Identificando Remediações e Rupturas
no Uso de Bancos de Dados no Jornalismo Digital*

Suzana Barbosa**

 

 

Resumo:

A consolidação da internet como uma nova tecnologia e prática social, sendo um ambiente utilizado pelos diversos sub-sistemas sociais (PALACIOS, 2003) - entre eles o midiático – favoreceu a emergência de um novo status para o uso do banco de dados no jornalismo digital. O emprego das também chamadas bases de dados proporciona maneiras diferenciadas para o tratamento da informação jornalística, seja do ponto de vista da coleta/apuração, da organização/construção das narrativas, da publicação dos conteúdos, como também do armazenamento e da recuperação das informações. Nesta comunicação, nosso objetivo é justamente identificar alguns aspectos diferenciadores que a utilização de bancos de dados, principalmente os inteligentes e dinâmicos, traz para esta modalidade de jornalismo. Para isso, consideramos que o uso potencial dos bancos de dados em consonância com os recursos possibilitados pela tecnologia das redes digitais opera remediações (BOLTER; GRUSHIN, 2002: 45) e algumas rupturas no jornalismo digital, que serão identificadas no trabalho. No artigo, adota-se o conceito de banco de dados como uma das principais formas culturais da contemporaneidade (MANOVICH, 2001), e como um formato para o jornalismo digital (MACHADO, 2004).

Palavras-chaves: Jornalismo digital – Bancos de dados – Remediações – Rupturas.

 

1. INTRODUÇÃO

A consolidação da internet como uma nova tecnologia e prática social, caracterizada como um ambiente e sistema de informação, comunicação e ação utilizada pelos diversos sub-sistemas sociais (PALACIOS, 2003; STOCKINGER, 2003), entre eles o midiático - o qual consolida também uma modalidade diferenciada de jornalismo a partir das redes - favoreceu a emergência de um novo status para o uso dos bancos de dados (BD) no jornalismo digital. Se a aparição dos bancos de dados como uma ferramenta para o trabalho jornalístico, na década de 70, representou uma inovação nos modos de obtenção de informação para acrescentar maior contexto e profundidade às notícias e reportagens - além de ter sido uma das primeiras tecnologias empregadas para a entrega eletrônica de conteúdos - conforme atestam autores como Smith (1980), Koch (1991) e Gunter (2003), três décadas depois o emprego das também chamadas bases de dados para a gestão de produtos digitais é colocado como potencialmente capaz de conferir o diferencial e a especificidade do jornalismo digital em relação às modalidades tradicionais, e percebido mesmo como um novo formato para o jornalismo digital neste seu terceiro estágio de desenvolvimento (HALL, 2001; FIDALGO, 2003; MACHADO, 2004).

É possível, ainda, cogitar, diante desses atributos que catapultam os bancos de dados para um novo status quanto aos usos e apropriações no e para o jornalismo digital, considerá-los com potencial para iluminar o caminho no sentido de gerar uma nova metáfora para esta forma de jornalismo (BARBOSA, 2004) para além da já tão conhecida metáfora do impresso ou broadsheet metaphor. Levando em conta que no cenário da sociedade contemporânea ou na cibercultura as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) já alcançaram um alto grau de difusão, ainda que os bolsões de excluídos sejam enormes em várias regiões do globo e a base infra-estrutural necessite melhorias, a fase de adaptação e familiaridade em relação aos dispositivos e às diferentes formas de se publicar e acessar conteúdos por meio da internet foi vencida, encontrando-se num estágio consolidado para boa parte dos usuários. E isso colabora para se experimentar novos formatos de produtos e de narrativas, novos enfoques para os conteúdos, bem como para a sua apresentação e disponibilização. Do lado dos provedores de conteúdos, talvez, possa se identificar ainda pouca compreensão quanto ao significado de se ter e manter uma operação digital e isso implica em certos níveis de resistência quanto aos investimentos e mudanças a serem implementadas.

