Stephen G. Baines1
Professor do Depto. de Antropologia, Universidade de Brasília e pesquisador nível 1B do CNPq.
Brasília, 1997
Para refletir sobre uma questão tão ampla como a política indigenista comparativa, torna-se necessário examinar a legislação indigenista, a história do indigenismo de cada país e o lugar dos povos indígenas nas respectivas Constituições, além de recorrer a trabalhos de antropólogos, lideranças indígenas, advogados, indigenistas, e outros agentes que participam do processo da negociação de uma política indigenista, o que é fora do alcance deste trabalho2. Pretendo apenas esboçar algumas tendências que marcaram a política indigenista nesses três países nos últimos anos e a sua relação com a antropologia. Enfoco a política indigenista considerada como "as medidas práticas formuladas por distintos poderes estatizantes, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indígenas" (Lima, 1995:15). Nas relações interétnicas estabelecidas historicamente entre os Estados-nações e os povos indígenas que foram submetidos à colonização, relações essas permeadas pela assimetria, a questão central da política indigenista versa sobre as terras indígenas.
Ao comparar as tendências recentes da política indigenista em três Estadosnações, percebe-se uma multiplicidade de fatores comuns. As exigências de processos de globalização da economia mundial conduzem ao enfraquecimento do Estado-nação e a cortes drásticos nos orçamentos para assuntos indígenas. Além do desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social ou de quaisquer serviços sociais oferecidos pelo Estado, há propostas governamentais para o auto-governo indígena nas quais torna-se evidente a intenção dos órgãos oficiais de se livrarem da sua responsabilidade para com os povos indígenas. Com a corrida para a privatização de empresas estatais, surge a possibilidade de administrações indigenistas diretamente controladas por empresas privadas. Estratégias de descentralização da política indigenista visam a cortes em recursos dos governos federais.
Além dessas semelhanças, há de se lembrar que as políticas indigenistas de cada Estadonação fazem parte de histórias específicas e complexas de contato interétnico em configurações interculturais diversas.
Além de me referir às posturas oficiais dos Estados expressas na legislação e política indigenista, procuro apontar as crenças baseadas no senso comum das populações regionais em contato com as sociedades nativas, e como a cultura hegemônica de cada país reflete-se na legislação. Parto da constatação de Weaver (1984:186) que, na Austrália, o preconceito de cor e a noção de "raça" foram critérios básicos usados historicamente para definir a aboriginalidade, os Aborígines sendo definidos como "Blacks" ("negros"). No Canadá, em contraste, o critério dominante atrás das definições hegemônicas tem sido cultural. Esta diferença se reflete nas formas de política protecionista que surgiram a partir do século 19 nos dois países.
Na Austrália, ressaltou-se a idéia de "absorção" dos Aborígines na sociedade nacional pelo desaparecimento de diferenças físicas e culturais, idéia posta em prática através de duas políticas contraditórias. Por um lado, através da política de separação forçada de crianças aborígines (Australian Government, 1997), sobretudo os filhos mestiços ("half-castes"), de suas mães aborígines com objetivo de trazê-las à "civilização" pela ressocialização em instituições totais governamentais, e prepará-las para viverem na sociedade nacional branca. Ao longo prazo, visava-se à eliminação das características raciais, pensadas biologicamente. Por outro lado, através da política de segregação em reservas dos "full-bloods" (Aborígines de sangue puro), que se acreditava estar em vias de desaparecimento. Em contraste, no Canadá, enfatizou-se a noção de "assimilação" à sociedade nacional, vista como um processo através do qual se acreditava desaparecerem as diferenças culturais dos povos indígenas. Na Austrália, preconceitos raciais hegemônicos a respeito de "negros" foram institucionalizados em relações sociais do tipo "casta" (Rowley, 1972a, 1972b) entre os Aborigines e os colonizadores que se definiam como "brancos" (até a metade do século 20, predominantemente de origem britânica). As categorias jurídicas para definir a aboriginalidade na Austrália basearam-se na porcentagem de sangue aborígine, a distinção fundamental sendo entre "full-bloods" e "half-castes" (Rowley, 1972a:341-364), expressa numa linguagem biológica de "sangue".
