Antes de tecer qualquer comentário acerca da ALCA – Área de Livre Comércio da América, órgão transnacional que englobaria todo continente americano numa área de livre circulação de mercadoria – faz-se necessário apontar algumas considerações sobre o processo de mundialização da economia, visto que só após este processo é que grandes blocos econômicos resolveram se ‘unir’, mantendo seu mercado interno economicamente viável, além de não deixarem se sucumbir ao turbilhão do processo globalizado.
De acordo com Eric J. Hobsbawn, o Breve Século XX acabou em problemas para os quais ninguém tinha, nem dizia ter, solução. Enquanto tateavam o caminho para o terceiro milênio, em meio ao nevoeiro global que os cercavam, os cidadãos do fin-de-siècle só sabiam ao certo que acabara uma era da história.
E muito mais (HOBSBAWN, 1997: 537), esta era da história que acabara, por ter acontecido de forma muito brusca, deixou muitas nações órfãs. Esta situação de orfandade gerara um certo temor em várias organizações e facções, dentro dos países, por isso o temor em se deixar invadir por uma cultura nem sempre estranha, porém, sempre forasteira.
E a junção destes blocos econômicos só veio a agravar ainda mais a situação, não é à toa que temos visto na Europa uma nova onda de xenofobismo por parte de países como Alemanha, Itália e Suíça, além da França e várias campanhas tentando impedir a entrada de estrangeiros. Tudo isto são os reflexos negativos da chamada globalização da economia, tema deste nosso ensaio.
Quando se refere ao Breve Século XX, Hobsbawn tenta construir uma informação ou mesmo teoria para explicar o tempo que muitos costumam chamar de pós-modernismo e que perpassa grande parte do século XX e os anos iniciais do século XXI. Este período pode ser entendido com um outro nome, o de contemporaneidade, pelo fato de estar sendo vivenciado por todos nós.
Além da denominação acima, o historiador também chama este período de fin-de-siècle. Ao se referir à expressão fin-de-siècle, Hobsbawn tenta afirmar o advento de uma nova era na história, era essa permeada por aquilo que denominará de nevoeiro global, devido a pouca certeza que este momento tem trago aos mais variados teóricos e pensadores, sem se esquecer também do papel da economia neste processo, que tem se mostrado extremamente centralizador.
Esta contemporaneidade ainda está encoberta de névoa, situação essa responsável pela pouca certeza que vários pensadores costumam denotar ao momento presente.
Com uma análise mais voltada para a área da História, o pensador afirma que a década de 1990 está inteiramente esvaziada de qualquer sistema ou estrutura de controle internacional. Tal afirmativa fica visível quando olhamos a quantidade de países que têm surgido sem um mínimo controle de qualquer órgão institucional global, ou mesmos em um órgão suficientemente imparcial e um mecanismo independente para determinar estas novas fronteiras territoriais. Antes, contudo, existiam grandes potências responsáveis por estes tipos de divisões, tal situação, atualmente, não tem surtido muito efeito, pois as duas grandes potências – período da Guerra Fria – que davam um mínimo de imparcialidade no mundo não têm mais o mesmo vigor de antes. A Rússia, ex-URSS deixou de ser ponto de referência e centro nevrálgico de dependência com relação ao leste europeu, já os Estados Unidos, devido seus desmandos, têm perdido, correntemente, seus aliados.
As potências mundiais, velhas ou novas, deixaram de ter seu papel no mundo, é como se existisse um vácuo de poderes. A própria União Européia, que poderia ser a mais visível destas potências, está atolada em divergências e contradições, sejam elas étnicas, culturais ou econômicas. Pode-se dizer que a mesma não consegue atingir o status de potência tal como era conhecido no período da Guerra Fria, nem mesmo o Euro, criado para ser uma moeda internacional tem conseguido seus intentos.
Em contrapartida à noção de globalização da economia, surge uma outra, seria a noção de guerra global que, apesar de estar longe de ser uma realidade, o que se percebe é uma série de guerras locais e regionais, sejam inspiradas por questões étnicas ou religiosas, sem nos esquecer também das guerras comerciais que os Estados Unidos da América e alguns países da Europa têm empreendido para manter certos subsídios a seus produtos, valorizando o ‘seu’ nacional, contudo desprezando o global, como é o caso das exportações brasileiras para os EUA.
