. O resultado é um modelo qualitativo, uma metáfora que, embora construída sem fundamento conceitual, pode ser muito útil para o desenvolvimento de pesquisas posteriores capazes de ampliar a base de sustentação teórica.
Mas, convém lembrar, metáforas, analogias, costumam enriquecer o discurso científico e atenuar a incômoda volatilidade do universo que nos rodeia, quando empresta propriedades a um objeto utilizando os atributos de um segundo objeto com o qual o primeiro guarda alguma semelhança. Daí a sua utilidade que remonta ao próprio nascimento do pensamento moderno.
Entendem-se as metáforas como simples travessias, meios e não fins; produtos engenhosos da mente humana que podem ser inventados, testados, corrigidos, recriados e dispensados, o que, na maioria das vezes, não se aplicam aos fenômenos desta pesquisa. Serão utilizadas na compreensão das distorções enunciativas que ocorrem na relação discente de medicina/paciente.
Níveis de compreensão a serem atingidos
Muitas vezes a meta a atingir é uma melhor compreensão de determinado fenômeno o que, por sua vez, implica na construção de um modelo ou o aprimoramento de um já existente. Outras vezes, num patamar mais tecnológico, busca-se um maior entendimento não como um objetivo em si mesmo, mas como via de acesso a ações posteriores, cujo destino pode ser o de alterar, aprimorar ou controlar a realidade sob investigação. Nesse nível, próprio da Medicina e de outras ciências aplicadas, onde viceja o utilitarismo por dever de ofício, dispensa-se a amplitude do entendimento e de suas ilações em prol de um maior potencial de intervenção no mundo real. É onde os modelos são mais instrumentais, ferramentas na acepção da palavra, enquanto que, no outro patamar, eles estariam mais perto das finalidades.
É claro que tal divisão é meramente didática, e que se encontram todas essas coisas misturadas durante o exercício profissional. Mas, correndo o risco de poder ser perigosamente reducionista, pode-se dizer que o que se pretende segue uma rota construtivista que se apóia numa teoria já existente (da Comunicação Pragmática Humana); mas não descarta a possibilidade de se coletar novas informações capazes de erigir outro modelo ad hoc, construído especialmente para o desdobramento da presente pesquisa.
A delicada tessitura da entrevista clínica
A entrevista (entre vistas) clínica bi-pessoal, põe em relação dois indivíduos com conhecimentos, apriorísticos de algumas expectativas gerais do que é ser curador e do que é ser necessitado de cura, tais como:
Nessa delicada tessitura de trama comunicacional está em jogo a construção e a desconstrução dos sujeitos, uma experiência social nuclear e determinante na estruturação das subjetividades.
A entrevista clínica, bi-pessoal, costuma se realizar num arcabouço de comunicação estruturado por regras sobredeterminadas, que independem dos parceiros que se comunicam. Tais regras legitimam uma espécie de "contrato" que obriga os interlocutores a se comunicarem somente dentro desse arcabouço contratual delimitado. O quadro de limitações que representa o "contrato" se compõe de três tipos de dados que prescrevem:
O espaço das estratégias discursivas é a área operacional estabelecida pelo contrato de comunicação, onde os interlocutores devem interagir dentro das limitações estabelecidas por esse contrato, respeitando as margens de manobras permitidas por esse dispositivo contratual, que disponibiliza a viabilidade para escutar e para dizer. (figura 1)
Figura 1 – Relação bi-pessoal
O arcabouço do contrato contém e delimita o espaço de manobra, dentro do qual os interlocutores podem exercitar as estratégias discursivas para produzir o sentido das mensagens (semântica da comunicação) e definir as condutas das relações (pragmática da comunicação). Constituí-se, portanto, o espaço de manobra (da linguagem, da conduta, do tempo, do espaço, dos conteúdos, da finalidade, etc.) de que dispõe os sujeitos comunicantes para construir seus discursos. É desse conjunto constituído pelo arcabouço de referência e pelo espaço de manobra das estratégias, que depende toda situação de comunicação.
Dentro do espaço de manobra, o estudante precisa tornar-se hábil para escutar e para dizer, sempre centrado no doente. Mas a grande questão concentra-se mais sobre o como dizer. Isto é, sobre as escolhas e o exercício das estratégias de organização do discurso, com o objetivo de produzir efeitos semânticos e pragmáticos no destinatário da comunicação, efeitos que devem ser liberadores, construtores e desinibidores.
Interação clínica bem-sucedida?