O fator que mais tem influenciado a política indigenista nas últimas duas décadas, o movimento indígena a nível nacional e internacional, resultou na emergência, sem precedentes, de lideranças indígenas que obtiveram conquistas na política, tornando-se atores sociais e ativistas no processo de negociação com os Estados-nações, o que Roberto Cardoso de Oliveira chama "uma política indígena, isto é, dos índios, divergente da política indigenista oficial" (1988a:56). Junto com tentativas de inverter as ideologias hegemônicas e valorizar a identidade indígena, houve um aumento da participação de líderes aborígines na política, além da criação e consolidação de laços internacionais entre eles. O ativismo dos líderes tem resultado na conquista de uma série de modificações nas legislações indigenistas para reconhecer os direitos e a representação política indígena, além de propostas indígenas para a criação de grupos de estudo internacionais sobre questões como os direitos indígenas sobre o mar. Segundo Peter Jull, assessor sobre desenvolvimento político e constitucional a governos e a organizações indígenas no Canadá, "a principal tarefa política para os governos e os povos indígenas ... em regiões remotas, é de encontrar, ou inventar, viáveis acomodações administrativas e jurídicas para efetivar a autonomia cultural indígena, e o gerenciamento de recursos e territórios dentro da unidade nacional e das estruturas constitucionais dos Estados-nações existentes" (1996a:22).
O papel das organizações não-governamentais de apoio aos direitos indígenas que, na sua maioria, se estruturou nesse período, tem contribuído também nesse processo, numa primeira instância, facilitando a organização de assembléias indígenas, e, privilegiando a defesa dos direitos territoriais indígenas. No Brasil, o trabalho do Núcleo de Direitos Indígenas (NDI), no período de 1988-1994, caracterizou-se pela propositura de ações judiciais, juntando-se ao Programa Povos Indígenas no Brasil, do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), em 1994, para constituir o Instituto Socioambiental. Propõe-se a criar soluções integradas para questões sociais e ambientais, dentro do novo contexto do crescimento do movimento ambientalista a partir da década de 1980 e a difusão, a nível internacional, de uma nova meta-narrativa sobre natureza e sociedade (Ribeiro & Little, 1996:4).
Peter Jull (1994:21) ressalta que o movimento ambientalista tem beneficiado os povos indígenas, sobretudo ao reconhecer a importância do gerenciamento de recursos a nível local. Ao mesmo tempo, houve tentativas, por parte de setores de governos, de manipular a política indigenista e ambiental nacional "através de uma estratégia de `ecologização' da retórica desenvolvimentista e de uma manipulação administrativa da legislação ambiental" (Albert, 1991:55), o que Albert chama o "`esverdeamento' dos custos sociais do desenvolvimento militar-empresarial da Amazônia" (Ibid.), e "uma tendência recente entre empresas estatais e privadas de criar uma retórica `de preocupação ambiental' e `ecológica' para os projetos de desenvolvimento de grande escala na região amazônica" (Baines, 1996:10). A própria exigência constitucional de autodeterminação dos povos indígenas tem levado a estratégias de cooptação e de encapsulamento de líderes indígenas por administrações indigenistas atreladas a interesses empresariais (Baines, 1993; 1994), que exercem controle sobre as imagens dos índios divulgadas ao público, incorporando líderes indígenas nas suas próprias campanhas publicitárias, numa retórica de autodeterminação. Isso fica claro na atuação da administração indigenista do Departamento de Meio Ambiente da ELETRONORTE/FUNAI sobre os Waimiri-Atroari, na Amazônia brasileira (Baines, 1996). Moreton-Robinson & Runciman (1990) argumentam que a legislação indigenista e ambientalista de autogerenciamento indígena no Parque Nacional de Kakadu, no Território do Norte da Austrália, tem estabelecido novas relações de dominação em vez de fomentar o autogerenciamento. Pois, obriga os Aborígines a tomar decisões e ao mesmo tempo as limita, coagindo-os a participar do processo burocrático da sociedade nacional.