Com relação à sua evolução, o jornalismo digital tem seu desenvolvimento marcado por três fases: webjornalismo de primeira, de segunda e de terceira geraçãoi. No webjornalismo de primeira geração, os produtos oferecidos são transposições parciais ou totais do conteúdo de jornais impressos. Nos produtos de segunda geração, mesmo ‘atrelados’ ao modelo do jornal impresso, começam a ocorrer experiências na tentativa de explorar as características específicas oferecidas pela rede. Com os produtos de terceira geração, o cenário começa a modificar-se devido ao surgimento de iniciativas que extrapolam a idéia de uma versão para a web de um jornal impresso já existente (MIELNICZUK, 2003).

Este artigo, portanto, pretende explorar alguns dos concernimentos sobre o uso dos bancos de dados no jornalismo digital de terceira geração, identificando remediações e rupturas possíveis a partir da adoção de sistemas de bases de dados que, acreditamos, proporciona maneiras diferenciadas para o tratamento da informação jornalística, seja do ponto de vista da coleta/apuração, da organização/construção das narrativas, da publicação dos conteúdos, como também quanto ao armazenamento e recuperação das informações.

 

2. SOBRE REMEDIAÇÃO

Pensamos o conceito de remediação (BOLTER & GRUSIN, 1999) como adequado para refletir sobre os bancos de dados, já que podem ter seu emprego melhorado, ampliado, em função dos desenvolvimentos tecnológicos, em relação ao que até então se fazia e se conhecia, mesmo partilhando de usos e procedimentos anteriores referentes à sua adoção. Para os autores norte-americanos, todas as inovações trazidas pelas novas mídias, cuja característica definidora é a matriz digital, não ocorrem de maneira divorciada em relação aos meios existentes. Ao contrário, as novas mídias remediam, isto é, melhoram seus predecessores, tanto o jornal, a revista, o rádio, o telefone, a arte, o vídeo, a fotografia, a comunicação face-a-face, os modos de publicar, assim como a experiência social e o espaço urbanoii.

Para Jay David Bolter e Richard Grusin, remediation é a característica da mídia digital, pois implica o reconhecimento do meio anterior, da sua linguagem e da sua representação social. Desta maneira, todos os meios têm o seu sistema de produção afetado pela chamada nova mídia. A internet, afirmam Bolter & Grusin, remedia todos os meios, melhorando-os em muitos aspectos e acrescentando recursos novos, enquanto a web, especificamente, tem uma natureza remediadora, operando de modo híbrido e inclusivo. A web, dizem os autores, remedia os jornais, as revistas e a publicidade gráfica.

Os bancos de dados, mesmo não sendo um meio de comunicação, um espaço visual, social ou urbano, são remediados pelo fato de que a internet vai garantir novas técnicas e linguagens para a sua construção e aplicação, de um lado, como sofrerão remediações em função dos usos e apropriações no jornalismo digital. Ademais, os próprios autores observam que os bancos de dados textuais precederam a introdução da web e dependeram dos serviços anteriores da internet ou mesmo da gravação digital para realizar a remediação do livro (BOLTER & GRUSIN, 1999:201). Remediação, portanto, mostra-se um conceito também adequado para se compreender o próprio conceito de bancos de dados como forma cultural simbólica nessa era do computador, como pensado por Lev Manovich (2001), pois nos faz perceber uma ampliação da sua acepção como filosofia para o tratamento dos dados como concebido nas Ciências da Computaçãoiii. Segundo argumenta Manovich, os BD se tornam uma forma cultural na atualidade, por estarem no centro do processo criativo para a produção da maioria dos objetos da nova mídia em quase todas as áreas, representando o mundo como uma coleção de itens.