Até mesmo os habitantes de países considerados imunes à ‘doença do mundo’ têm sofrido com estas guerras locais (o terrorismo é um exemplo contundente de doença do mundo). Se antes tínhamos um inimigo visível, que eram as grandes potências nucleares, hoje temos um inimigo invisível; é o caso do terrorismo em pequenos países como o Afeganistão, a Síria, Palestina e até o terrorismo de Estado, como o praticado por Israel, EUA, Inglaterra e Rússia. Como combater um terror que não vemos e que está escondido em um pequeno país miserável – pelos menos sua população é miserável – da Ásia e da África? Sabe-se que o perigo da guerra global não desaparecera, apenas mudara de forma, ganhando proporções grandiosas. Como diz Hobsbawn, a democratização dos meios de destruição elevou de maneira bastante impressionante os custos da manutenção da violência não-oficial sob controle.
Como se percebe, a globalização da economia tem se mostrado muito mais problemático que qualquer analista internacional poderia perceber. Se temos uma economia que quer se erguer sobre menores economias, temos os ‘pequenos’ se rebelando, se no Brasil esta rebelião se dá por meio de discursos inflamados, em países de atividade terrorista o mesmo acontece de forma mais drástica, digamos até, de forma mais sangrenta. A questão que fica no ar é a seguinte, será que a ALCA trará tantas vantagens assim, é o que intenciono estar discutindo em um outro momento, ao longo desse texto.
A força que o Norte tem depositado no Sul está surtindo efeito, estes últimos têm respondido com violências não-oficiais, é o caso do terrorismo. É como se o Terceiro Mundo tivesse se rebelado contra a Primeiro Mundo. As batalhas vencidas pelo Primeiro Mundo não conseguem mais vencer a guerra contra o ‘mal’, ela apenas é protelada, sendo adiada cada dia mais.
O motivo desta desenfreada violência é o fato dos países mais ricos não conseguirem estancar os problemas sociais do mundo. Se a crise mundial atingiu tamanha proporção é porque a raça humana passa por problemas gravíssimos. E isso pode ser encontrado na morte das grandes ideologias do século XIX, a saber: o socialismo e o capitalismo (principalmente o socialismo, uma vez que o capitalismo passa por crises conjunturais, não uma morte propriamente dita) e no nascimento de novas ideologias, todas elas puxadas pelo carro-chefe do capitalismo e sua globalização de, ‘abertura, porém, nem tanto’.
Uma máxima como os vários cultos à personalidades, principalmente no seguimento do socialismo soviético, que se mostrara como um extremo da Guerra Fria, chega a seu fim juntamente com sua ideologia, hoje temos o culto à era do capitalismo global e, para vários países – e aqui me refiro ao México – o culto ao representante maior do capitalismo globalizado, os EUA.
Pode-se afirmar que o ano de 1989 e a simbologia da quebra do Muro de Berlim enterrara, literalmente, a velha ideologia soviética, dando margem para a velha ideologia norte-americana. Mesmo tendo a certeza de que estas velhas ideologias não conseguiram se parecer com seus pais, o próprio fato de não terem dado conta da situação é sinal de que mesmo em seu advento, alguma coisa já se direcionava para um rumo fora do previsto pela ideologia. Imagina-se que algo que não começa bem, sua tendência é terminar pior ainda, e isso foi o futuro do comunismo soviético (hoje um passado enterrado).
Por outro lado a contra-utopia proposta pelos Estados Unidos também se mostrou incapaz de se manter, e sua bancarrota pôde ser expressa no próprio descontrole de sua ideologia econômica, sem, todavia, dizer a respeito do incidente ocorrido em 2001; o ataque ao World Trade Center. As ‘terapias de choque’ propostas pelo neoliberalismo apenas acirraram os problemas do Estado liberal. Temos dois modelos que se mostraram como um fracasso contundente – se um que propunha a igualdade não conseguiu se manter, o outro que propunha a igualdade do capital, tampouco se manteve –, o que para a História é uma relíquia malquista da Guerra Fria, tanto do lado comunista quanto do capitalista. Entretanto, apesar de ter se mostrado como um fracasso contundente não podemos deixar de reconhecer que, quando funciona de verdade, a globalização da economia pode mostrar alguns resultados, pelo menos do lado econômico, visto que a questão social está cada vez mais crítica.