O Canadá, a Austrália e o Brasil são "novas nações" (Cardoso de Oliveira, 1988b:143-159), ex-colônias de países europeus, apesar de suas histórias serem, obviamente, muito diferentes. Todavia, nestes três países, a investigação sobre o Outro é conduzida na forma de estudos a respeito de populações nativas (ainda que nos três países não o seja exclusivamente) sobre cujos territórios as nações se expandiram. O Canadá e a Austrália, diferentes do Brasil, foram colonizados por "países de centro" da antropologia - a Inglaterra e a França. Porém, apesar de tais diferenças, registra-se um grande dinamismo e desenvolvimento nas etnologias indígenas nos três países, sobretudo a partir do final da década de 1960, com forte ênfase nos temas de etnicidade, política indigenista, e sistemas ideológicos, entre outros (Silverman 1991:391). Estudos sobre culturas "tradicionais" e "aculturação" foram substituídos por temas politizados como direitos territoriais e a análise de relações burocráticas (Dyck, 1993:6; Lima, 1995). Dyck se refere ao surgimento de uma antropologia no Canadá que está engajada no estudo das relações entre povos indígenas e o Estado-nação e que procura melhorar essas relações (1993:21). Ramos (1990) ressalta a tradição crítica da etnologia indígena que se faz no Brasil.
Todos os três países compartilham o fato de que as populações indígenas constituem uma pequena minoria da população total3. Os três países têm regiões densamente povoadas de antiga colonização, e outras ocupadas muito mais recentemente: a região amazônica no norte do Brasil; o norte e o centro da Austrália; o norte do Canadá.
Como aponta Jull (1994:207), o Canadá pode ser dividido em duas zonas distintas. No sul, os povos indígenas ocupam reservas etnicamente exclusivas e estão assumindo o gerenciamento dos serviços fornecidos pelo governo, enquanto no norte, região de população predominantemente nativa, estão negociando acordos territoriais regionais. No extremo norte do Canadá, a exigência por parte dos Inuit de ter maior controle sobre seus próprios territórios levou o governo dos territórios do Noroeste a realizar um plebiscito em 1982, com a divisão de Nunavut e Denendeh (Índios e Métis). Favoreceram a decisão de maior autonomia dentro da União Federal 56% dos votos. Em junho de 1993, uma Ata de Parlamento prevê a criação, até 1º de abril de 1999, de Nunavut, com uma extensão de 1,900,000 km2, e título de posse a 350,000 km2. Na Austrália, o auto-governo é visto como um aspecto de acordos regionais ou em relação à questão do financiamento de serviços, que reflete um movimento de base por parte de povos indígenas a nível local, por toda a Austrália, de tomar controle dos serviços.
Diferentemente do Canadá e do Brasil, onde as administrações indigenistas dos governos ainda estão, em grande parte, nas mãos de funcionários não-indígenas, na Austrália, o governo tem aberto cargos na administração a lideranças Aborígines e Ilhéus do Estreito de Torres. Weaver analisa o forte papel intervencionista do governo australiano na criação, controle e abolição de organizações aborígines a nível nacional - o National Aboriginal Consultative Council (NACC)[1973-6], a National Aboriginal Conference (NAC)[1977-1985], e a atual Aboriginal and Torres Strait Islander Commission (ATSIC), como uma estratégia para controlar os ativistas aborígines, ao mesmo tempo levantando a bandeira de "autodeterminação indígena" (Weaver, 1985:139; 1993).
Embora uma discussão das complexas histórias da política indigenista nesses três países esteja fora do alcance deste trabalho, vale mencionar que "a política sobre direitos territoriais reforçou as distinções históricas entre aborígines tradicionais e não-tradicionais na Austrália e entre `status' e `non-status Indians' no Canadá" (Weaver, 1984:208).
Pesquisas antropológicas na Austrália que enfocaram quase exclusivamente Aborígines tradicionais até a década de 1960 reforçaram a distinção, tratando os Aborígines mestiços e aqueles que se acomodaram através de um longo período de colonização nas regiões densamente povoadas do sul do continente como `menos autênticos'.
