1. O Problema da Responsabilidade
O problema da responsabilidade pelos atos governamentais é clássico na literatura política e jurídica, e torna-se ainda mais agudo e premente em países que enfrentam problemas sérios de desenvolvimento econômico-social, manutenção de taxas adequadas de emprego, política externa de princípios e objetivos definidos, etc. Como garantir que os governantes, em seus diversos níveis, governem no limite de sua capacidade, com o máximo de responsabilidade por seus atos, e garantindo ao sistema social o máximo de eficiência global?
A solução clássica para este problema consiste, essencialmente, em distinguir "administração" de "governo": administradores são aqueles que executam as políticas decididas pelos governantes, enquanto que estes tomam suas decisões em função do mandato político que recebem. A maneira de garantir a correção e probidade das ações dos administradores ó dada pela concepção weberiana de burocracia: separação entre pessoa e função, explicitação dos deveres, obrigações e limites da autoridade dos funcionários, registro escrito de todos os atos e decisões correção e probidade dos governar por sua vez, seria controlada e garantida pelo funcionamento do sistema lítico-partidário, pela imprensa, e, especificamente, pelo controle poli do parlamento sobre os atos do setor executivo.
Existem duas dificuldades básicas com esta solução clássica e aparentemente tão simples, uma no nível governantes, outra no nível dos administradores. Carl J. Friedrich, em 1940. já chamava a atenção para estas dificuldades, e é difícil expressá-as melhor do que ele. Friedrich colocava em dúvida a eficácia dos mecanismos líticos tradicionais para garantir a responsabilidade dos governantes, mesmo em democracias aparentemente tão exemplares quanto a Inglaterra e os Estados Unidos:
At best, responsibility in a democracy will remain fragmentary because of the indistinct voice of the principal whose agents the officials are supposed to be - the vast heterogeneous masses composing the people. Even the greatest faith in the common man (and I am prepared to carry this very far) cannot any longer justify a simple acceptance of the mythology of the "will of the people(1).
Em outro contexto, ele se refere à "tremenda dificuldade que o público encontra em entender as implicações mais amplas de questões de política governamental tais como as relações exteriores, política agrícola e política trabalhista Em relação ao desemprego, tudo que o público em geral tem certeza é que ele deveria desaparecer..."(2)
A primeira dificuldade é, então, a de estabelecer um controle político efetivo sobre a ação governamental. A segunda dificuldade se refere ao fato de que a separação entre governo e administração não é tão taxativa quanto a visão clássica parece supor. Ao contrário, assinala Friedrich, ela esquece:
(1) that many policies are not ordained with a stroke of the legislative of dictatorial pen but evolve slowly over longs periods of time, and (2) administrative officials participate continuously and significantly in this process of evolving policy.
Ou, mais conclusivamente:
Public policy, to put it flatly, is a continuous process, the formation of which is inseparable from its execution. Public policy is being formed as it is executed, and it is likewise being executed as it is being formed. Politics and administration play a continuous role in both formation and execution, though there is probably more politics in the formation of policy, more administration in the execution of it. In so far as particular individuals or groups are gaining or losing power of control in a given area, there is politics; in so far as officials act or propose action in the name of public interests, there is administration.(3)
Este não é, pois, um problema exclusivo dos países em desenvolvimento, ou daqueles cujas instituições políticas formadas nos moldes clássicos presidencialistas ou parlamentares sofreram choques e convulsões. Mas ele se torna particularmente evidente no Brasil dos anos recentes, em que coexistem uma pluralidade de atos (leis, decretos-leis, portarias, resoluções, instruções, regulamentos) emitidos por uma pluralidade de órgãos (conselhos, superintendências, departamentos. secretarias, ministérios, legislativos, bancos, poder executivo) todos implicando maior ou menor grau de redistribuição de poder e controle, ou seja, de política no sentido em que a define Carl Friedrich.(4)
2. Os Paradoxos da Responsabilidade
Um dos problemas fundamentais relativos à responsabilidade é, pois, o da impossibilidade de se estabelecer uma distinção realmente nítida e operacional entre "governo" e "administração". Mais ainda, existe a dificuldade de um controle efetivo mesmo dos atos explicitamente de governo, por parte dos organismos políticos da sociedade. Esta dificuldade é aparentemente menor nos regimes de tipo parlamentarista, em que o governo deve responder continuamente ao parlamento pelos seus atos, do que nos regimes presidencialistas, em que o "acerto de contas" é periódico e sujeito a um sistema eleitoral dotada de leis de funcionamento próprias, passível de vários tipos de manipulação, e cujos temas não têm sempre uma relação muito direta com os problemas de implementação efetiva de política no nível do governo.
A conseqüência, pois, que preocupa a Carl Friedrich e ao pensamento político liberal de uma maneira geral, é a do abuso do poder, do uso indiscriminado e irresponsável por parte de homens de governo do poder de que dispõem, em causa própria ou de forma distinta do mandato político que receberam.