As ideologias nascidas no século XIX, junto com a fé inabalável da razão e do mundo secular têm no fim do século XX seu sepultamento. Esta situação apenas reforça a perplexidade de alternativas que não se mostraram nem um pouco plausíveis, porém que continuam sendo adotadas, pode-se dizer que a ALCA é uma destas ideologias que, antes de nascer, promete muito, todavia, amedronta ainda mais.
Hobsbawn afirma que uma economia, tal como é a atual, não poderia oferecer solução, nem tampouco resolver problemas como subemprego, desemprego e distribuição de renda. É como se o colapso tivesse sido anunciado já no ato da adoção da economia de livre-mercado irrestrita e incontrolada.
O colapso soviético tem raízes muito próximas do colapso de não-pertencimento de todos dentro do sistema capitalista, o que diferiu foi o isolamento e o arrocho burocrático, impossibilitando o Estado de crescer. Se o Breve Século XX não conseguiu cumprir com seu planejamento, vários são os fatores que contribuíram para esta situação, mas a questão do Estado-nação, tão recorrente na contemporaneidade será como se fosse o últimos dos suspiros, pois temos uma contradição in loco muito grande. Como a União Européia conseguirá minimizar identidades culturais, diferenças étnicas e econômicas, ou mesmo iniquidades sociais? E passando para a Área de Livre Comércio das Américas, será que não teremos os mesmo problema? Veremos!
ALCA, desenvolvimento ou dependência?
Da mesma forma que temos visto os EUA unindo forças para ‘unir’ a América, o Brasil tem se aproximado cada vez mais da União Européia. Se antes o dólar era considerado moeda mundial, esta situação pode mudar em algum tempo, só não sabemos prever quando.
A primeira iniciativa dos EUA, para tentar mudar este quadro, foi tentar conciliar o multilateralismo com o regionalismo, ou mesmo a formação de uma zona hemisférica de livre comércio, aprofundando assim sua hegemonia nas Américas, tentando, ainda, fortalecer a posição de Washington diante do bloco europeu. Notando uma perda de território, pelo menos do ponto de vista econômico-cultural, Bush tem se mostrado um pouco mais ‘compreensível’ com o Brasil e o Mercosul, apesar de manter certos rigores com relação à política exportadora do Brasil, mesmo a OMC – Organização Mundial do Comércio – tendo se mostrado contra este tipo de atitude.
De acordo com Demétrio Magnoli:
O projeto da zona de livre comércio destinava-se a ajustar a política continental de Washington ao novo cenário mundial gerado pelo encerramento da Guerra Fria, no qual a influência passava a depender muito mais do dinheiro que do poderio militar. (2003: 8)
Notando que se poderio militar não tem sido suficiente para manter seus domínios continentais, os EUA têm se preocupado em discutir com o Brasil, mesmo porque é o país que tem se mostrado como líder deste grupo americano, coisa que não se tem notícia dentro da história recente da América Latina. Isso pode parecer pouco mas é mais um sintoma daquilo que os especialistas têm chamado de aproximação globalizada. Exceto Cuba, a ALCA tem tentando englobar todos os países da América e o Brasil se tornara a porta de acesso para esta negociação.
Ainda, de acordo com Magnoli, se referindo ao papel do Brasil:
O Brasil é o alvo principal da Alca, mas também o obstáculo para a política hemisférica dos Estados Unidos. Ao longo da negociação da zona hemisférica de livre comércio, o Brasil assumiu a posição de interlocutor e opositor dos Estados Unidos. Na maior parte do tempo, conseguiu alinhar a seu lado a Argentina e os dois sócios menores do Mercosul, Paraguai e Uruguai. Para contrabalançar o peso de Washington, ampliando a sua margem de manobra, o Brasil deflagrou uma outra vertente de negociação, que pode resultar num acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Européia. (2003: 9-10)
Como se percebe acima, pode-se dizer que a autonomia de Washington está cada mais fragilizada, uma vez que o Brasil, como porta-voz do Mercosul, tem conversado muito com a EU, gerando um certo atrito entre os Estados Unidos. Um outro exemplo que pode preocupar os EUA é o fato de o Brasil, recentemente, ter atingido o superávit primário de seu crescimento, deixando ainda mais longe a dependência junto ao FMI e seus acordos com o Brasil. Que o Brasil está crescendo parece inegável, a questão que fica é a seguinte: na balança, quem é que ganha?