No Canadá, a criação de reservas indígenas através de Tratados entre 1871 e 1923, processo que acompanhou a aceleração da colonização do continente, resultou numa distinção entre Índios "status" (os Índios incorporados nos tratados) e Índios "non-status" (aqueles Índios não incorporados nos tratados, os Métis, e os nativos emancipados). Os anos desde o período de confederação até cerca de 1960, década de ativismo indígena, têm sido chamados a "era de assimilação" da política indigenista canadense. Como afirma Weaver, "as categorias adotadas pelo governo para definir Índios refletiam a necessidade de especificar quais pessoas tinham o direito de morar em reserva. Assim, criaram-se duas categorias de Índios ... "Status Indians" refere-se a aqueles que têm status jurídico sob a Indian Act ... determinado por descendência patrilinear, a partir do registro governamental de 1876" (1986:188). A categoria de "non-status Indians" abrange pessoas de descendência indígena que não têm direitos a reservas. De modo parecido com o enfoque nos "Aborígines tradicionais" na etnologia indígena que se fazia na Austrália, até a década de 1960, pesquisas antropológicas realizadas no Canadá enfocaram principalmente os "status Indians", pensados como mais "autênticos".
Somente em 1985, com a promulgação do Bill C-31, um projeto de lei para modificar a Ata Indígena, visava-se terminar a discriminação contra mulheres indígenas.
Antes deste Bill, mulheres classificadas como Índias "status" que casaram com Índios "non-status" ou com brancos perderam seu "status". A partir de 1985, a Ata Indígena anulou a emancipação e permite o cadastramento de Índios que perderam seu "status" e seu pertencimento a bandos4. O Department of Indian Affairs and Northern Development (DIAND) desistiu da política assimilacionista dos anos 60, passando a predominar a idéia de que as reservas indígenas deveriam ser um foco para desenvolvimento comunitário.
Apesar disso, na prática, persistem atitudes e ações paternalistas enraizadas numa longa tradição colonial.
No Brasil, após a tentativa impor um Decreto de Emancipação no final da década de 1970 (Baines, 1980:33-50), o governo procurou em 1987, através do Decreto 94.946/87, introduzir na legislação uma distinção entre "índios aculturados", que habitariam "colônias indígenas", e "índios não aculturados" que viveriam em "áreas indígenas" (Oliveira Filho, 1990:27). Acrescenta Oliveira Filho, "Essa normatização abre caminho para justificar a existência de ações econômicas que visam o lucro em áreas indígenas, baseando-se em possíveis indicadores de aculturação ..." (Oliveira Filho 1990:28), e com a exploração dos recursos naturais, poderia justificar-se uma diminuição dos territórios indígenas.
O papel do etnólogo nacional em relação à política indigenista nos três países tem mudado nas últimas três décadas, do de representante junto a instâncias do governo de interesses de povos que ainda não tinham voz reconhecida, àquele de assessor que visa a oferecer sua experiência profissional no sentido de colaborar com as lideranças indígenas.
No Canadá e na Austrália os antropólogos são freqüentemente contratados por grupos indígenas como consultores ou funcionários assalariados de organizações indígenas e conselhos tribais (Dyck, 1993:6). Diferentemente do papel de muitos antropólogos dos países de centro da antropologia (os EUA, a Inglaterra e a França - Cardoso de Oliveira, 1988b:144), que realizam pesquisas na condição de estrangeiros fora do seu país de origem, nas últimas décadas o etnólogo nacional, nestas três ex-colônias, tende a assumir um compromisso com os povos indígenas com os quais realiza pesquisas (Ramos, 1990; Dyck & Waldram, 1993:3-38, Baines, 1995: 108-112).
Peirano (1991 [1981]) traça o nascimento da disciplina de antropologia no Brasil ao movimento modernista dos anos 1920 e o esforço para construir uma nação brasileira, em que surgiu um compromisso do antropólogo com o destino dos povos indígenas desde a sua implantação. O enfoque nos povos indígenas dentro do contexto nacional conduziu ao estudo do contato interétnico, por Darcy Ribeiro (1970) e encontrando seu principal mentor teórico em Roberto Cardoso de Oliveira em trabalhos sobre a "fricção interétnica" (1964; 1978) a partir do início da década de 1960. Na Austrália, onde a antropologia foi estabelecida primeiro como uma extensão da antropologia britânica, e no Canadá, onde foi estabelecida inicialmente como extensão da antropologia britânica, americana e francesa, a ênfase no compromisso político do antropólogo com os povos indígenas, com algumas exceções, tem sido um fenômeno mais recente, decorrente, pelo menos em parte, do crescimento do movimento indígena e o envolvimento dos antropólogos nos processos de reivindicação de direitos territoriais indígenas.