Tal lógica está implícita na estruturação de muitos dos produtos da nova mídia como um CD-ROM de um museu virtual com sua coleção de imagens para serem acessadas de diferentes modos, assim como um web site, que apresenta uma lista seqüencial de elementos separados: blocos de texto, imagens, videoclipes e links para outros sites. Portanto, para o autor, o banco de dados se torna o centro do processo criativo do design da nova mídia gerando um tipo de narrativa que é construída pela ligação de elementos do BD em uma ordem particular. Como os bancos de dados atualmente armazenam desde textos, a imagens, gráficos e objetos multimídia (som e vídeo), Lev Manovich defende a compatibilidade entre banco de dados e uma forma de estruturação de informações e, ainda, como suporte para construção de novos modelos de narrativa multimídia e criação de novos gêneros. Este cenário integra o terceiro estágio da grande midiamorfose (FIDLER, 1997)iv, processo pensado para entender as transformações dos meios de comunicação. Seria, assim, um modo unificado de pensar a evolução dos meios de comunicação, identificando as novas formas que emergem não para substituir ou "matar" as antigas, pois essas serão reconfiguradas e/ou, acrescentamos, remediadas, continuando a evoluir e a adaptar-se a partir de futuras inovações.

 

3. REMEDIAÇÕES E RUPTURAS

O emprego e a utilização dos bancos de dados no jornalismo digital opera remediações nos sistemas de produção, de coleta da informação, no âmbito dos gêneros jornalísticos e da apresentação dos conteúdos. Cabe lembrar uma vez mais: sendo o jornalismo digital uma modalidade que emerge com a internet, ele próprio remediará e será remediado por modalidades anteriores e por tecnologias como a das bases de dados, assim como irá gerar inovações quanto aos modos de fazer jornalismo através das e nas redes digitais, configurando, então, um cenário de dupla via caracterizado por remediações e rupturas. Tais rupturas estariam na quebra de um certo padrão até então empregado, as quais são proporcionadas por um grau elevado da potencialização do uso de determinada característica dentre as distintivas do jornalismo digital - hipertextualidade, multimidialidade, interatividade, personalização, memória, atualização contínua/instantaneidade (BARDOEL & DEUZE, 2000; PALACIOS, 2002) - e acaba acarretando em uma mudança de funções ou criação de novas possibilidades. Por exemplo, conforme cita Palacios, a conjugação de memória com instantaneidade, hipertextualidade e interatividade, bem como a inexistência de limitações de armazenamento de informação, potencializam de tal forma a memória que é legítimo afirmar: "Temos nessa combinação de características e circunstâncias uma ruptura com relação aos suportes mediáticos anteriores" (PALACIOS, 2002).

As perspectivas de mudanças ou rupturas se dão em relação à construção das narrativas, concepção do produto e, claro, uso do arquivo, por exemplo. Além disso, nas próprias rotinas de produção das informações vão ocorrer transformações, bem como na provisão de conteúdos mais originais e variados, pois, ao lado dos recursos disponíveis para construção de narrativas, a incorporação efetiva dos usuários como colaboradores vai assegurar temáticas diferenciadas para serem exploradas. Isso refletirá, conseqüentemente, no modo como as informações são apresentadas, publicadas. A adoção de bancos de dados bem como dos chamados bancos de dados inteligentes e dinâmicosv pode favorecer a inovação, permitindo a exploração de novos gêneros, a oferta de conteúdo mais diverso, a disponibilização/apresentação das informações de maneira diferenciada, mais flexível e dinâmica, além da produção descentralizada - outra das características que o jornalismo digital de terceira geração deve contemplar.

Na argumentação de António Fidalgo (2003), os produtos jornalísticos digitais assentados em bases de dados distinguem-se entre os demais online por não terem edições fixas. Isso ocorre pelo fato de uma edição ser apenas uma configuração possível gerada pela base de dados. Ao fazer esta afirmação, Fidalgo estabelece a distinção entre um jornal online feito apenas em HTML - um produto único ainda que recorra a templates ou modelos – e um que use bases de dados. Neste último, o resultado é sempre uma determinada pesquisa dependente do conjunto de notícias inseridas e da estrutura da base de dados, que determina a forma como as diferentes notícias aparecem conjugadas na apresentação online. O autor aponta, ainda, para a mudança no procedimento do jornalista com relação à incorporação de rotinas de produção descentralizadas, ao acréscimo ilimitado de temáticas abrangidas e à manutenção dos arquivos.