Tentando responder a pergunta acima, temos um exemplo recente que poderia estar ilustrando nossa resposta. Em uma de suas edições mais recentes a revista Veja apareceu com a seguinte reportagem de capa: Brasil peita os EUA na ALCA: coragem ou estupidez? Uma reportagem extremamente sugestiva, porém que um certo de teor de pré-concepção de idéia, como se o Brasil não fosse capaz de ‘viver’ sem a Alca.
Pelo que a reportagem nos demonstra, seria quase impossível, ou mesmo uma estupidez, o Brasil viver fora da Alca, reforçando ainda o perigo destas ‘birras’, como a reportagem se refere, levar o Brasil e se afundar ainda mais em seu caos social.
Algumas considerações que a reportagem nos apresenta são as seguintes: 1) bravatas, tiram o foco do árduo trabalho técnico de negociação; 2) erro de cálculo, o Brasil pode não aderir, mas é incapaz de impedir a formação da Alca; 3) isolamento, os vizinhos, até os do Mercosul, estão loucos para se acertar com os EUA; 4) irrelevância, com 0,89% do comércio mundial o Brasil se arrisca a ficar menor; 5) fechar a economia, o mercado interno não resolve tudo; 6) estagnação, sem comércio externo não há crescimento, todos concordam e 7) protecionismo, o Brasil pode dar o pretexto para que os ricos fechem mais seus mercados. Como pode ser visto por estes sete ‘perigos’ levantados pela revista Veja, o Brasil só tem a perder, no entanto faltou somente um detalhe, por que será que a reportagem não se referiu á questão social, pois é o item mais complicado da abertura dos mercados? Até que ponto o Brasil não perderia sua autonomia, ou mesmo, até suas reservas? São questões sérias que precisam ser feitas e que serão essenciais para a negociação com a Alca.
Pelo que a obra de Demétrio Magnoli ressaltou, o maior problema enfrentado pela ‘mundialização da economia’ ainda é a questão social. Enquanto temos vários países se unindo, parece que a gama de miseráveis cresce ainda mais no mundo. Se por um lado pode ser bom para a economia, até que ponto isso pode se refletir na questão social e sua porção de problemas?
Traçando um histórico da união geopolítica das Américas, podemos remontar ao século XVIII e o ideário de Simon Bolívar, passando pelo século XIX de José Martí, embora o que estes autores desejavam era uma união da América Latina, e aqui não englobaríamos os Estados Unidos, ao contrário, ambos os autores viam no ‘irmão yankee’ um inimigo comum – ou mesmo uma ameaça –, capaz de tirar toda a autonomia do restante da América Latina.
Temos também a Doutrina Monroe (ainda no século XIX), implementada logo após a emancipação política dos países latino-americanos que dizia que a América deveria ser dos americanos, passando então por uma ideologia mais recente, e que ainda existe, é o caso da OEA – Organização dos Estados Americanos –, exceto Cuba, e que fora implementado logo após a Segunda Guerra Mundial, na segunda metade do século XX.
São vários os momentos, dentro da história, que lidam com a questão do pan-americanismo, porém sempre com os Estados Unidos tentando manter-se na dianteira, não seria assombro afirmar que a Alca é uma repetição disso, apesar dos anos decorridos desde então e das características totalmente diferenciadas, hoje muito mais com cunho econômico, aliás, um cunho somente econômico.
Neste sentido, o projeto de integração econômica latino-americana, surge com a intenção de reforçar a hegemonia dos Estados Unidos e, pelo que o Brasil tem demonstrado, não é de interesse do Lula que esta hegemonia se mantenha, a não ser que os EUA abram mão de certas condições, por eles impostas.
Antes, porém, de falar da Alca, é bom que tenhamos uma noção mais clara do Mercosul, com o projeto de ampliar, no plano macroeconômico e macrorregional, o reflexo da industrialização do ‘Três Grandes’ do subcontinente: Brasil, México e Argentina. Começando no Cone Sul do Hemisfério, o Mercosul sempre teve pretensões de se ampliar com o México, apesar de o mesmo ter entrado no Nafta.
Ainda com relação ao Mercosul podemos afirmar que é o mais importante projeto de política externa do Brasil. Decorridos praticamente dez anos desde a assinatura do Tratado de Assunção, o MERCOSUL representa hoje um agrupamento regional economicamente pujante e politicamente estável, que tem sabido aproveitar os ensinamentos e as oportunidades da globalização e tem, assim, atraído, cada vez mais, o interesse de todo o mundo, não é à toa a aproximação que o mesmo tem feito junto à União Européia.