Quanto ao papel de antropólogos no Canadá, Jull afirma que "os acadêmicos desempenharam um papel fraco nas grandes conquistas indígenas, com exceção do caso do inquérito sobre o gasoduto de Mackenzie, 1975-77. Os principais conselheiros brancos eram advogados... Enquanto povos indígenas na Austrália foram melhor atendidos por acadêmicos..." (1996a:37 nota 63). Jull acrescenta que o papel dos acadêmicos difere na Austrália e no Canadá. No Canadá desempenharam um papel indireto até se consolidarem as conquistas políticas das lideranças indígenas (1996a:43 nota 112). Hedican (1995:110) afirma que, no Canadá, com exceção dos trabalhos de Asch e Weaver, houve pouca pesquisa sobre a política indigenista em si.
Foi, em grande parte, a mobilização das lideranças das associações indígenas que levou os Estados-nações a modificar suas políticas indigenistas, dando-lhes voz, ao reconhecê-las como atores sociais, e incorporando direitos indígenas através de reformas constitucionais, o que faz parte de uma tendência internacional na política indigenista5.
Como ressalta Ramos, no caso do Brasil, os povos indígenas como "nações dentro da nação", eles "não têm qualquer perspectiva de se transformar em estados, nem de promover um `nacionalismo indígena'" (1993:12), apesar do termo `nações indígenas' ter incomodado muita gente como expressão de perigo para a soberania nacional (Ibid.:2). Acordos para maior autonomia regional podem coexistir com o reconhecimento da soberania do Estadonação.
Esboço, a seguir, alguns dos pontos marcantes na política indigenista desses três países nos últimos anos.
A Constituição do Brasil de 1988, apesar de ter sido formulada no contexto do Projeto Calha Norte e a intensificação da militarização da política indigenista oficial (Oliveira Filho, 1990), trouxe mudanças profundas à dinâmica da política indigenista brasileira. Cabe ao Congresso aprovar autorizações de pesquisa e de lavra de recursos minerais, e autorizações de barragens, em terras indígenas. Como ressalta Carneiro da Cunha, "praticamente todas as questões envolvendo terras indígenas poderão usar como foro de discussão o Congresso Nacional e todas as intervenções terão de ser justificadas perante ele" (1988:22), o que tem exigido uma mobilização intensa das lideranças indígenas. Enquanto o Executivo trata da proteção das terras e dos bens dos índios, o Ministério Público Federal trata de defendê-los judicialmente.
Com o reconhecimento e respeito às organizações sociais e culturais dos povos indígenas e garantias de plena cidadania, retirou-se "da FUNAI a exclusividade da competência para entrar em juízo na defesa de direitos e interesses dos índios" (Ibid.), além de todas as questões indígenas terem passado a ser de âmbito da Justiça Federal. A definição do que seja terra indígena passou a incluir o "habitat" cultural de um grupo. Os direitos dos índios sobre suas terras são reconhecidos como direitos "originários", que derivam do fato histórico de serem os primeiros a ocuparem o Brasil. A essa inovação conceitual, pode-se acrescentar o abandono de uma perspectiva assimilacionista, retirandose do texto constitucional de 1988, a competência da União para legislar sobre a incorporação dos índios à comunhão nacional. Ressalta Carneiro da Cunha que o mais importante dispositivo que incorpora mudança conceitual é o reconhecimento na Constituição do direito consuetudinário das culturas indígenas (1988:23), e conclui que "globalmente o texto constitui uma grande vitória dos índios" (Ibid.). A propriedade das terras indígenas continua sendo da União, mas a sua posse e usufruto exclusivo de suas riquezas continuam sendo dos índios.
Sobretudo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, surgiu um grande número de organizações indígenas, principalmente de caráter étnico de base local, mas também regional e nacional. Como também no caso da Austrália e do Canadá, com populações indígenas constituídas de múltiplas etnias e línguas que são pequenas minorias dispersas nas sociedades nacionais, a política indígena "autônoma e permanente, é uma realidade fundamentalmente local ..., faccional ... e descentralizada" (Ricardo, 1996:91).