Ao refletir sobre o potencial do BD no jornalismo digital, Elias Machado (2004:02) vai afirmar que ele constitui um formato para esta modalidade. É em consonância com o princípio da transcodificação (segundo o qual todos os objetos da nova mídia podem ser traduzidos para outros formatos) citado por Manovich (2001), que ele defende a hipótese dos bancos de dados como forma cultural com estatuto próprio no jornalismo digital. Para o autor, os BD desempenham três funções simultâneas e complementares: a) de formato para a estruturação da informação; b) de suporte para modelos de narrativa multimídia; e c) de memória dos conteúdos publicados, o que o leva a considerar os bancos de dados como um formato no jornalismo digital. Machado argumenta que, de igual modo à narrativa literária ou à cinematográfica e a um plano arquitetônico na Modernidade, o banco de dados emerge como a forma cultural típica para estruturar as informações sobre o mundo/realidade na cultura dos computadores.

(...) Para que o princípio da transcodificação seja aplicável ao jornalismo digital, o banco de dados deve servir tanto como um espaço para a experimentação de formas diferenciadas de narrativa multimídia, quanto como uma fonte de atualização do presente vivido à luz da memória armazenada (MACHADO, 2004: 12-13).

E o primeiro passo para constituir uma estética própria para as organizações jornalísticas, de acordo com o pesquisador, passa, justamente, pela compreensão que nas novas mídias os elementos constitutivos da narrativa são formatados como bancos de dados. Além da compreensão por parte das próprias organizações, acrescentamos que também os profissionais jornalistas devem ampliar o seu entendimento e capacidade cognitiva sobre o potencial dos bancos de dados, pois o desempenho das suas funções certamente irá requerer tal conhecimento.

Nos sub-tópicos que se seguem abordamos, brevemente, algumas das remediações e rupturas quanto à narrativa, aos gêneros e à memória-arquivo. Sabe-se que, em muitos casos, o uso potencial é às vezes maior do que efetivamente se tem visto de implementação.

 

3.1 A NARRATIVA

Talvez seja no âmbito da construção das narrativas que o uso dos bancos de dados juntamente com os recursos de multimidialidade, hipertextualidade e interatividade possa auxiliar para que os conteúdos, de fato, sejam mais diversificados e diferenciados no jornalismo digital de terceira geração. Como diversos pesquisadores já observaram, escrever para o mundo online é vastamente diferente de escrever para a página impressa. No entanto, mais de uma década depois do lançamento das primeiras publicações digitais, as narrativas ainda apresentam-se fortemente marcadas pela linearidade.

Contudo, como observa Gosciola (2003), a arte de contar histórias é uma qualidade por vezes deixada em segundo plano quando uma nova tecnologia surge. Para ele, a autoração – estruturação de conteúdos e links - numa obra hipermidiática, que une os recursos do hipertexto e da multimídia, e a roteirização – usando a interatividade e o acesso não-linear – são aspectos fundamentais a se considerar na criação de produtos para a nova mídia. O jornalismo de alguma maneira pode se beneficiar de tais recursos para contar histórias mais estimulantes e criativas aos olhos dos usuários. Embora a objetividade seja imperativa na narração do fato jornalístico, certamente se pode recorrer a algumas técnicas para se produzir narrativas mais afinadas com as possibilidades permitidas pelo suporte digital.No caso do uso dos bancos de dados, Elias Machado (2004) acredita serem eles suporte para o desenvolvimento de narrativas multimídia, já que, como afirma Manovich (2001:225), ao se criar produtos para a nova mídia se constrói uma interface para um banco de dados. No jornalismo, a interatividade, que permitirá ao usuário seguir os links estabelecidos, estará submetida à narrativa jornalística, a qual guarda a sua linearidade, mas provê, igualmente, caminhos multilineares para o seu acesso. Como uma outra possibilidade para a construção da narrativa jornalística pode-se considerar as poéticas da imersão (RYAN, 2001). Segundo define Marrie-Laure Ryan, imersão é uma experiência corporal que toma a projeção do corpo virtual ou do próprio corpo para sentir-se integrante de um mundo artístico. Para ela, imersão e interatividade são as duas dimensões da realidade virtual. A interatividade, assim, envolveria as habilidades do usuário para modificar o ambiente durante uma simulação, com movimentos do seu corpo. Poder-se-ia, então, considerar que um usuário ao interagir com conteúdos jornalísticos, participando como colaborador e mesmo interferindo na produção das notícias estaria desempenhando uma função de co-autor. Tal assunto é controverso e, para os limites deste artigo, nos propomos tão somente lançar pistas e mesmo provocações.