A assinatura, em 26/3/91, do Tratado de Assunção, culmina num processo de negociações iniciado em agosto de 1990 entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. O Tratado materializa antiga aspiração de seus povos, refletindo os crescentes entendimentos políticos em âmbito regional, a densidade dos vínculos econômicos e comerciais e as facilidades de comunicações propiciadas pela infra-estrutura de transporte dos quatro países.
A integração em curso dá cumprimento ao dispositivo incorporado no artigo 4, parágrafo único, de nossa Constituição e é ferramenta valiosa para a inserção mais competitiva das quatro economias no mercado internacional, num quadro em que se destacam a formação de grandes blocos econômicos e os grandes desafios impostos pela globalização.
Constituindo-se na mais recente experiência de integração da América do Sul, o Mercosul é, sem dúvida, uma das mais bem sucedidas iniciativas diplomáticas da história do continente, e o Brasil tem se mostrado como um líder exemplar deste grupo apesar da Argentina também ansiar por esta posição. Anseios que foram protelados devido a recente crise que o país passara nos últimos anos e que vem se alongando até hoje, apesar do país já ter um norte, o que lhe tem propiciado melhores condições de soerguimento.
Quando se fala em globalização, logo vem à cena a noção de regionalização, ou seja, antes de quaisquer países se arriscarem em englobar um grupo maior tem-se que existir, em sua região, um maior intercâmbio entre países em comum. Um exemplo disso é o Mercosul, em que Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai querem, antes, se fortalecerem para entrar na Alca. Esta regionalização também pode ser encarada como um momento de colocar as diferenças de lado, e é nisso que o Brasil tem pensado nos últimos anos, com relação à Argentina, e a posição inclusão do Mercosul na Alca.
Retomando a questão da Alca, pode-se dizer que a iniciativa de se criar um mercado comum na América partiu, em 1990, do então presidente dos Estados Unidos George Bush (pai). Sem fixar prazos ou cronogramas rígidos estabelece como seguinte meta a Iniciativa para as Américas, uma carta de princípios onde ele demonstra a viabilidade de criação desta organização transnacional.
Nas palavras de Magnoli, a Iniciativa para as Américas foi:
(...) mais do que a proposta embrionária de um amplo mercado comum: ela revelou um novo interesse norte-americano pelo continente. Depois das décadas da Guerra Fria, quando a Europa ocupou o centro das atenções da política externa norte-americana, a "volta para a América" representa a retomada de uma orientação geopolítica muito antiga. Como vimos, o princípio "América para os americanos", celebrizado pelo presidente James Monroe em 1823, orientou toda a política externa dos Estados Unidos até a Segunda Guerra Mundial. (2003: 38)
Como é mostrado acima, o projeto de junção das Américas não é um plano isolado, nem tampouco recente. Já são mais de 200 anos que os Estados Unidos ‘treinam’ esta junção, desde que, é claro, sejam eles os ‘defensores’ das Américas; pode-se dizer que o risco da Alca hoje é esse e, pelo que o atual presidente demonstrou, este medo também é uma preocupação de seu governo.
Uma outra situação que não pode deixar de ser discutida diz respeito, justamente, ao medo de perder esta autonomia que o Brasil conseguiu conquistar da América Latina, principalmente no hemisfério sul. Imagino que a atual resistência do governo brasileiro vai de encontro a esta questão e que por ser uma autonomia que dá ao Brasil certos privilégios de negociação, ou mesmo lhe permite uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, é fato que o governo Lula tem protelado esta decisão, com relação à Alca, que já deveria ter sido dada a algum tempo.
Enfim, mais que uma mera redistribuição de renda, podemos dizer que a Alca, tal como está estruturada hoje pode ser muito perniciosa ao Brasil, pode melhorar o nível de discussão?, imagino que sim, o importante é que o governo brasileiro não perca o norte de seu trabalho e comece a deixar o ideológico subir pela cabeço nem, tão-somente, o econômico.
A ALCA e seu atual modelo expansionista
Engana-se aquele que imagina a Área de Livre Comércio das Américas apenas como uma imensa zona franca. O projeto das elites expansionistas norte-americanas passa pela construção de uma institucionalidade adequada a seus novos arranjos econômicos e organizacionais. A conjuntura mundial extremamente favorável aos interesses do Império (denominação que cairia muito bem aos Estados Unidos, uma vez que esta sempre fora sua pretensão), agora vistos como os interesses do ‘Ocidente livre e cristão’, fará da ALCA um conveniente laboratório para a aplicação do direito instantâneo e ‘de fato’ dos grandes grupos oligopólicos norte-americanos, como a guerra das patentes, primeiro empreendida pelo governo FHC e, agora, sendo continuada pelo governo Lula, se mostrou.