Ricardo arrola 109 organizações indígenas registradas em cartórios no Brasil e 30 organizações não-governamentais de apoio aos povos indígenas. Apesar de algumas conquistas políticas, medidas governamentais, como o decreto 1775 de janeiro de 1996, que altera os procedimentos para a demarcação das terras indígenas e adia o cumprimento da Constituição de 1988 (que determina um prazo de cinco anos para concluir a demarcação das terras indígenas), sabotam os esforços das lideranças indígenas e organizações de apoio.
O que tem marcado mais a política indigenista australiana nos últimos duas décadas é a decisão do Supremo Tribunal, em 1992, sobre o caso de Mabo, no qual, pela primeira vez o governo federal australiano reconheceu a posse indígena como parte da lei consuetudinária (Bartlett, 1993:v-xxvi). Diferentemente do Canadá, onde houve tratados (entre 1871 e 1923) entre o governo colonial e os povos indígenas com a cessão de imensos territórios em troca de reservas, indenizações, e bens manufaturados, na Austrália não houve reconhecimento de terras indígenas pelo sistema jurídico. Somente a partir de 1967 o governo federal australiano, através de plebiscito, passou a ter poder legislativo sobre os povos indígenas, embora os estados continuem a exercer a sua própria legislação indigenista. Em maio de 1982, três ilhéus, um dos quais era Mabo, de Murray, ilha no Estreito de Torres, reivindicaram junto ao estado de Queensland, a posse indígena das ilhas. Na decisão do Supremo Tribunal sobre o caso conhecido como Mabo, em junho de 1992, foi reconhecido que os direitos territoriais nativos haviam sido violados desde a colonização e que, com base no Racial Discrimination Act 1975, havia uma obrigação jurídica por parte do governo federal de reconhecer esses direitos.
A decisão sobre o caso de Mabo foi seguido por uma proposta de três etapas: o Native Title Act 1993, uma legislação para o reconhecimento de posse indígena onde havia sido anulada; o estabelecimento de um fundo para terras indígenas para permitir a aquisição de terra por parte de povos indígenas que não poderiam reivindicar terras sob o Native Title Act 1993; e uma série de "medidas para alcançar a justiça social" dirigidas para eliminar as desigualdades sofridas por povos indígenas. Foi nomeado um Comissário de Justiça Social Aborígine a nível nacional, o primeiro titular sendo Michael Dodson, um advogado de tribunal aborígine que assumiu o papel de negociar como representante dos Aborígines com o primeiro ministro sobre o Native Title Bill (Jull, 1994:205).
A idéia de um pacote de medidas para alcançar a justiça social surgiu durante as negociações entre o governo federal e representantes de organizações indígenas de Ilhéus do Estreito de Torres, visando uma reforma estrutural, e abrangendo uma ampla gama de fatores sociais, econômicos e culturais (Dodson, 1995, Vol.1, p.1). Em março e abril de 1995 três relatórios foram publicados por três órgãos nacionais controlados por indígenas após consultas com comunidades indígenas por toda a Austrália: O Council for Aboriginal Reconciliation, a Aboriginal and Torres Strait Islander Commission (ATSIC - o órgão indigenista oficial do governo australiano), e a Human Rights and Equal Opportunity Commission, Aboriginal and Torres Strait Islander Social Justice Commissioner, Michael Dodson (Jull, 1996b:1). Os responsáveis para os três relatórios apresentaram um paper em conjunto em 1994, reivindicando reforma constitucional, auto-governo indígena, acordos regionais e direitos sobre o mar (Dodson, 1995:46). Contudo, o tema subjacente dos três relatórios para alcançar a justiça social definiu-se como reforma constitucional (Jull, 1996b:3). As medidas para alcançar justiça social foram submetidas ao Parlamento australiano, e não ao governo, para tentar sobrepujar o debate partidário (Dodson, 1995:4).
Dodson apela à necessidade de uma mudança da administração do bem-estar indígena para o reconhecimento dos direitos indígenas (Dodson, 1995:5).