O autor está ciente de que é complicado se chegar a um acordo a respeito do que é uma "interação clinica bem-sucedida". Por isso, irá discorrer sobre um modelo hipotético e tentar identificar parâmetros de modo a conciliá-los com os resultados obtidos experimentalmente, norteados pelos axiomas da Teoria da Comunicação Pragmática Humana.
Durante o processo interativo, os interlocutores estão parcialmente inconscientes das regras que devem ser seguidas numa comunicação bem-sucedida, ignorando, também, até certo ponto, as desqualificações que violam a interação discursiva, gerando a comunicação mal- sucedida. De outra parte, se a opção é ter uma percepção mais nítida do processo, em si, da estrutura formal e final da teia interacional, precisa-se analisar a cadeia de enunciações com certa independência do "conteúdo".
Para os propósitos deste trabalho, supõe-se que uma relação clínica bi-pessoal, bem sucedida é, antes de tudo, uma interação centrada no paciente, na qual o entrevistador precisa adotar uma postura interpessoal facilitadora capaz de liberar, estruturar e individualizar o discurso que está sendo construído, para garantir que a comunicação do paciente seja menos uma resposta à comunicação do entrevistador e mais à explicitação de seu próprio mundo intrapessoal.
Dessa forma, pressupõe-se que a interação clínica bem-sucedida é aquela que se realiza em benefício do entrevistado, coerente, portanto, com os desejos, os interesses e as necessidades desse entrevistado, porque ancorada no seu mundo intrapessoal.
Numa interação clínica bem-sucedida teríamos, esquematicamente, uma seqüência comunicativa conjuntiva, qualificante, confirmadora, compatível com os reais objetivos de uma entrevista clínica, que poderia traduzir-se na seqüência: A B, B C, e assim por diante, numa sucessão regular, construtiva, sincrônica e coerente.
A suposição contrária é a de que a relação clínica bi-pessoal mal-sucedida, viola a regra básica de centrar-se no paciente, optando por centrar-se mais no mundo intrapessoal do entrevistador. Dessa forma, com as estratégias mais direcionadas para os interesses, desejos e necessidades do entrevistador, a produção de sentido e a definição das condutas pragmáticas tornam-se estranhas, inibidoras e desqualificantes para o entrevistado. Supõe-se que tais dificuldades de comunicação podem produzir violentos "rasgões" no tecido comunicacional, inviabilizando uma comunicação interpessoal bem-sucedida.
Numa hipotética seqüência interativa, a estratégia A pode conduzir a uma resposta Y, que por sua vez irá levar a uma resposta O, isto é, a uma sequência irregular de respostas dissincrônicas, disjuntivas, desqualificantes, desconfirmadoras, que conduzem a uma relação clínica mal-sucedida.
Objetivos
A pergunta formulada na introdução do trabalho -, Quais as dificuldades de comunicação do discente de medicina na sua interação clínica com o paciente? -, direcionou o pensamento do autor para os seguintes objetivos:
Objetivo geral
Analisar as dificuldades de comunicação da relação discente/paciente, dos alunos da disciplina de Psicologia Médica, da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
Objetivo específico
Caracterizar as estratégias discursivas da relação discente de medicina/paciente, a partir da análise da articulação dos elementos semânticos e pragmáticos que as formam, dentro da estrutura geral de produção de significados.
O autor acredita que este trabalho pode ser um desafio estimulante para os professores de Medicina, porque motiva a repensar aspectos do processo comunicacional discente/paciente, bem como acena para a perspectiva de avançar na discussão de uma produção de conhecimentos para o aperfeiçoamento do graduando, com repercussões no exercício da interação clinica do futuro profissional.
Ditos os pressupostos teóricos da construção da temática, a próxima tarefa é descrever o "como-fazer" desdobrado em:
Local da pesquisa
A pesquisa centrar-se-á nas enfermarias de clínica médica, clínica cirúrgica e clínica obstétrica do Hospital Manoel Vitorino, público, estadual, que presta assistência gratuita aos segurados do SUS e a população em geral, e é um dos hospitais de referência do Curso de Psicologia Médica da EBMSP.
População a ser pesquisada
Alunos do quinto e sexto semestres do Curso de Psicologia Médica da EMBSP, interagindo com pacientes internados no Hospital Manoel Vitorino.