Entretanto, para finalizar esse tópico, achamos conveniente ponderar que, no âmbito das narrativas, deva se considerar as poéticas da imersão trabalhadas por Ryan, pois, ajudam a compreender e a estimular o posicionamento do usuário diante de publicações jornalísticas digitais. Ademais, as técnicas narrativas, em geral, são avaliadas em termos das habilidades que possuem para promover os tipos de imersão. As poéticas da imersão são: - Imersão espacial: o leitor/usuário desenvolve um senso de lugar, um senso de fazer parte da cena dos eventos narrados; - Imersão temporal: a experiência do leitor/usuário é envolvida pelo suspense da narrativa, o desejo de saber o que acontece depois; - Imersão emocional: o fenômeno de desenvolver uma conexão pessoal com os personagens (no caso os jornalistas e mesmo as fontes), de participar de suas experiências humanas.

 

3.2. SOBRE OS GÊNEROS

Embora muito já se tenha evoluído quanto à oferta de informações originais afinadas com os recursos do ciberespaço, grande parte do material ofertado ainda apresenta uma forma equivalente com suportes anteriores, sendo pouco inovador do ponto de vista de uma diversidade para se tratar o conteúdo. Neste aspecto, o uso das bases de dados aliado à melhor implementação dos recursos característicos do webjornalismo é capaz de conduzir à exploração de novas tematizações, com potencial para originar novos gêneros ou híbridos entre gêneros, assim como remediações em relação aos gêneros jornalísticos tradicionais.

Ao se falar sobre gêneros ou gêneros de discursovi, isto é, dispositivos de comunicação segundo argumenta Dominique Maingueneau (2000:61), deve-se ter claro que eles só podem aparecer quando certas condições sócio-históricas estão presentes. Ou seja, o aparecimento dos gêneros em todas as esferas da atividade social estará diretamente condicionado a determinadas condições históricas, ao tempo em que uma sociedade pode ser caracterizada pelos gêneros de discurso que ela torna possível e que a tornam possível. Desse modo, os gêneros de discurso têm um caráter historicamente variável. No caso dos gêneros jornalísticos, José Alvarez Marcos (2003:239) citando Martinez Albertos (MARCOS, 2003:239 apud ALBERTOS, 1983:73) ressalta que eles são resultado de uma lenta elaboração histórica que se encontra ligada à evolução do jornalismo.

E um dos traços de estilo de época para os gêneros, conforme apontado por Nora Mazziotti (2002), é a proliferação e a aceleração dos empréstimos e cruzamento entre gêneros. Portanto, levando em conta a convergência de formatos presente no suporte digital, este constitui em si mesmo um ambiente potencial para o entrecruzamento entre gêneros e a origem de alguns novos. Nesse aspecto, o conceito de remediação é mais uma vez apropriado para entender os gêneros jornalísticos (tanto os informativos como a notícia, a nota, a reportagem, a entrevista, a fotografia, como aqueles classificados como opinativos: o editorial, comentário, artigo, resenha, coluna, caricatura, crônica e carta) no jornalismo digital, onde eles aparecem revestidos por recursos e elementos novos, possibilitando não apenas mimetismos, mas melhorias. Para José Alvarez Marcos (2003), o processo de acomodação de gêneros e o surgimento de novas formas vivem na internet um momento de ápice.