A proposta indígena de reforma constitucional australiana vista como processo tem três objetivos potenciais: o reconhecimento dos povos indígenas como povos singulares que têm um lugar especial na história e na sociedade australianas; assegurar a proteção de direitos como a posse indígena da terra; e processos ou estruturas através dos quais os povos indígenas possam fortalecer ou desenvolver suas próprias sociedades ou definir seus direitos no futuro (Dodson, 1995:10). As opções estratégicas apresentadas para instituir mudanças constitucionais na Autrália são: emendas à Constituição de 1901; mudanças nas estruturas da vida política australiana através de emendas constitucionais, outras leis, ou arranjos político-administrativos; e a criação de "constituições" locais que concedem os poderes e procedimentos através dos quais as comunidades indígenas ou regiões se auto-gerenciem (Dodson, 1995:16). Os três processos não são excludentes.
Como ressalta Jull (1996b:4), o relatório de Dodson é, em primeiro lugar, uma discussão sobre reforma constitucional. Dodson reivindica uma abordagem que valorize culturas diferentes com suas tradições e costumes diversos (1995:5), e propõe a participação dos povos indígenas "na tarefa da construção da nação australiana" (1995:8).
Asch (1993) propõe reforma constitucional no sentido de promover autonomia cultural indígena dentro do Estado-nação canadense. A ideologia dos anglofones do Estado canadense segue uma filosofia de universalismo que não reconhece os direitos inerentes dos povos indígenas à autodeterminação e autogoverno (1993:31-32), e reforça uma versão colonialista da tese de ocupação territorial (1993:49). Segundo a Constituição canadense de 1867, os índios e suas terras são regidos exclusivamente pela autoridade legislativa do parlamento federal. Porém, outras interpretações atribuem esse direito às províncias. A Constituição de 1982 inclui os Métis, antes numa situação jurídica ambígua, junto com os Índios e os Inuit como povos aborígines. Porém, apesar de estender o reconhecimento constitucional aos direitos aborígines e direitos por tratados, a Constituição de 1982 não especifica quais são esses direitos (Asch, 1993:36-37).
Hedican (1995:109) afirma que a transferência, ou devolução, de poder para os povos indígenas do Canadá iniciou-se quando o Department of Indian Affairs and Northern Development (DIAND) (o órgão indigenista oficial do governo canadense) abandonou as políticas assimilacionistas que norteavam a política indigenista oficial até a década de 1960. Houve uma mudança na política no sentido de enfocar as reservas indígenas como centros de desenvolvimento comunitário, em que as comunidades locais têm controle sobre a administração de verbas, educação, a aplicação da lei, projetos habitacionais e serviços sociais.
Em 1978, o governo federal canadense convidou as associações indígenas nacionais a participar de propostas para reforma constitucional, o que resultou em emendas constitucionais em 1982 e o reconhecimento de direitos indígenas. O processo de conferências constitucionais indígenas continuou até 1987. No verão de 1990, comunidades aborígines por todo o Canadá protestaram com uma unidade sem precedentes, contra a maneira violenta com que o governo agiu nos confrontos entre os Mohawk e a polícia e Exército em Oka e Chateauguay no Quebec. Organizaram manifestações também em protesto a outras questões locais e regionais que, havia muito tempo, o governo não resolvera.
Decisões do Supremo Tribunal do Canadá, sobretudo a partir de 1990, forneceram uma base jurídica para direitos indígenas em relação à pesca e ao auto-governo indígena. Um pacote de direitos indígenas foi submetido em 1992 como parte de uma reforma constitucional para fornecer direitos inerentes a auto-governo. Contudo, ao ser submetido a um plebiscito, o pacote não foi aprovado. Apesar disso, os povos indígenas passaram a ser vistos como comunidades políticas em emergência, num processo de negociação de novas relações com a sociedade nacional (Dodson, 1995:12-13).