A escolha dos discentes será aleatória, exceto no que se refere ao sexo, pois serão selecionados seis alunos e seis alunas. Cada aluno fará duas (02) entrevistas psicológicas com duração média de 60 minutos (com um mesmo ou com pacientes diferentes) num total de 24, no decorrer de um semestre letivo. A participação dos pacientes obedecerá à demanda espontânea.
Os limites do universo de investigação deste trabalho, no que se refere ao local e a população, estão sintetizados no quadro 2:
Quadro 2 - População e local da pesquisa
POPULAÇÃO A SER PESQUISADA |
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Estudantes de medicina do 5o. e 6o. semestres do Curso de Psicologia Médica interagindo com pacientes internados nas enfermarias do Hospital Manoel Vitorino. |
Quantidade: 12 estudantes num semestre. |
Entrevistas: duas para cada estudante, com o mesmo ou com pacientes diferentes. Duração média de 60 minutos. |
Totais: |
12 estudantes |
24 entrevistas |
Local da pesquisa: HOSPITAL MANOEL VITORINO |
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Nota: a demanda dos pacientes será a espontânea. |
Justificam-se as escolhas porque:
Cronograma
O cronograma dividir-se-á em dois semestres:
1) Um semestre para a gravação das entrevistas.
2) Um semestre para a transcrição e análise dos dados.
Desenho metodológico
Para compreender a dinâmica interacional das estratégicas discursivas entre discente de medicina/paciente, que emerge durante a entrevista psicológica, o autor irá centrar a sua atenção na análise da conversação que ocorre entre eles no momento da entrevista. Isto porque as tipificações, os procedimentos interativos e raciocínios práticos são, em grande medida, implícitos e não tematizados. Por conseguinte, para identificá-los deve-se apreendê-los nas situações em que se concretizam, ou seja, nos diálogos produzidos no processo da entrevista.
Através da análise da conversação, pretende-se observar o que se fala, o como se fala, o que se escuta e o como se escuta, processos interacionais continuamente criados e recriados durante a comunicação dual.
Instrumentos para a coleta de dados
As entrevistas serão gravadas em fitas magnéticas, com gravadores portáteis. Em obediência aos princípios éticos, solicitar-se-á a autorização do paciente para fazer as gravações.
Na etapa seguinte, os discursos serão transcritos para o papel e, a seguir, analisados.
Na dependência dos desdobramentos da pesquisa, as interações discente/paciente poderão também ser filmadas, objetivando tornar disponíveis os dados da comunicação averbal.
Delimitando o objeto da pesquisa
Em última instância, o objeto da pesquisa são as dificuldades de comunicação discente de medicina/paciente (erros de estratégias comunicacionais produzidas na área de manobras discursivas) capazes de gerar interações clínicas mal-sucedidas, conforme mostra a figura 2:
Figura 2 - Objeto da pesquisa
O autor pressupõe que a coleta e a análise dos erros de estratégias comunicacionais, poderão fornecer contribuições valiosas para a pesquisa básica nos processos clínicos interacionais.
Análise dos dados
A metodologia da presente pesquisa fundamenta-se nos pressupostos etnometodológicos da Teoria Pragmática da Comunicação Humana. Dessa perspectiva pressupõe-se que em toda comunicação, mesmo numa conversa cotidiana menos estruturada, os participantes obedecem a regras que ordenam o discurso. Por isso, o interesse específico não será exatamente sobre a linguagem ou a definição dos significados fixos de palavras e enunciados, mas, sim, sobre a interação verbal, ou seja, as formas concretas em que se manifestam as estratégias discursivas, construídas interacionalmente pelos participantes, num encontro face a face.
Para analisar tais estratégias, utilizar-se-á a técnica de ANÁLISE DO DISCURSO (AD), surgida para superar as limitações da entrevista convencional no levantamento de dados dos discursos. Ela se propõe visitar territórios de discursos já amplamente mapeados e tirar deles uma topografia que poucos conseguem perceber. (MAINGUENEAU, 1999).