De acordo com Javier Diaz Noci (2002), gêneros como a reportagem é beneficiada pela potencialidade do uso de recursos, como som, imagens fixas e em movimento, gráficos, e animações em três dimensões e, principalmente, pela ausência de limites crono- espaciais (DIAZ NOCI, 2002: 123). Para ele, a entrevista é um gênero que se modifica, pois, pode ser usada como formato de perguntas e respostas que podem ser ouvidas e vistas; pode resultar em perfis multimídias e mesmo aparecendo como texto em si e, pode, principalmente, ter como protagonistas os usuários atuando como entrevistadores ao participar de chats com personalidades, onde os jornalistas assumem função de intermediários, filtrando as perguntas.

O modo como a fotografia vem sendo utilizada em diversas publicações digitais nos permite perceber remediações e, talvez, pistas para algumas rupturas. Como exemplo, citamos o modo empregado pelas edições digitais de jornais como o Washington Post (http://www.washingtonpost.com), onde fotógrafos narram como se deu a escolha dos ângulos das imagens ou mesmo nos slides shows e as seções de fotorreportagens em diários online como o Público.pt (http://www.publico.pt) e mesmo quanto aos recursos agregados à fotografia digital, a exemplo da fotografia em 360ºvii. Outro novo "lugar" ocupado pela fotografia nos conteúdos das publicações digitais é o canal "Fotos do dia", como aparece no site do argentino La NaciónLine (http://www.lanacion.com.ar) ou "Últimas imagens", como nomeia o Estadão (www.estadão.com.br), no qual os acontecimentos são mostrados pelo foco do fotojornalismo. Outras remediações acontecem com relação à utilização da TV na web, que origina hibridismos, tal qual nos apresenta sites como os da Reuters (http://www.reuters.com) ou mesmo como a TV UOL News (http://www.uol.com.br) e Jornal do Terra (http://www.terra.com.br) que articulam tratamentos diferenciados, oferecendo tanto boletins ao vivo, mas também permitindo que se leia um texto e se tenha o áudio da entrevista que deu origem a uma determinada notícia. O áudio e o vídeo também já constituem canais individuais ou relacionado a determinadas notícias em publicações como Terra (http://www.terra.com.br), Globo.com (http://www.globo.com), Clarín (http://www.clarin.com.ar), La NaciónLine, entre outras.

 

3.2.1 A INFOGRAFIA

O modo como os infográficos, os mapas e o material de arquivo vêm sendo utilizados pode gerar, de fato, algumas rupturas em relação ao seu emprego em modalidades tradicionais do jornalismo. No El Mundo (http://www.elmundo.es), os infográficos animados já foram incorporados como um canal a mais para se apresentar um fato jornalístico e os mapas, mesmo ainda não animados, são usados como complemento para as informações em portais como o Terra (http://www.terra.com.br). Os argentinos LaNaciónLine e Clarín também disponibilizam infográficos, assim como o inglês The Guardian (http://www.guardian.co.uk), enquanto entre as publicações brasileiras eles são praticamente inexistentes. No Portal Estadão (http://www.estadao.com.br), os arquivos já ganharam sub-canal exclusivo – "Diário do Passado"viii – onde se tem uma mostra do uso potencial do material jornalístico anteriormente publicado. Ou seja, tais exemplos iluminam o caminho e demonstram concretamente uma diversidade de opções para a produção de conteúdos no jornalismo digital para além da conformação mais básica para as informações como se tem visto. Sobre os infográficos, alguns pesquisadores (MARCOS, 2003; SANCHO, 2003; NOCI, 2002) os apontam mesmo como um novo gênero jornalístico no jornalismo digital.

