1. O Direito de Punir e a Pretensão Punitiva
Com a evolução da humanidade, o homem sentiu a necessidade de abolir a vingança privada e a autodefesa, passando para o Estado a função de dirimir os conflitos na sociedade. Antes disso, o ofendido buscava a reparação (lato sensu) do dano e a punição agindo diretamente sobre o ofensor.
Com o surgimento da jurisdição, passou o Estado, então, a deter com exclusividade o direito de punir alguém pela prática de um determinado fato delituoso. O jus puniendi despontou como uma decorrência indeclinável da própria soberania estatal, não dependendo, sequer, da prática do delito, pois é um direito genérico e abstratamente considerado.
Com a prática efetiva do ilícito penal, porém, aparece a pretensão punitiva estatal que exige, portanto e ao contrário do direito de punir, a concreção da conduta delituosa.
O jus puniendi, como se disse, traduz, em verdade, uma das facetas da soberania do Estado, que monopolizou a administração da Justiça criminal, responsabilizando-se pela aplicação das sanções penais e, mais, desautorizando a vingança privada: é o seu poder de império. O Estado, como interessado primeiro na paz social, trouxe para si o direito de punir todo aquele que incidir em um tipo penal, direito que se concretiza com a prática delituosa (pretensão punitiva).
Assim, iniciada a execução de uma infração penal, o jus puniendi, que sempre esteve à disposição do Estado, transforma -se em jus puniendi in concreto, é dizer, na pretensão punitiva, dando ensejo a que se exercite o direito de ação, ora através do Ministério Público (nas ações penais públicas), ora, excepcionalmente, através do próprio ofendido, agora como substituto processual (nas ações penais de iniciativa privada).
O ofendido pelo crime, sujeito passivo da relação jurídico- penal, normalmente não integra a relação jurídico-processual penal, salvo nas ações penais de iniciativa privada quando poderá, em nome próprio, interpor a ação penal, oferecendo uma queixa- crime1.
Já nas ações penais públicas (a grande maioria), porém, a vítima desempenha um papel absolutamente secundário. Mesmo que se habilite como assistente de acusação, ainda assim, tem suas atividades bastante reduzidas, não podendo sequer interpor todos os recursos previstos na legislação processual (veja-se o art. 271 do Código de Processo Penal).2
Na verdade, é fato inconteste que a vítima não ocupa na ciência criminal um papel de relevo, ao contrário do que ocorreu no início da civilização quando "teve relevante papel na punição dos autores de crimes".3
García-Pablos, por exemplo, informa que "o abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em todos os âmbitos (...). O Direito Penal contemporâneo – advertem diversos autores – acha-se unilateralmente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, ao âmbito da previsão social e do Direito Civil material e processual".4
A própria legislação processual penal relega a vítima a um plano desimportante, inclusive pela "falta de mención de disposiciones expressas en los respectivos ordenamientos que provean medidas para salvaguardar aquellos valores ultrajados".5
O que ocorre é que a lide penal6 se consubstancia, basicamente, no conflito entre a pretensão punitiva do Estado e a pretensão à liberdade do acusado (status libertatis). Neste contexto, a vítima não é considerada como um sujeito de direitos, mas como mero objeto ou pretexto da investigação.7
É bem verdade que entre nós, com o surgimento da Lei nº. 9.099/95, privilegiou-se o sujeito passivo do crime, dando- se extrema importância à reparação civil dos danos (arts. 72 e 89, § 1º., I), chegando a se eleger como um dos objetivos da lei a reparação dos danos sofridos pela vítima (art. 62, in fine).
De toda forma, ainda há um grande caminho a percorrer quando se trata de se estabelecer exatamente o papel da vítima no processo penal. Como dizem os italianos Michele Correra e Danilo Riponti, "la storia della giustizia penale quasi coincide con il progressivo declino dell’influenza della vittima sulla reazione sociale allá criminalità".8
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