Identificam-se duas "escolas" de AD: uma francesa, outra anglo-saxã (quadro 1)
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AD francesa |
AD anglo-saxã |
Tipo de discurso |
Escrito. |
Oral. |
Objetivos |
Propósitos textuais. |
Propósitos comunicacionais. |
Métodos |
Estruturalista, lingüístico e histórico. |
Interacionista – psicologia, sociologia. |
Origem |
Lingüística. |
Clínica/Antropológica |
Quadro 1 - Diferenças entre a AD francesa e a AD anglo-saxã
que, para os objetivos pertinentes a este estudo, se interpenetram e se complementam, no que se refere aos propósitos genéricos de desnudar as estratégias discursivas para descobrir sentidos ocultos e pistas comunicacionais, que ficariam inacessíveis sem ela, sempre atentando para a advertência de que a AD
"Não quer se instituir como especialista em interpretação... Pretende construir procedimentos que exponham o olhar-leitor a níveis opacos, a ação estratégica de um sujeito".(MAINGUENEAU, 1999)
Da perspectiva francesa, a AD é sucessora da antiga Filologia, a mais difícil arte de ler, que se propunha a conhecer, no discurso escrito, as significações ou intenções do enunciador e captar a cultura e o meio onde o discurso se fez, para compreender as condições que permitiram a sua existência. Sua aplicação técnica situa-se, dominantemente, nas áreas da literatura e da história.
A AD anglo-saxã, ligada à epistemologia pragmática, está centrada no discurso oral, tem propósitos comunicacionais, metodologias interacionista, psicológica e sociológica e origem clínica/antropológica. Por isso, será a técnica preferencial escolhida pelo autor, para fazer as análises semânticas e pragmáticas das estratégias comunicacionais que supõe estar relacionadas com as dificuldades de comunicação discente/paciente.
Sistematizando os dados da pesquisa
Com a atenção centrada nas estratégias comunicacionais que dificultam a interação clínica - vinculação papel-papel, declarações contraditórias, incoerências verbal/averbal, mudanças bruscas de assunto, tangencializações, frases incompletas, interpretações errôneas, desconfirmação do outro, estilo obscuro, maneirismos da fala, interpretações literais de metáforas ou interpretações metafóricas de comentários literais (WATZLASWICK,1973) – analisar-se-ão os dados obtidos, obedecendo à seguinte sistemática:
DQ. Estratégias que desqualificam – os discursos e os interlocutores.
DC. Estratégias que desconfirmam os interlocutores.
IA. Estratégias que traduzem a impermeabilidade afetiva.
CD. Estratégias que situam os interlocutores em contextos diferentes.
RD. Estratégias que produzem um relacionamento disjuntivo.
VPP. Estratégias que impõem o vínculo papel-papel.
A obtenção desses elementos discursivos, será complementada por trechos selecionados da entrevista e por notas do discente e do autor, pertinentes aos fatos ocorridos durante a mesma.
Será feita a análise dos erros das estratégicas comunicativas articuladas aos elementos semânticos e pragmáticos que formam o discurso, em relação à produção dos sentidos desses discursos. Assinale-se que as identidades de alunos e paciente serão preservadas. (*)
Este trabalho propôs-se identificar e analisar as dificuldades de comunicação discente de medicina/paciente, numa fase precoce de aprendizado da anamnese clínica. Pretendeu validar a suposição de que através da identificação e da análise das dificuldades de comunicação (erros de estratégias comunicacionais) pode-se obter contribuições valiosas para a pesquisa básica dos processos clínicos interacionais. Constituiu-se, para o autor, num desafio que lhe motivou a repensar aspectos da comunicação discente de medicina/paciente, acenando para a perspectiva de ensinar ao graduando, de forma mais sistemática, teoria, técnica, táticas e estratégias de comunicação, com a crença de que tal aprendizado poderá implementar, na capacitação do futuro profissional, o exercício de uma relação médico/paciente mais humana e mais bem sucedida.
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(*) A sistemática descrita na página 44, complementa, com acréscimos, a sistemática construída por Carmita Helena Najjar Abdo, para a sua tese de livre-docência em 1996 (ABDO, 1996).
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VYGOTSKY, L.S. A Formação social da mente. Rio de Janeiro: Martins Fontes,1984.
Resumo
Este trabalho, compromissado com o amplo projeto que pretende humanizar a relação médico/paciente, propõe-se identificar e analisar as dificuldades de comunicação discente de medicina/paciente, dos alunos de Psicologia Médica do quinto e do sexto semestres da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, fase introdutória de aprendizado da anamnese clínica. Busca produzir dados que poderão aperfeiçoar a competência do discente no sentido de saber ouvir e saber dizer, preparando o futuro médico para construir uma relação médico/paciente bem-sucedida -, tanto para o ajudador, quanto para o ajudado. Fundamenta-se na Teoria da Comunicação Pragmática Humana e utilizará a técnica de Análise do Discurso para a qualificação dos dados da pesquisa.
Trabajo enviado por:
José Pinto de Queiroz Filho