A infografia irá se constituir um gênero desde que se apresente como única informação disponível, com linguagem própria, seja desenvolvida mediante unidades elementais icônicas (estáticas ou dinâmicas) com o apoio de diversas unidades tipográficas e/ou sonoras, normalmente verbais, e que seja uma unidade íntegra de informação. Com a infografia, explica José Luis Valero Sancho (2003:556), se facilita a compreensão dos acontecimentos, ações ou coisas da atualidade que se relatam ou alguns de seus aspectos mais significativos, acompanhando ou substituindo o texto informativo.

 

3.3. A MEMÓRIA E OS ARQUIVOS

Como um formato para o jornalismo digital, o banco de dados tem como uma de suas funções justamente a de memória dos conteúdos publicados, conforme defende Elias Machado (2004). Deste modo, a função de documentação e atualização da memória social, que cabe ao jornalismo, ganha um novo cariz no que diz respeito à facilidade de acesso, familiaridade de linguagem, baixo custo para armazenamento e, portanto, maior democratização para uso das informações, considerando-se o caráter descentralizador e aberto das redes digitais. O uso dos bancos de dados como memória no jornalismo digital de terceira geração torna os arquivos de registros capazes de apresentar parâmetros para aumentar o coeficiente de previsão de fluxo ininterrupto de circulação das informações nos diversos formatos (textos, imagens e sons). Aqui, deve-se ter em mente que, como a característica da memória se configura como uma ruptura para o jornalismo digital, ela será ao mesmo tempo múltipla, instantânea e cumulativa (PALACIOS, 2002).

Segundo Machado, para que o princípio da transcodificação seja aplicável ao jornalismo digital, o BD deve servir tanto como um espaço para a experimentação de formas diferenciadas de narrativa multimídia, quanto como uma fonte de atualização do presente vivido à luz da memória armazenada. Cabe notar que os usuários desempenham papel importante nesse cenário, pois, atuando como colaboradores na produção dos conteúdos, eles também estarão auxiliando o processo de construção da memória social ao lado dos jornalistas. Mesmo ponderando que em muitas organizações jornalísticas os arquivos ainda estejam relegados a uma situação marginal na sua economia produtiva, inclusive, o autor destaca que a estruturação dos modelos de produção de conteúdos jornalísticos como BD representa um esforço para adaptá-las às características dos sistemas de memorização contemporâneos. Neste cenário, os arquivos jornalísticos deixam de ser material de uso restrito para a produção jornalística ou documentos de acesso raro para pesquisadores (historiadores, de maneira mais freqüente) para tornarem-se acessíveis à população em geral.

Como uma solução oriunda da disponibilização dos arquivos, encontra-se, em algumas publicações (Folha Online: http://www.uol.com.br/fol, Terra: http://www.terra.com.br, Uai: http://www.uai.com.br) links que acompanham uma matéria e apontam :para informações já disponibilizadas sobre o mesmo assunto, ou seja, incorporada à notícia atual, temos referências diretas à memória. Para Canavilhas (2004:7), o desafio que se coloca para a internet – e acrescentamos para o jornalismo digital - é aperfeiçoar as suas capacidades como memória, a partir do desenvolvimento de bases de dados e interfaces de pesquisa que se aproximem dos modelos já utilizados pelo homem no seu contato diário com a realidade.

O pesquisador acredita que as formas de armazenamento e recuperação dos arquivos na internet, principalmente em se tratando dos diversos sites jornalísticos, devem manter uma sintaxe de utilização semelhante à que é utilizada noutras estruturas presentes no dia-a-dia, pois, assim, a absorção da tecnologia será mais natural.

 

4. CONCLUSÃO

O nosso objetivo nesse artigo foi demonstrar as remediações e possibilidades de rupturas a partir do emprego dos bancos de dados no jornalismo digital de terceira geração. Deste modo, pretendemos mostrar que os desenvolvimentos ocorridos no ambiente dos media a partir da emergência das tecnologias das redes digitais faz com que novas formas e formatos surjam da apropriação de técnicas entre outros recursos. E, neste cenário, um novo conceito de bancos de dados emerge para ser empregado no jornalismo, especialmente na sua modalidade presente no suporte digital.