Existe, no entanto, uma preocupação oposta, não tanto com o abuso de poder, mas com sua paralisia e ineficácia, que é muitas vezes o resultado da contradição entre os sistemas de controle e a realidade do processo governamental e administrativo. O administrador de nível médio, cujo cargo não é definido de forma explícita e inequívoca como político, está muitas vezes submetido a um sistema de pressões cruzadas. Por um lado, ele tem um conjunto de normas bem precisas e detalhadas que definem sua área de atuação, e que podem eventualmente se voltar contra ele caso ele as transgrida. Por outro lado, ele terá uma noção clara dos o de suas funções, e uma percepção bem clara de que as normas que definem suas funções não permitem que ele realize seus objetivos. Ele tem que optar, assim, entre ater-se às normas e abandonar os objetivos, ou ater-se aos objetivos e abandonar as normas . . .
Seria um erro, muitas vezes cometido, pensar que este dilema do administrador é algo fortuito, devido a "normas inadequadas", que deveriam ser conseqüentemente reajustadas e redefinidas para se ajustar à sua realidade. De fato, o que acontece é que de que a noção de que é possível prever e estabelecer por escrito as funções e deveres de um administrador de nível intermediário é uma reminiscência equivocada do conceito weberiano de burocracia, que se choca com a noção de um continuo entre administração e governo, enfatizada acima por Friedrich.
A solução que o administrador dá a seu dilema dependerá, essencialmente, de uma avaliação dos tipos de sanção a que ele estará sujeito pelos seus atos. Se ele estiver sujeito a um controle burocrático-formal, vindo de instâncias superiores ou do judiciário, ele tenderá muitas vezes a se ater à letra de suas obrigações, assumindo como válida a definição estritamente legalista e formal de suas atribuições. Com isto, ele assumiria uma responsabilidade estritamente formal, deixando para seus superiores a responsabilidade pelos resultados efetivos de suas ações. A responsabilidade substantiva referida aos fins, ficaria então com aqueles que devem responder politicamente pela conduta do governo, quer a um chefe de estado, quer a um partido ou movimento político, ou a alguma combinação destes.
Esta responsabilidade formal se transforma, assim, em irresponsabilidade substantiva. Se o sistema de divisão do trabalho em "passos" isolados e estanques é falho, se o produto final da atividade governamental não satisfaz nem aos próprios governantes, de qualquer forma o administrador obedeceu às normas, seguiu estritamente os regulamentos, fez o que lhe mandaram, e por isto é, estritamente, irresponsável pelas conseqüências de seus atos. Instala-se, assim, um fosso profundo entre a noção burocrático-legal de responsabilidade e a noção valorativa de eficiência, referida esta não à forma, mas ao conteúdo e conseqüência das ações.
Esta paralisia da ação se acentua ainda mais quando o funcionamento da máquina administrativa está sujeito a escrutínio político constante, de tal forma que os atos administrativos tenham que ser traduzidos nos termos das opções que caracterizam o debate político-ideológico do momento. Como nem sempre esta tradução é possível, o problema tem que ser resolvido de alguma maneira, uma das quais é o retraimento do funcionário aos rituais burocráticos ou a implantação de normas de segredo em relação às atividades da administração. Uma outra solução é a adoção literal das normas ideológicas do discurso político dominante como regras de conduta, ignorando o problema da complexidade do processo administrativo em benefício de um outro tipo de ritualismo, não em função de normas burocráticas, mas de postulados e dogmas ideológicos. A conseqüência, em termos de irresponsabilidade substantiva, é parecida.
Existe ainda um terceiro tipo de problema, que combina de forma sem dúvida perversa os dois anteriores, o do abuso de poder e o do formalismo burocrático: se trata, precisamente, do abuso do poder pelo exercício do formalismo burocrático. Os países anglo-saxões parecem não ter muita familiaridade com este tipo de problema, que, no entanto, é sobejamente conhecido nos países latinos. A proliferação de normas e regulamentos faz com que seja sempre provável encontrar as regras que se adaptem a qualquer tipo de decisão, desde que existam pessoas suficientemente hábeis no manejo da legislação e não exista um sistema realmente efetivo de responsabilização política pelos atos governamentais.
Eis pois, listados brevemente, uma série de problemas ligados aos paradoxos da responsabilidade: a irresponsabilidade imobilista e ritualística do formalismo irreal, a irresponsabilidade legal do ativista, a irresponsabilidade substantiva do administrador sobrepolitizado ou vigiado, a irresponsabilidade e abuso de poder que se esconde por detrás do emaranhado de sistemas supercomplexos e muitas vezes contraditórios de leis e regulamentos. Em linguagem corrente, são problemas de ineficiência, corrupção, carreirismo, abuso de poder. Estes são problemas aos quais nenhum sistema político administrativo está imune, mas que nem por isto não merecem ser analisados e controlados. Como fazê-lo?
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