Como frisam Richardson, Craig e Boer, "No Canadá existe um corpo de direitos indígenas na lei consuetudinária ao qual apelam os tribunais canadenses na definição de reivindicações indígenas (1995:21). Na decisão sobre o caso de Calder (1973), em que o povo Nisga'a reivindicou que a posse das suas terras tradicionais nunca havia sido anulada, a posse indígena veio a ser incorporada em lei consuetudinária canadense quando o Supremo Tribunal reconheceu que a posse indígena existia independentemente de qualquer reconhecimento formal. Jull (1994:207) vê a decisão sobre o caso de Calder, parecida com a decisão sobre o caso de Mabo na Austrália nove anos depois, como inovação para a legislação indigenista canadense. Foi a decisão do Supremo Tribunal do Canadá sobre o caso de Calder, que mais influenciou o Supremo Tribunal da Austrália na decisão de Mabo (Bartlett, 1993:xi). Em 1982, emendas constitucionais no Canadá reconheceram e reafirmaram direitos aborígines existentes. O caso de Sparrow, em 1990, que trata do direito de pesca do povo Musqueam da Colúmbia Britânica, que nunca assinaram um tratado, confirmou que os direitos indígenas sobre uso de recursos naturais continuam a existir apesar da soberania do Estado-nação canadense (Asch, 1993:39).
Rowse avalia a Native Title Act na Austrália como uma vitória política para os povos indígenas da Austrália, ao transformar a validação de posse indígena da terra de algo concedido pelo governo para algo que os povos indígenas concedem em troca de benefícios negociados (Rowse, 1994:127). A Ata repudia a transferência de direitos territoriais indígenas para os estados, e reforça os direitos indígenas conforme a lei consuetudinária (Ibid.:131). Na Austrália, como nos outros dois países, uma desconfiança, por parte da maioria dos líderes indígenas, nos governos dos estados, territórios, e províncias, expressou-se no desejo que o Governo Federal assuma plenamente a política e os programas indígenas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SÉRIE ANTROPOLOGIA
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A lista completa dos títulos publicados pela Série Antropologia pode ser solicitada pelos interessados à Secretaria do: Departamento de Antropologia Instituto de Ciências Sociais Universidade de Brasília
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Notas
1. Professor adjunto do Departamento de Antropologia da UnB e pesquisador do CNPq. Uma versão deste trabalho foi apresentada no GT: Política Indigenista, coordenado pelo Professor João Pacheco de Oliveira Filho (Museu Nacional - UFRJ), no XX Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, outubro de 1996.
2. Existem muitos trabalhos sobre a história da política indigenista nestes três países. Para uma reflexão comparativa sobre a Austrália e o Canadá, ver, por exemplo, Weaver (1984, 1985); Hodgins, Milloy, & Maddock (1989). Para um trabalho detalhado sobre a história do Serviço de Proteção aos Índios no Brasil, ver Lima (1995). Para reflexões sobre a política indigenista e indígena na Austrália, ver Weaver (1993); Beckett (1988; 1992).
3. No Brasil, a população indígena vivendo em suas próprias terras é de cerca de 280.000. Pode-se estimar que a população indígena total esteja na casa dos 300.000, ou 0,2% da população nacional (Ricardo, 1996:XII); no Canadá a população aborígine está em torno de 1,2 milhões, aproximadamente, 4,3% da população total. Na Austrália a população aborígine está cerca de 250.000, ou 1,4% da população nacional.
4. Categoria criada pela administração governamental para designar "comunidades".
5. Ver Barabas (1996:3, nota 3), que menciona, com base no "Manual de Documentos para la defensa de los derechos Indígenas", Academia Mexicana de Derechos Indígenas, México, 1989, que, na América Latina, a Constituição do Panamá de 1972 foi revisada a favor dos povos indígenas em 1983. A Nicarágua foi pioneira em legislação indigenista ao regulamentar a autonomia indígena em 1986. A Constituição do Brasil em 1988 reconhece a personalidade jurídica dos índios. Em 1991 a Colômbia realizou importantes emendas constitucionais a favor da autodeterminação indígena. Outros países criaram leis nacionais para os povos indígenas, como o Peru em 1974, a Costa Rica em 1977, o Paraguai em 1981 e a Argentina em 1985. Para uma discussão sobre a Lei Indígena do Chile, de 1993, ver Repetto (1996). Para as tentativas recentes de introduzir emendas nas Constituições da Noruega e do Canadá em relação a povos indígenas, ver Jull (1996b:2-8). Dodson aborda a questão de reforma constitucional e povos indígenas, vista como um processo fundamental para redefinir as relações entre os Estados-nações e os povos indígenas (1995:9-18).
Stephen G. Baines
stephen[arroba]unb.br