 

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas

* Este texto – apresentado ao II Encontro de Pesquisadores em Jornalismo, realizado dias 26 e 27 de novembro/2004, na FACOM/UFBA - foi produzido a partir do artigo submetido à banca do Exame de Qualificação Doutoral no PPG da FACOM/UFBA, em novembro de 2004.

** É jornalista, mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Facom/Ufba). Doutoranda (FACOM/UFBA). É integrante do Grupo de Pesquisa em Jornalismo On-line, GJOL. Bolsista CNPq. E-mail: suzanab[arroba]ufba.br .

i. A palavra geração é adotada, pois melhor expressa o conjunto significativo de soluções adotado pelos sites noticiosos, sendo representativo de um determinado período ou estágio da evolução do mesmo.

ii. Sob esse aspecto, o conceito de remediação é apropriado por Stephen Graham (2004) para analisar as remediações que as novas mídias operam na vida urbana, a partir de seis pontos. Entre eles, sob o ponto de vista das pressões de continuidades e descontinuidades, Graham diz que a tão chamada "era da informação" é melhor considerada não como uma revolução, mas como um complexo e sutil amálgama de novas tecnologias e meios fundidos, e remediando os antigos (GRAHAM, 2004: 18-19). Já Timothy W. Luke (2002), aplica o conceito de remediação para repensar a cultura política e o poder na sociedade contemporânea em função das TICs e, em especial, da internet.

iii. Conforme definição de Célio C. Guimarães (2003: 19), um banco de dados ou base de dados (BD) é uma coleção de dados estruturados ou informações relacionadas entre si. O relacionamento entre os dados é uma característica diferenciadora e fundamental de bancos de dados modernos, pois, segundo o autor, distingue-os de uma conceituação mais antiga, que seria a de uma coleção de arquivos tradicionais suportados pelo sistema operacional.

iv. Quando Roger Fidler escreveu Mediamorphosis. Understanding new media, na metade dos anos 90, ele afirmou que se estava vivendo o meio de uma terceira grande midiamorfose, que se iniciou com a aplicação da eletricidade para a comunicação no início do século XIX, sendo a invenção do telégrafo elétrico uma das responsáveis pelas grandes transformações e expansões de todos os três domínios dos meios (esses domínios estão relacionados à linguagem oral – primeira midiamorfose – à linguagem escrita – segunda midiamorfose – e à linguagem digital, que usa números para codificar e processar a informação e que foi desenvolvida para facilitar a comunicação entre as máquinas e seus componentes e, conseqüentemente, a comunicação com e entre seres humanos - correspondendo à terceira midiamorfose (FIDLER, 1997: 71).

v. Tal denominação deriva do emprego dos diferentes modelos de BD (relacionais, orientado a objetos, Intelligent Database Systems), arquiteturas, softwares e tecnologias avançadas para a construção de bases de dados que vão operar num nível ainda maior de complexidade para a organização, armazenamento, disponibilização, apresentação e consulta da informação - desde documentos textuais, imagens estáticas ou em movimento, a arquivos de áudio até simulações e usos de técnicas de Realidade Virtual.

vi. De acordo com o autor, gêneros de discurso pertencem a diversos tipos de discurso associados a vastos setores de atividade social. Ele cita o exemplo do talk show, que constitui um gênero de discurso no interior do tipo de discurso "televisivo" que, por sua vez, faz parte de um conjunto mais vasto, o tipo de discurso "midiático", no qual figura também o tipo de discurso radiofônico e o da imprensa escrita e, acrescentamos, o do jornalismo digital. In: Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2002.

vii. Trata-se da junção de duas imagens em 180º que permite visualizar todo um ambiente. No Brasil, a empresa Gyro (http://www.gyro.com.br ) é uma das pioneiras nesta tecnologia, usando o software Ipix para fazer a junção das imagens. Entre os clientes da Gyro estão Globo.com e iG.

viii. Disponível através do canal "Tecnologia", embora recentemente o acesso ao "Diário do Passado" esteja indisponível.


 
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