A inspiração vêm do Acordo Multilateral de Investimentos, o plano estratégico do grande capital, que almeja fornecer uma nova racionalidade, universalidade e legitimidade à economia das redes globais. Em termos táticos e de curto prazo, visa legalizar o desmonte de cadeias econômicas internas e criminalizar políticas que possibilitem a geração e proteção de investimentos, emprego e renda para nacionais.
As novas elites internacionalizadas, tendo como núcleo duro as altas finanças e as grandes corporações norte-americanas, procuram eliminar as antigas e inconvenientes referências de legitimação: o Estado, a nação e a democracia, e o que foi apresentado por Eric Hobsbawn (1997) pode se mostrar como um exemplo ideal do desmonte destas instituições de poder, outrora legítimas para caracterizar uma identidade própria ao seu provo de origem.
Todas estas inconvenientes situações precisam tornar respeitável e necessário tanto o canibalismo econômico quanto a anulação das identidades, e parece que os EUA são excelentes neste tipo de atitude. E ainda como precaução, pretendem suprimir os últimos resquícios de autonomia esvaziando os sistemas políticos de representação e de administração pública.
Os interesses dos oligopólios privados norte-americanos, traduzidos em uma lex mercatoria, estão plenamente assegurados no processo negociador da ALCA. Em linhas gerais proporcionam a eliminação de anteparos nacionais de regulação e abrem caminho para uma reorganização em função desses mesmos interesses.
A eliminação das articulações econômicas internas dos países ao sul do Rio Grande, ou seja, a sua ‘flexibilização’, será um pré-requisito indispensável para que se estabeleçam os laços de suplementaridade entre a economia latino-americana e a norte-americana.
Está sendo composto um novo papel econômico para os países latino-americanos. Um papel que está muito além da ‘nova divisão internacional do trabalho’ – onde temos países produtores de mercadoria, logo, vendedores, e países consumidores de mercadoria, logo, compradores –, como se convencionou chamar o processo descentralização das multinacionais em direção à periferia a partir de 1950. Esses países são chamados a se reterritorializar no interior de uma moldura transnacional onde existiriam apenas como esboços em uma tela arbitrariamente desenhada e redesenhada de acordo com as necessidades cambiantes e momentâneas do mercado.
As grandes corporações econômicas norte-americanas pretendem criar um hemisfério à sua imagem e semelhança, ou seja uma mega-rede flexível que colecione as mais variadas habilidades e competências, os mais distintos fatores econômicos, isto é, conjuntos de mão-de-obra, reservas de matérias-primas, estruturas comerciais, industriais e financeiras e mercados.
Essas intenções estão complexamente traduzidas na minuta do Acordo da ALCA referendada, em Quebéc em abril de 2001, sem ressalvas por 33 países americanos, exceto a Venezuela que ousadamente reservou sua posição. Da minuta podem se extrair cinco objetivos:
a) MERCADO DE TRABALHO FLEXIBILIZADO E PRECARIZADO: estabeleceu-se regras flexíveis no mercado de trabalho possibilitando a manipulação e controle dos custos trabalhistas de acordo as necessidades momentâneas do mercado;
b) MERCADO FINANCEIRO DESREGULADO: permitiu-se a livre vazão dos fluxos financeiros por meandros financeiros internos a fim de capturar pequenas correntes de capital para engrossar os caudalosos fluxos especulativos das mega-intituições financeiras;
c) LIVRE CONCORRÊNCIA E LIVRE MONOPÓLIO: liberaram-se os mercados, ainda que residuais, através da eliminação de barreiras comerciais e livre concorrência nas compras governamentais, de forma a premiar os atores mais ‘competitivos’;
d) CONTROLE DAS PATENTES E ROYALTIES: prescreveu-se uma fiscalização rigorosa sobre patentes e royalties a fim de preservar o ‘avanço tecnológico’ e a ‘qualidade’ dos produtos e serviços;
e) INVESTIMENTOS LIVRES DE CONTROLES NACIONAIS: determinou-se que é plena a liberdade das redes de investir, desinvestir, comprar, vender, remeter, transferir sem qualquer empecilho ou mecanismo regulador de origem nacional.
Os termos do acordo da ALCA mais parecem com os de uma procuração por instrumento público em que a sociedade repassa, definitivamente, plenos e totais poderes às redes privadas oligopólicas. Em suas negociações os senhores do capital se assenhoram também do tempo futuro e procuram impor cláusulas de irreversibilidade, queimando possíveis pontes de partida e naus de saída. Nada mais que o velho estilo de negociação anglo-saxão, pragmático e belicoso, levado à cabo a partir de fatos consumados.
A adesão à ALCA, e aos princípios do Acordo Multilateral de Investimentos ali embutidos, é colocada como uma condição sine qua non para a renovação dos acordos com o FMI, como fica patente na constrangedora situação da Argentina. Mas essa não será a última chantagem. Depois dos atentados do dia 11 de setembro de 2001, o imperialismo convertido em ‘Império do Bem’ não terá pudores em neutralizar e enquadrar as resistências econômicas em nome da segurança internacional e do combate ao terrorismo. O antes inatingível Trade Promotion Authority (TPA), desta feita, será concedido pelo Congresso norte-americano com presteza e muitos votos de felicidade a George Bush.
Maus augúrios indicam: a ALCA será imposta a fórceps. O fundamentalismo ocidental e de mercado, com sua guerra santa maniqueísta e racista, fez a si mesmo o favor de limpar e preparar o terreno para o despotismo de seus próprios oligopólios privados. O novo milênio começa com sombrios sinais de totalitarismo. O que nos resta, e aqui me refiro ao governo brasileiro, é demonstrar que não somos meros joguetes desta situação e que o Brasil e sus hermanos da América do Sul ainda têm voz e que merecem ser ouvidos, situação que jamais acontecera.
A Alca, apesar de estar posta tal como a conhecemos, e aqui retomo a reportagem da revista Veja, precisa ser discutida com cuidado, visto que o Brasil não teria condições de bancar algum grupo político sozinho. Talvez a aproximação à União Européia minimizaria a situação, entretanto, o que está em jogo são as condições especiais que o Mercosul fora pensado.
Caso optássemos por nos isolar muito perderíamos, sendo então a Alca uma opção como qualquer outra, resta ao Brasil uma definição estrutural de suas relações com a América Latina e a Europa, como também com o Estados Unidos.
É necessário que o Brasil se insira no mercado internacional, segundo Magnoli:
A hipotética recusa brasileira à Alca equivaleria a uma profunda ruptura na parceria estabelecida por Rio Branco, que representou o alicerce da política externa brasileira ao longo do século XX. Além disso, provavelmente isolaria o Brasil – ou, no máximo, o Mercosul – no continente americano. (2003: 109)
E parece que a opção acima não é das melhores, no entanto, do jeito como está, a Alca é desfavorável ao comércio e ao povo brasileiro, ao contrário do México que devido sua proximidade com o ‘Império’ tem suas relações de dependência mais acirradas, e que já duram um pouco mais de tempo.
O opção seria repensar o acordo sem, contudo, descartá-lo; caso contrário a perda poderia ser muito maior que imaginamos.
MAGNOLI, Demétrio (2003). O Projeto da Alca: hemisfério americano e Mercosul na ótica dos brasileiros. São Paulo: Moderna.
REVISTA VEJA (2003). Brasil Peita os Estados Unidos na Alca: coragem ou estupidez?, edição 1824, ano 36, n° 41, 15 de outubro. São Paulo: Abril.
REVISTA ONLINE MERCOSUL (2003). Disponível em <<http://www.mercosul.gov.br>>. Acessado em <<07/11/2003>>.
ALCA BLOCO (2003). Disponível em <<http://www.alca-bloco.com.br>>. Acessado em <<07/11/2003>>.
HOBSBAWN, Eric J. (1997). A Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras.
MINUTAS da Alca (2003). Minuta do Acordo. Disponível em <<http://www.ftaa-alca.org>>. Acessado em <<07/11/2003>>.
SICE (2001). Terceira Cúpula das Américas, Declaração de Quebec. 22 de abril de 2001. Disponível em <<http://www.sice.oas.org/ftaa/quebec/declara_p.asp>>. Acessado em <<07/11/2003>>.
Edilson Antônio Alves
monografiasdoedi[arroba]yahoo.com.br
Área de Atuação: Geopolítica